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PENSANTES

Outros pensamentos, ideias e palavras que nos fazem pensar...

terça-feira, janeiro 30, 2018

# “Devemos eliminar os intermediários, dar dinheiro diretamente às pessoas”, diz autor de “Utopia para Realistas”

http://observador.pt/especiais/o-leite-faz-mal-ou-e-um-alimento-obrigatorio-fomos-ver-o-que-diz-a-ciencia/

17 Janeiro 2018 Edgar Caetano

Autor de "Utopia para Realistas" diz que a inovação tecnológica vai
levar-nos a largar "ideias obsoletas" e ter "coragem política" de
tentar novas, sem preconceitos e sem o "paternalismo da esquerda".

A solução não é dar um peixe a um homem, mas também não faz sentido,
ao contrário do que diz o ditado, limitarmo-nos a ensiná-lo a pescar.
Também é preciso dar-lhe meios para comprar uma cana de pesca. Na
defesa de um rendimento básico incondicional para todos, o historiador
holandês Rutger Bregman escreveu "Utopia para realistas" [edição
Bertrand], onde elogia o capitalismo mas diz que temos de lhe dar
sequência. Com duras críticas à "esquerda contemporânea", que na sua
opinião abusa na dose de "paternalismo", Bregman diz que ideias como o
rendimento básico universal, entre outras (como a semana de trabalho
de 15 horas), são "o corolário da social-democracia" e a resposta para
o futuro que aí vem. Basta que haja "coragem política" para mudar os
"disparates" que existem no Estado Social que temos.

A ideia de um rendimento básico universal e incondicional é antiga mas
tem ganho algum mediatismo recentemente. Mas há diferentes modelos:
qual é o que propõe no seu livro?
Há várias versões de rendimento universal, algumas que defendo, outras
que acho que seriam desastrosas. A minha proposta é de um rendimento
básico garantido, que funciona como um "chão" na distribuição de
rendimentos, para que ninguém, absolutamente ninguém, viva na pobreza.
Neste momento, é a opção mais exequível, mais realista no curto prazo.
No fundo, significa que estar vivo sem estar na pobreza torna-se um
direito, consagrado no 25º artigo da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, em vez de ser algo visto como um favor, que é o que acontece
na prática.

Existe algo parecido em Portugal e noutros países, o chamado
rendimento social de inserção, também conhecido como rendimento mínimo
garantido. Mas não deixa de ser condicional, porque pressupõe um
contrato de inserção, existe um processo individual, etc. No modelo
que defende, a diferença é que seria um rendimento incondicional…
Sim, totalmente incondicional, sem burocracias, sem os processos
individuais de que fala. Se olharmos para o Estado Social que temos
hoje, o que é que ele faz? Pedimos às pessoas, constantemente, para
provarem que estão suficientemente doentes, que estão suficientemente
deprimidas, a cada duas semanas têm de se deslocar à segurança social
e provar que, "sim, sim, continuo arduamente à procura de trabalho" ou
"sim, sim, continuo doente ou deprimido". Todo este processo cria
depressão, cria doença, cria estigma, cria dependência. Está a agravar
o problema que era suposto resolver.

Se existisse um rendimento básico, o que aconteceria, então?
Aí estaríamos a dizer às pessoas, a todas as pessoas, que acreditamos
na sua responsabilidade e acreditamos que muitas delas podem ter
ótimas ideias. A forma como tratamos as pessoas é um fator que ajuda
muito a determinar a forma como elas se comportam. Se tratarmos as
pessoas de forma degradante, elas vão ficar deprimidas, é claro.

Já esteve num centro de emprego, alguma vez?
Já estive em muitos, especialmente na Holanda. E sabe o que mais me
surpreendeu? Foi que as pessoas que lá trabalham são, muitas vezes, os
primeiros defensores do rendimento básico, porque eles sabem que o
trabalho que fazem – esta ideia de Estado Social — é um disparate.
Eles sabem-no, melhor do que ninguém, e também ficam deprimidos com
isso. Veem com ótimos olhos um sistema diferente, ainda que isso
implique provavelmente que perderiam os empregos.

Voltando um pouco atrás: dizia há pouco que há modelos de rendimento
básico com que não concorda. Pode dar exemplos?
Bem, nos Estados Unidos da América há algumas correntes de libertários
que defendem que se acabe com o Estado Social, a saúde, a educação e
quer-se trocar tudo por um cheque simples. Não defendo isso — acho que
o rendimento básico deve ser um suplemento para atingir os objetivos
da social-democracia. Na verdade, acho que seria o corolário da
social-democracia — e seria barato, simples e avançará se houver
vontade política para isso. O capitalismo trouxe-nos progressos
inquestionáveis, mas temos de lhe dar sequência fazendo perguntas
muito básicas como o que é o crescimento, o que é a produtividade e o
que é o trabalho e a remuneração. Continuamos agarrados a noções de
trabalho, de crescimento económico, que são dos séculos passados.

Porque é que o rendimento básico incondicional, neste caso o modelo
que mais defende — o rendimento básico garantido –, seria uma boa
ideia?
Um dos pensamentos cruciais do meu livro é que as pessoas merecem ter
a liberdade para tomar as suas próprias decisões e, na minha opinião,
um rendimento básico é algo essencial para que isso possa acontecer.
Daria a todos a oportunidade para correr riscos, tentar algo novo,
iniciar uma empresa, mudar de emprego, mudar-se para outra cidade,
cometer erros… A inovação e a criatividade dependem da capacidade para
correr riscos.

