Imagens de atrocidades ao serviço do consumo
Imagens de atrocidades ao serviço do consumo
Representação do espectáculo e da monstruosidade é fabricada para nos
manipular
Beja Santos
Visto no jornal ou na revista, na televisão ou no
computador, na publicidade institucional ou
comercial, o sofrimento dos corpos esventrados,
fuzilados, torturados, tornou-se uma espécie de
lugar-comum chocante que orienta para outros
lugares comuns da catástrofe, dos intermináveis
conflitos e do caos planetário. Não sabemos viver
sem a representação do heroísmo, do espectacular
e da monstruosidade das guerras, acidentes e toda
a sorte de inseguranças.
Em "Olhando o Sofrimento dos Outros" (Gótica,
Lisboa, 2003), a escritora Susan Sontag
oferece-nos uma vigorosa análise da representação
moderna do chocante, do horrífico e do aterrador,
eixos normalizadores da vida quotidiana. Graças à
imagem e ao efeito devastador da fotografia,
somos informados, podemos tirar partido.
Estas imagens do sofrimento podem originar
respostas contraditórias, como a paz, a vingança,
a indignação. Como tudo quanto ocorre na
sociedade de consumo, trata-se de imagens que são
fabricadas para caberem dentro dos media. Aí,
impõem-se pela autoridade, oportunidade e
autonomia da leitura. São provas, documentos,
testemunhos, independentemente da encenação.
Observa a autora que "num mundo em que a
fotografia está de modo brilhante ao serviço das
manipulações consumistas, ninguém pode assegurar
o efeito de qualquer fotografia de uma cena de
sofrimento". Por isso, há enormes possibilidades
de recordarmos e de nos emocionarmos através das
imagens, já que queremos justificar a nossa ira,
o nosso protesto, a nossa solidariedade.
Não há provas de que sejamos mórbidos ou brutos
só porque contemplamos estas imagens permanentes
do sofrimento dos outros. Não se trata de
retardamento emocional ou voyeurismo de sangue ou
de corpos desmembrados. No auge do tremor de
terra, na chacina no campo de prisioneiros, no
despojar dos cadáveres ou no saque de palácios,
não podemos verdadeiramente imaginar o que há de
aterrador naquela violência.
Como não podemos imaginar o que se passou (não
participámos, mas queremos ver) resta-nos a fúria
avassaladora destas imagens, onde assumimos na
plenitude o papel de consumidores.