Há uma imagem que usa, que memorizei, no livro: não devemos dar um
peixe a um homem, mas também não faz sentido, ao contrário do que diz
o ditado, limitarmo-nos a ensiná-lo a pescar. Também é preciso dar-lhe
meios para comprar uma cana de pesca. O que é que lhe garante que, na
maior parte dos casos, este rendimento vai ser usado de forma
produtiva?
Provas científicas. Vezes sem conta já testámos esta ideia e
descobrimos que os verdadeiros entendidos naquilo que é a vida dos
pobres são… os pobres. E não pessoas que se auto-intitulam
especialistas. É este o grande problema com a esquerda contemporânea.
Há muita, muita gente na esquerda que é extraordinariamente
paternalista. Acreditam que sabem aquilo que é melhor para as pessoas.
Isso é uma visão incrivelmente arrogante, querem ajudar os pobres mas
nos seus termos — na realidade, não confiam em quem vota neles. Não
devemos dar peixe às pessoas, nem ensiná-las a pescar, talvez elas não
queiram nada disso, vamos admitir a possibilidade de que talvez as
pessoas saibam melhor do que nós aquilo que querem para a sua vida.

É muito crítico de alguma esquerda neste aspeto. E que valores
normalmente associados à direita podem encontrar-se nas propostas do
rendimento básico universal?
Devemos olhar para o rendimento básico garantido como "capital de
risco" (venture capital) virado para as pessoas, porque dá asas à
criatividade. Em muitas coisas eu tenho visões muito próximas da
direita liberal: acredito na liberdade individual, acredito na
responsabilidade individual — só que defendo que, então, temos de dar
às pessoas alguns meios para poderem fazer escolhas diferentes. Porque
está provado que a pobreza tolda o raciocínio: o escritor George
Orwell sentiu isso na pele e descreveu, mais tarde, como "a pobreza é
a aniquilação do futuro".

O que é que faz com que o rendimento básico seja uma boa solução tanto
para uma favela no Rio de Janeiro como para as nossas sociedades, para
mim e para si, em Lisboa ou em Amesterdão?
No imediato, estas propostas são mais promissoras para os países em
desenvolvimento. Por uma razão simples. Veja um país como a Índia: têm
centenas e centenas de programas anti-pobreza mas a quantidade de
dinheiro que realmente chega às pessoas que realmente precisam dele é
muito pequena. Devemos eliminar os intermediários, dar o dinheiro
diretamente às pessoas, isso é muito mais eficaz.

E nos países desenvolvidos? Na Holanda, em Portugal, que lugar é que
estas propostas podem ter?
Na Europa, pelo menos no país em que cresci, a Holanda, não há um
problema tão grande de corrupção, mas mesmo assim acredito que o
rendimento básico teria potencial para mudar muita coisa. E faria
sentido por uma simples razão: porque a pobreza sai-nos caríssima:
estamos a gastar milhares de milhões em custos com saúde, taxas de
criminalidade mais elevadas, miúdos a não terem sucesso escolar, tudo
isso vem da pobreza. É mais barato erradicar a pobreza na origem do
que combater os sintomas da pobreza — e não devemos criar um
rendimento básico por uma questão de superioridade moral, mas porque
também será bom para toda a gente.

Bom para os pobres e para os ricos?
Os ricos também teriam muito a ganhar com o rendimento básico, porque
todos ganhamos em viver numa sociedade mais próspera, em que todos
podem contribuir e em que não há sem-abrigo na rua. Além disso, temos
de olhar para o rendimento básico, pelo menos no meu modelo, em termos
líquidos — alguém mais abastado ao receber também iria pagar mais
impostos, pelo que esta pode (e deve) ser uma ferramenta de redução de
desigualdade. Numa primeira fase, claro, teríamos de financiar esta
medida com impostos, não concordo que se deva imprimir dinheiro para
dar às pessoas, e o Banco Central Europeu também não será muito adepto
dessas soluções.

Mas quanto é que custaria tirar as pessoas da pobreza por estas vias?
Seria muito barato. Basta pensar que no país com a maior taxa de
pobreza no mundo desenvolvido — os EUA — um rendimento básico
garantido custaria 0,6% do PIB. É algum dinheiro — são cerca de 350
mil milhões de dólares — mas é algo perfeitamente exequível. Comparado
com os benefícios, quanto se iria poupar em custos com saúde, com o
crime? Há um estudo que estima que o custo da pobreza infantil nos EUA
é de mais de 500 mil milhões de dólares. É só fazer as contas…

Certo, mas temos de provar que o custo com o rendimento básico
incondicional seria totalmente eficaz ou, pelo menos, muito eficaz, na
eliminação dos problemas…
Os dados que temos mostram que seria muito eficaz, mas a impressão
intuitiva de muita gente é que se toda a gente recebesse um mínimo
muita gente iria deixar de trabalhar e produzir. Claro que, se assim
fosse, seria uma muito má ideia, porque o valor do rendimento seria
ofuscado pelo aumento dos preços que seria consequência de uma quebra
na produção (que faria subir os preços).

Acredita que não seria assim?
Deixe-me responder-lhe da seguinte forma: se perguntarmos a alguém o
que fariam, eles próprios, se tivessem um rendimento básico
incondicional normalmente a resposta é algo do género: "Sim, claro,
tenho ótimas ideias e ambição, iria usar o dinheiro para fins
produtivos". Mas quando se pergunta o que acham que as outras pessoas
iriam fazer com o dinheiro, é aí que surge o ceticismo, achar-se que
os outros vão esbanjar o dinheiro. Por isso é que os críticos do
rendimento básico universal têm de olhar para os dados científicos que
existem, e não confiar em intuições ou juízos de valor.

E o que dizem os dados científicos?
Em todos estes países, ao longo da História, sempre que se
experimentou, deu bom resultado. No livro Utopia para
Realistasdescrevo em pormenor o sucesso retumbante que foi um
exercício que foi feito numa pequena vila canadiana chamada Dauphin —
um programa que não teve sequência e caiu no esquecimento porque o
governo mudou, a nível nacional. Não há um único caso de um programa
que tenha corrido mal, todos melhoraram a saúde, a vida familiar das
pessoas, cortaram drasticamente as taxas de criminalidade. Só é
preciso coragem política para discutir estes temas e perceber que é
preciso uma nova resposta para um mundo novo, marcado pela inovação
tecnológica e os impactos que ela já está a ter.

Existem, ou não, empregos que ninguém gosta mas que são necessários,
portanto a única forma de alguém os fazer é pagando? Quem os fará se
puder receber, em vez disso, um rendimento básico incondicional? Não é
realista pensar que a inovação tecnológica vá dispensar todos estes
empregos…
Vamos imaginar que trabalha na recolha de lixo. E odeia o seu emprego.
Acredito que algumas pessoas que trabalham na recolha de lixo não
odeiam o emprego, mas vamos assumir que, no seu caso, odeia este
trabalho. Passa a receber um rendimento básico. O que vai fazer?
Possivelmente vai dizer: "Sabem que mais, estou disposto a continuar a
fazer este trabalho mas terão de pagar-me mais, e dar-me as melhores
condições possíveis". Caso contrário, sairei e tenho sempre a opção de
receber o rendimento básico. Isto vai dar melhor posição negocial a
quem tem estes trabalhos que são muito difíceis de fazer mas têm um
grande valor. Professores, enfermeiros, cuidadores… o trabalho vai,
cada vez mais, ser mais ou menos valioso consoante o seu valor para a
sociedade e não consoante o ordenado que pagam.

Como?
Pense o seguinte: Imagine que tem um "emprego da treta", como lhes
chamo. Está num escritório a reencaminhar e-mails inúteis, de umas
pessoas para outras, a escrever relatórios que nunca ninguém vai ler,
como tem uma função pouco importante (e facilmente substituível, um
dia destes, por um robô), não terá grande vantagem em exigir melhores
condições, porque a função não tem valor para a sociedade. Assim,
estes empregos vão perder valor, até à sua progressiva eliminação. Já
o trabalho importante vai continuar a ser feito, e vai ser mais bem
pago.

E os outros trabalhos?
Temos de refletir sobre a nossa definição de produtividade… Um
matemático que trabalhou no Facebook lamentou, recentemente, que "os
melhores cérebros da minha geração dedicam os seus dias a encontrar
formas mais engenhosas de levar pessoas a clicarem em anúncios
publicitários". E vejo uma coisa parecida no meu país, na Holanda,
onde tanta gente com quem cresci trabalha no setor financeiro e no
planeamento fiscal — e diz-se que são altamente "produtivos". Sabe
porquê? Não há ditador internacional que não tenha dinheiro na Holanda
e há milhares de jovens incrivelmente inteligentes que podiam ter-se
tornado grandes matemáticos, ótimos médicos, investigadores na área da
saúde, para descobrir a cura para o cancro, mas o que fazem? Estão a
desperdiçar o tempo a ajudar os ricos e os ditadores a fugir aos
impostos.

Professores, enfermeiros, cuidadores... o trabalho vai, cada vez mais,
ser mais ou menos valioso consoante o seu valor para a sociedade e não
consoante o ordenado que pagam.

Como é que o rendimento básico ajudaria em matérias como o
meio-ambiente e as alterações climáticas, ou nas taxas de natalidade
baixas e nos desafios demográficos?
Sabemos que se dermos mais flexibilidade às mulheres e às famílias,
isso leva a um aumento das taxas de natalidade. E o rendimento básico
seria, também, de certa forma, o reconhecimento do trabalho doméstico
como algo muito valioso que não é pago e foi, ao longo da História,
feito sobretudo pelas mulheres. Quanto ao meio-ambiente, acredito que
a par do rendimento básico viriam semanas de trabalho mais curtas, de
15 horas, como previu John Maynard Keynes, o que seria não só ótimo
para as famílias como para a pegada ecológica, como já foi estudado. O
sistema que temos atualmente, além de contribuir para a insatisfação
com a vida, estimula o consumismo desenfreado, o que é péssimo para o
ambiente, e o que o rendimento básico iria encorajar era comprar menos
coisas de que não precisamos.

Nota um aumento do interesse por este tema do rendimento básico, nos
últimos anos?
Só para terminar, e para ser claro: não acho que o rendimento básico
seja a panaceia que fará com que todos estes problemas acabem. Mas
acho que nos ajudaria a mover no sentido de uma sociedade muito
diferente, onde as pessoas se dedicam a fazer trabalho com mais
significado. Mas, sim, quando comecei a escrever o livro, em 2014, o
tema do rendimento básico estava um pouco morto. Agora está em todo o
lado, na Finlândia estão a fazer experiências, no Canadá, na Escócia
também já anunciaram alguns programas-piloto, estão a fazer uma
experiência enorme no Quénia. Até em Silicon Valley há muita gente
interessada neste tema.

Por falar em Silicon Valley, uma das figuras que tem aparecido a
defender a ideia de um rendimento universal é Mark Zuckerberg, o
multimilionário fundador do Facebook. É um apoio bem-vindo?
Se ajuda a dar à ideia mais notoriedade, ótimo, mas desconfio muito
das verdadeiras intenções destes tipos. Se olharmos para empresas como
o Facebook e o Google, estas não são empresas que tenham como objetivo
fazer-nos mais felizes. Estão apenas a tentar obter a nossa atenção, e
são muito bons nisso. Há montanhas de estudos que mostram que as
pessoas que apagam a conta do Facebook se tornam, instantaneamente,
mais felizes. Então porque é que não o fazem, se as provas são
inquestionáveis? Será pela mesma razão por que não deixam de fumar? Há
alguma viciação num modelo económico que nos está a deixar doentes. E
se Zuckerberg quer mesmo ajudar, talvez uma boa forma de começar é a
empresa pagar todos os impostos que seria justo que pagasse.

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# Rendimento básico: livre de obrigações ou participativo?

http://observador.pt/opiniao/rendimento-basico-livre-de-obrigacoes-ou-participativo/

Roberto Merrill 27/1/2018, 10:16

Aquilo que a justiça deve distribuir antes de tudo é igualdade de
oportunidades no acesso à liberdade. Os argumentos contra e a favor de
um Rendimento Básico Incondicional, para todos.

(Este artigo foi escrito com Catarina Neves)

Mesmo admitindo que um Rendimento Básico Incondicional (RBI) pode ser
eficaz na luta contra a chamada armadilha da pobreza e o desemprego (e
estas são de facto hipóteses plausíveis que estão a ser testadas por
exemplo na experiência-piloto finlandesa sobre RBI), podemos ser
contra o RBI essencialmente por causa da sua incondicionalidade.

Há dois aspetos da incondicionalidade que geram mais polémica: o facto
de o RBI poder ser atribuído sem condição de recursos, ou seja não
está condicionado pelo rendimento que o cidadão aufere e o facto de a
sua atribuição não estar condicionada à obrigatoriedade de trabalhar.

Vamos apenas concentrar-nos na discussão do segundo aspeto, isto é, no
facto do RBI ser incondicional no sentido de livre de obrigações,
incluindo a de trabalhar, pois este é um aspeto basilar do RBI. Esta
oposição subdivide-se em dois principais argumentos:

(1) Argumento ético: se não é obrigatório trabalhar, então isso é
imoral, já que o RBI promove modos de vida moralmente questionáveis,
em particular um modo de vida de ócio e preguiça.
(2) Argumento político: se não é obrigatório trabalhar, então isso é
injusto, uma vez que para que uns possam viver na ociosidade, outros
têm de trabalhar.

O argumento ético (1) remete para uma preocupação legítima, mas com um
argumento fraco, uma vez que remete para uma ideia demasiado
paternalista para regimes políticos que respeitam a liberdade das
pessoas de viverem como bem entenderem desde que não prejudiquem os
outros. Que o argumento ético contra o RBI seja fraco não implica ser
contra uma ética do trabalho na nossa vida pessoal, implica apenas que
o argumento não é pertinente como refutação do RBI.

Contrariamente ao argumento ético, o argumento político (2) é forte
pois está ancorado numa conceção sobre o que é justo. É este debate
público sobre o que é justo que devemos promover e não o ético. Ora é
frequente que na discussão pública os dois debates se misturem, o que
a torna um pouco confusa. O argumento político contra o RBI divide-se
por sua vez em dois argumentos: o argumento da justiça produtiva e o
argumento da justiça distributiva:

(1) Argumento da justiça produtiva:

Cada pessoa deve à sociedade a quantidade de trabalho que a sociedade
precisa para funcionar e a sociedade deve a cada pessoa o que ela
precisa para viver. Ora receber um RBI sem dar nada em troca à
sociedade viola esta reciprocidade. Isto implica que um rendimento
básico apenas pode ser distribuído em troca de uma contribuição
produtiva, e sem isso, poderão existir situações de "exploração" dos
trabalhadores pelos "preguiçosos". Logo, o argumento da justiça
produtiva implica a defesa de um rendimento participativo, graças ao
qual cada pessoa, na medida das suas capacidades, dá à sociedade a
quantidade de trabalho que a sociedade precisa para funcionar e a
sociedade dá a cada pessoa o que ela precisa para viver. De acordo com
esta conceção, a atribuição do RBI não é legítima, uma vez que por
definição é uma medida livre de obrigações.

No entanto, podemos relativizar a posição da justiça produtiva
enquanto oposição ao RBI por três razões:

O usufruto do ócio e de momentos de lazer não é bom apenas para ricos.
O RBI permite mitigar a injustiça que existe entre as oportunidades
dos ricos e as oportunidades dos pobres quando se trata de "gozar o
ócio".
A redução do trabalho disponível graças aos fenómenos da automação que
tenderá a reduzir/reformular os postos de trabalho disponíveis.
O facto de o RBI eliminar ou reduzir o efeito da chamada armadilha da
pobreza (já que o RBI não se perde quando se obtém um emprego),
encorajando por isso à adesão ao mercado de trabalho (vs viver apenas
de apoios do Estado).

Ainda que sejamos adeptos do argumento da reciprocidade e consequente
ideia de um conceito de justiça produtiva que depende do nosso papel
enquanto cidadãos que contribuem para o bem comum de todos, ainda
assim, o RBI pode ter grandes benefícios:

Impede penalizar os que não trabalham por questões de doença ou
incapacidade, já que nunca há erros na atribuição de um RBI, porque é
para todos!
Possibilita a remuneração de trabalho produtivo não remunerado o que
impede a "exploração" daqueles que têm bons salários sobre o que
trabalham em casa sem renumeração (por exemplo os cuidadores).
Aumenta o poder de negociação e a influência dos mais vulneráveis no
mercado de trabalho. O RBI permite reduzir os efeitos da exploração
dos mais vulneráveis pelos mais ricos e influentes que podem
desempenhar trabalhos de que gostam e dos quais tiram prazer, porque
existem outros que desempenham os trabalhos menos qualificados e mais
mal pagos. O RBI contribui assim a promover a igualdade de
oportunidades na capacidade de negociação.

No entanto, consideramos que a discussão sobre a justiça distributiva
poderá ser ainda mais relevante face à ideia por detrás da justiça
produtiva, como se as questões de justiça produtiva apenas possam e
devam ser decididas quando as questões mais fundamentais da justiça
distributiva forem tratadas.

Esta prioridade torna-se mais clara se atentarmos no seguinte exemplo:
as riquezas que herdámos em comum das gerações anteriores pertencem a
todos, e é a partir desta repartição justa das riquezas que os
cidadãos estão em posição de igualdade para negociar os princípios da
justiça produtiva.

Assim, só quando já existir uma distribuição justa da posse dos
recursos comuns entre os membros de uma mesma sociedade, é que as
pessoas podem negociar os termos da justiça produtiva, nomeadamente
qual a forma de distribuir o excedente produzido graças à cooperação
de todos (quer seja através de um critério de mérito, ou ainda pela
incapacidade de trabalhar, por exemplo). Portanto é ao nível mais
fundamental da justiça distributiva que se decide se o RBI é ou não é
justo e não ao nível da justiça produtiva.

(2) Argumento da justiça distributiva:

Dito de maneira demasiado sumária, parece-nos que aquilo que a justiça
deve distribuir antes de tudo é igualdade de oportunidades no acesso à
liberdade. A justiça deve maximizar o potencial de ser livre – a
capacidade de escolha – de todos e em prioridade a liberdade das
pessoas mais vulneráveis na sociedade. O acesso a um RBI surge como
uma forma de distribuir de forma mais justa as oportunidades das
pessoas em serem livres, juntamente com o acesso a uma educação
pública e com o acesso público aos cuidados de saúde, sendo estes
distribuídos de forma incondicional.

O RBI permite que cada um tenha uma parte justa da riqueza que nos foi
transmitida a todos e em comum pelas gerações anteriores à nossa,
riqueza essa que ninguém na geração atual fez o que quer que fosse
para obter. Uma vez feita essa distribuição justa, podemos por fim
pensar na justiça produtiva, que distribui a riqueza em função do que
cada um produz.

Os impostos que podem ser levantados para financiar um RBI não devem
ser vistos como meios de taxar a riqueza produzida pelos produtores
atuais, mas sim como meios de taxar os produtores pelo privilégio e a
sorte que tiveram em utilizar para beneficio próprio riqueza que
recebemos coletivamente das gerações anteriores (considerado para
alguns uma espécie de pré-distribuição).

Em conclusão, um rendimento participativo justifica-se mais facilmente
ao nível da justiça produtiva, embora como vimos, um RBI também se
possa justificar por essa via. Mas é ao nível mais fundamental da
justiça distributiva, que o RBI livre de obrigações se justifica mais
facilmente, da mesma maneira que justificamos o benefício universal e
incondicional à educação e saúde públicas. O RBI à luz da justiça
distributiva legitima-se enquanto forma de igualar as oportunidades de
todos sermos livres.

Tudo isto é muito bonito, mas trata-se de filosofia política, e mesmo
convencidos da sua veracidade, a verdade por vezes não chega.
Conseguir traduzi-la numa linguagem política que seja acessível a
todas as pessoas e que permita gerar o debate público, isso é outra
dificuldade.

Roberto Merrill é Professor Auxiliar na Universidade do Minho e
Investigador no Centro de Ética, Política e Sociedade da mesma
universidade. É também Presidente da Associação pelo Rendimento Básico
Incondicional – Portugal.

Catarina Neves é Professora Assistente na Nova SBE. É também
consultora em responsabilidade social na empresa Sair da Casca.

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# Estudo do governo admite Reino Unido pior fora da União Europeia em qualquer cenário

http://observador.pt/2018/01/30/estudo-do-governo-admite-reino-unido-pior-fora-da-uniao-europeia-em-qualquer-cenario/

Estudo confidencial do governo britânico analisou impacto do Brexit na
economia britânica e, em qualquer um dos cenários considerados
plausíveis, assume que o Reino Unido estará pior fora da União.

Nuno André Martins

O Reino Unido ficará pior fora da União Europeia em qualquer cenário
considerado plausível pelo próprio governo britânico, de acordo com um
estudo confidencial que foi realizado pelo governo inglês para estudar
os impactos do Brexit na economia britânica. O estudo foi dado a
conhecer esta segunda-feira pelo Buzzfeed.

Depois de uma campanha intensa e polémica que levou ao 'sim' no
abandono do Reino Unido da União Europeia, o governo mudou e os que
defendiam a saída acabaram por assumir cargos governamentais, sendo o
caso mais proeminente o de Boris Johnson, antigo presidente da câmara
de Londres que atualmente desempenha o cargo de ministro dos Negócios
Estrangeiros.

No entanto, e apesar dos vários pedidos dos grupos políticos e da
comunicação social, o governo de Theresa May tem-se recusado divulgar
a análise ao impacto do Brexit na economia. Esta segunda-feira, o
Buzzfeed dá a conhecer os resultados de um estudo com data de janeiro
de 2018, indicando que em qualquer um dos três cenários mais
plausíveis — em que o Reino Unido consegue um acordo de livre comércio
abrangente com a União Europeia, um Brexit sem qualquer acordo, ou um
Brexit com o Reino Unido a continuar no mercado único –, o governo
britânico antecipa que o Reino Unido estará pior num prazo de 15 anos
do que se continuasse no Reino Unido.

Sem um acordo com a União Europeia, a situação seria ainda mais negra.
De acordo com a análise do governo britânico, o crescimento económico
cairia 8%, em comparação com as atuais projeções. Mesmo continuando no
mercado único, o melhor dos mundos num cenário de Brexit — e que a
União Europeia já rejeitou –, a economia cresceria menos 2% que o
previsto.

A partir do momento em que o Reino Unido sair da União Europeia estará
sujeito às regras da Organização Mundial do Comércio. Sem um acordo
com o bloco, e com os restantes países, a economia britânica fica
sujeita a condições mais duras nas transações com os países, incluíndo
tarifas mais pesadas sobre as suas exportações.

Na análise feita pelo governo britânico, mesmo com a assinatura de
acordos de comércio, a melhoria do crescimento não seria muito
expressiva. No caso de um acordo com os Estados Unidos, parceiro
tradicional do Reino Unido e a maior economia do mundo, a economia só
cresceria mais 0,2% que num cenário de ausência de acordos, o mesmo em
que estaria a crescer menos 8%.

O mesmo documento prevê que os quase todos os setores da economia
fiquem pior do que estão em todos os cenários contemplados. Os mais
afetados são precisamente onde estão os trabalhadores com menos
qualificações e que se aponta que tenham sido os que votaram a favor
desta medida, em setores como a indústria, retalho, automóvel, bebida
e restauração. Só a agricultura não seria afetada negativamente pela
saída da União Europeia.

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sexta-feira, janeiro 19, 2018

# Os mitos educativos que estão a deixar as crianças viciadas em tecnologia

[Ver videos no link]
http://observador.pt/especiais/os-mitos-educativos-que-estao-a-deixar-as-criancas-viciadas-em-tecnologia/

16 Janeiro 20181.117
Ana Cristina Marques

Há mitos na educação que a ciência rejeita e que ajudam a propagar o
vício precoce nas tecnologias digitais. Não, a criança não precisa de
smartphones para estimular a sua "inteligência ilimitada".

Dois dos maiores investidores da Apple enviaram, esta semana, uma
carta aberta à empresa com um pedido explícito e desconcertante:
combater o crescente vício das crianças face ao uso do iPhone e da
internet (redes sociais incluídas). A Jana Partners e o California
State Teachers' Retirement System — que, juntos, controlam 2 mil
milhões de dólares de ações da Apple — pediram a criação de
ferramentas adequadas. Em resposta, um responsável de comunicação da
gigante de tecnologia disse que a empresa "sempre se preocupou com as
crianças e trabalha arduamente para criar produtos que inspirem,
entretenham e eduquem as crianças".

Nos últimos anos tem proliferado a ideia de que as aplicações e os
dispositivos chamados "inteligentes" podem potenciar a inteligência
das crianças — " ideia" porque, ao contrário do que se possa pensar,
são muitas as teorias sem real base científica. Catherine L'Ecuyer,
investigadora na área da educação e autora do novo livro Educar na
Realidade, defende que as empresas que distribuem ferramentas digitais
fazem-no sob a premissa de que estas promovem a estimulação precoce
das crianças. "Dizem-nos que os nossos filhos têm um potencial
ilimitado, que devemos aproveitar ao máximo a 'janela de oportunidade'
dos três primeiros anos. Dizem-nos que estas aplicações se adaptam ao
estilo de aprendizagem dos nossos filhos e ajudam a desenvolver cada
um dos hemisférios cerebrais", escreve L'Ecuyer na nova obra.

As afirmações acima descritas — que a cultura popular ajudou a
propagar — não passam de neuromitos, verdades infundadas, teorias com
as quais a ciência não se identifica. Segundo a autora, grande parte
da população não sabe que estes e outros argumentos de venda, que
ajudaram a garantir o sucesso comercial de produtos tecnológicos,
"carecem de fundamento educativo-científico".

O livro da editora Planeta está à venda desde o início do mês por 14,95 euros.

"A criança tem uma inteligência ilimitada". Esses e outros neuromitos

Os neuromitos são aquilo que a OCDE descreve como "más interpretações
geradas por um mau entendimento, uma leitura equivocada e, em alguns
casos, uma deformação deliberada dos factos científicos com o objetivo
de usar a investigação neurocientífica na educação e noutros
contextos". São interpretações que ocorrem na literatura popular e que
acabam por criar premissas falsas sobre as quais se constroem métodos
educativos, diz a autora citada.

Os departamentos de marketing de muitas empresas de software e de
hardware apropriaram-se deste mito [a criança só usa 10% do seu
cérebro e tem uma inteligência ilimitada] para convencer os 'bons
pais' a adquirirem os seus produtos para o bom desenvolvimento
cerebral dos filhos", Educar na Realidade pág. 23

"A criança tem uma inteligência ilimitada" e "A criança só usa 10% do
seu cérebro" são dois exemplos de neuromitos apresentados pela autora,
que assegura que a sua rápida difusão resulta da"vaidade e da
dificuldade em reconhecer as limitações humanas". L'Ecuyer cita o
professor de neurociência cognitiva Barry Gordon, investigador na
Universidade do Hospital Johns Hopkins, que assegura que "usamos,
virtualmente, cada parte do cérebro" e que "quase todo o cérebro está
ativo quase sempre". O neuromito apresentado difundiu-se a grande
velocidade e prova disso é o estudo da Nature, de 2014, que mostrou
que 48% dos professores ingleses (46% na Holanda, 50% na Turquia, 43%
na Grécia e 59% na China) acreditavam nele.

O mito de que utilizamos apenas 10% do cérebro, em particular, tem
persistido ao longo dos anos. Em 2014 estreava nas salas de cinema o
filme Lucy, interpretado por uma Scarlett Johansson cuja capacidade
evolutiva do cérebro está no centro da história. "Estima-se que a
maioria dos seres humanos use apenas 10% da capacidade cerebral.
Imagine se conseguíssemos ter acesso a 100%. Aconteceriam coisas
interessantes", é uma das falas no filme, uma deixa do professor
Norman, interpretado por Morgan Freeman.

"Talvez o mito seja perpetuado porque as funções de que temos
consciência – memória, capacidade cognitiva, visão ou linguagem –
estão em regiões bem demarcadas no cérebro. Mas há muitas atividades
comandadas pelo nosso cérebro que não são conscientes, como o
equilíbrio ou o ritmo cardíaco", disse João Relvas, neurocientista no
Instituto de Biologia Molecular e Celular, ao Observador em 2014.
"Além disso, há muitas funções que não são exclusivas de uma única
parte do cérebro."

José Ramón Gamo, neuropsicólogo infantil, e Carme Trindade, professora
na Universidade Autónoma de Barcelona, são coatuores do livro
Neuromitos en Educación. Citados pelo El País, escrevem que a
"neurociência demonstrou que, na realização de tarefas, utilizamos
100% do nosso cérebro" e que "tecnologias como a ressonância magnética
ajudaram a conhecer melhor os níveis de atividade cerebral e provaram
que somente em casos de danos graves provocados por uma lesão cerebral
é que se observam áreas inativas no cérebro".

Outro neuromito listado pela OCDE é aquele que defende que cada
hemisfério é responsável por um estilo de aprendizagem diferente.
Segundo a teoria da dominância cerebral, que carece de base
científica, "as pessoas que usam mais o hemisfério direito são mais
criativas e artísticas, enquanto as que usam mais o esquerdo são mais
lógicas e analíticas". Escreve L'Ecuyer que são vários os estudos que
descredibilizam esta teoria, ainda que haja atividades adjudicadas a
mais um hemisfério do que a outro (como é o caso da linguagem face ao
hemisfério esquerdo). Não só os estudos observam que o cérebro
trabalha como um todo, como a autora assegura não existirem provas de
dominância cerebral nas pessoas, "o que, supostamente, teria
repercussões no estilo de aprendizagem".

A autora dá como exemplo um estudo de 2013, realizado a 1.000 pessoas
dos 7 aos 29 anos, que não encontrou prova de dominância cerebral. O
diretor do estudo e professor de neurorradiologia na Universidade do
Utah, Jeff Anderson, disse: "A comunidade neurocientífica nunca
aceitou a ideia de tipos de personalidade com dominância cerebral
direita ou esquerda. Os estudos de lesões cerebrais não sustentam essa
teoria, e a verdade é que seria altamente ineficaz se uma parte do
cérebro fosse, sistematicamente, mais ativa do que outra".

Nem de propósito, em março do ano passado 30 académicos dos universos
da neurociência, educação e psicologia assinaram uma carta publicada
no britânico The Guardiam onde expressavam preocupação tendo em conta
a popularidade do método de aprendizagem em causa. De acordo com o
artigo, os cientistas apelavam para que os professores abandonassem
este neuromito, já que ensinar as crianças de acordo com o "estilo de
aprendizagem individual" não obtém melhores resultados e deve ser, por
isso, posto de lado em detrimento de práticas baseadas em evidências
científicas.

Na mesma lógica, também se qualificam como neurotimos as seguintes
premissas: "Um ambiente enriquecido aumenta a capacidade do cérebro
para aprender" e "Os três primeiros anos são críticos para a
aprendizagem, portanto, são decisivos para o desenvolvimento
posterior". No livro, L'Ecuyer cita um artigo da Nature Review
Neuroscience, de 2006, onde se lê:

"O mito do 'período crítico' sugere que o cérebro da criança não
funcionará adequadamente se não receber a quantidade adequada de
estímulos no momento correto. O ensino de algumas habilidades deve
ocorrer durante esse período crítico, caso contrário a janela de
oportunidade de educar estará perdida. O mito da sinaptogénese
(processo de formação das sinpases no cérebro) promove a ideia de que
se pode aprender mais se o ensino coincidir com os períodos deste
processo. (…) É preciso eliminar estes mitos."

O principal argumento que suporta esta ideia falsa, escreve a autora,
é aplasticidade do cérebro. "Isto é um facto, mas hoje sabemos que
isto ocorre durante toda a vida e não apenas nos primeiros anos". No
entanto, o verdadeiro problema, para L'Ecuyer, surge quando a
sociedade dá mais importância ao ganho de conhecimento durante este
período, feito sobretudo através do ecrã, em vez da dimensão afetiva.
É importante relembrar que o bom desenvolvimento de uma criança não
está diretamente relacionado com a quantidade de informação que
recebe, mas sim com o modelo de vinculação que tem com o seu cuidador.

"Durante os primeiros anos de desenvolvimento, os padrões de interação
entre a criança e o cuidador são mais importantes do que um excesso de
estimulação sensorial. A investigação sobre a vinculação sugere que a
interação interpessoal colaborativa, e não a estimulação sensorial
excessiva, é a chave para um desenvolvimento saudável", diz Daniel
Siegel, psiquiatra, biólogo, professor e membro executivo do Centro
para a Cultura, o Cérebro e o Desenvolvimento da UCLA, citado no livro
Educar na Realidade.

As consequências da adição ao ecrã na primeira infância

Já antes Catherine L'Ecuyer falou com o Observador, quando disse em
entrevista que as crianças "estão a viver como pequenos executivos
stressados", a propósito do livro Educar na Curiosidade. Nesta obra,
que chegou no início de 2017 a Portugal, a autora defende que o
excesso de estímulos associados às novas tecnologias inibem a
curiosidade natural das crianças — em situações mais extremas pode
dar-se o caso de as crianças passarem a depender de estímulos
externos, sendo que o próximo passo é a adição e a perda da
curiosidade que, por sua vez, dificulta o processo da aprendizagem.

Serve isto para explicar que na sua mais recente obra, L'Ecuyer
explica que as crianças precisam, sobretudo, de estabelecer relações
saudáveis com os seus cuidadores e que os ecrãs são, por vezes e de
certa forma, um obstáculo à criação de laços vinculativos, sobretudo
quando falamos da primeira infância. "O principal cuidador da criança
é o intermediário entre a realidade e ela. Dá sentido às
aprendizagens. Um ecrã não pode assumir esse papel porque não faz a
calibragem da informação à criança."

Para salientar a importância desta problemática, L'Ecuyer apresenta um
estudo realizado no Reino Unido em 2012, que mostra que 27% das
crianças dos 0 aos 4 anos usam computador e 23% usam a internet. A
autora dá ainda conta de investigações que demonstra que "as crianças
pequenas não aprendem palavras ou outros idiomas com os DVD, por muito
'educativos' que possam ser", e fala de estudos que estabelecem uma
"relação entre o consumo dos DVD prentensamente educativos e uma
diminuição no vocabulários dos bebés e no seu desenvolvimeno
cognitivo". Não é por acaso que a Academia Americana de Pediatria
recomenda que as crianças evitem o consumo de ecrãs até aos dois anos
— para as crianças com mais de dois anos, a Academia recomenda limitar
o consumo a menos de duas horas por dia.

Como estas investigações há outras. Aliás, os dois investidores da
Apple que escreveram a já referida carta, publicada no início da
semana em defesa das crianças, apoiaram-se em três estudos diferentes
para o efeito, tal como escreve a Business Insider:

um estudo de 2014, que envolveu 100 pré-adolescentes, permitiu
perceber que a metade que ficou sem acesso a tecnologia durante cinco
dias teve ganhos significativos de empatia;
outro estudo, de 2017, teve por base um inquérito a 1.800 jovens
adultos e encontrou uma relação linear entre a quantidade de redes
sociais usadas e a fraca qualidade da saúde mental;
a última investigação citada determinou que 86% dos americanos admite
verificar "constantemente" os dispositivos digitais, o que aumenta, na
maior parte dos casos, o stress (o inquérito online foi feito a mais
3.500 pessoas com mais de 18 anos); e mais de metade dos pais
questionados disse ter preocupações tendo em conta a influência das
redes sociais na saúde física e mental dos filhos.

O tema da adição e das consequências associadas ao uso das novas
tecnologias na primeira infância está na ordem do dia muito por causa
da carta aberta dirigida à gigante Apple, que já fez diferentes meios
de comunicação questionarem-se sobre o assunto. A CNN, por exemplo, dá
voz a Michael Bociurkiw, escritor regular naquele meio, que passa a
batata quente para as mãos da Apple, empresa que precisa de "garantir
que as crianças deixem de se viciar nos smartphones". No artigo de
opinão, Bociurkwi faz referência a mais estudos que mostram que as
crianças de dois anos que usam tablets estão a ter problemas de
concentração, dificuldades em mostrar empatia e até em ler expressões
faciais. Em cima da mesa estão também consequências como a depressão e
os diabetes, derivadas da imersão em ecrãs — os cenários descritos
tendem a ser mais gravosos em famílias com menos posses.

Curiosamente, o britânico The Guardian recorda esta semana a
entrevista que Steve Jobs deu em 2010 ao The New York Times, quando
disse que os seus filhos não usavam o iPad. "Nós limitamos a
quantidade de tecnologia que os nossos filhos usam em casa". À
semelhança de Jobs, também o co-fundador do Twitter e o ex-editor da
revista Wired limitam o tempo que os filhos passam de volta do ecrã.
"É como Adam Alter escreve no seu livro Irresistible: 'Parece que as
pessoas que criam produtos tecnológicos seguem a regra cardinal do
tráfico de drogas — nunca consumir o próprio produto'", lê-se no The
Guardian.

Quem também não deixa os filhos usar as redes sociais é Chamath
Palihapitiya, ex-vice-presidente do Facebook para a área de expansão
de utilizadores, que numa conferência na Stanford Graduate School of
Business, em dezembro último, afirmou que as redes sociais,
consideradas uma máquina que "explora vulnerabilidades na psique
humana", estão "destruir as bases da sociedade".

Numa situação sem precedentes, o relatório anual "Situação Mundial da
Infância" da UNICEF, divulgado em dezembro de 2017, foi todo ele
dedicado ao impacto da tecnologia digital nas crianças. Entre as
principais conclusões encontram-se as seguintes ideias:

um em cada três utilizadores de internet no mundo é uma criança;
os jovens pertencem ao grupo mais conectado;
muitas crianças têm uma pegada digital ainda antes de conseguirem
falar ou andar;
"A tecnologia digital pode ser uma mais-valia para crianças
desfavorecidas, ao proporcionar-lhes novas oportunidades para
aprender, socializar e até para se fazerem ouvir — ou pode ser mais
uma linha divisória. Milhões de crianças são deixadas de fora de um
mundo cada vez mais conectado".

Se em abril de 2013 a publicação The Atlantic falava numa geração
"touch-screen", tendo em conta crianças pequenas, hoje em dia há quem
fale numa "geração cordão", referindo-se a crianças e adolescentes que
não se conseguem desligar. Sem diabolizar as novas tecnologias, duas
psicólogas portuguesas — Ivone Patrão e Rosário Carmona e Costa,
autoras dos livros #Geraçãocordão – A geração que não desliga! e
iAgora? Liberte os seus Filhos da Dependência dos Ecrãs,
respetivamente — chegaram a conversar com o Observador sobre a
problemática do uso excessivo das novas tecnologias e a sua influência
em diversos aspetos da vida dos mais novos — desde as relações sociais
e familiares às novas formas de estudo.

À data, Ivone Patrão referiu um estudo do ISPA – Instituto
Universitário, por ela orientado, que determinou que 25% dos
adolescentes portugueses (tendo em conta uma mostra de três mil
inquiridos) são viciados em tecnologia.

O problema da multitarefa

"Gostaríamos de acreditar que a nossa atenção é infinita, mas não é.
Multitasking é um mito persistente. O que realmente fazemos é mudar
rapidamente a nossa atenção de tarefa em tarefa", escreveu Maria
Konnikova, autora do livro Mastermid: How to Think Like Sherlock
Holmes, num artigo de opinião no The New York Times, datado de 2012. O
estrangeirismo é utilizado para descrever a capacidade de fazer mais
do que uma tarefa ao mesmo tempo e, se em tempos teve em voga, agora
perde terreno para o monotasking, já considerado o termo do século XXI
para prestar atenção.

Catherine L'Ecuyer concorda: no livro já citado, diz que a multitarefa
é tida como uma crença popular que ganhou terreno na nossa sociedade,
muito embora não passe de um mito — as crianças até podem ser nativas
digitais mas, ao contrário do que os pais possam pensar, isso não faz
delas forçosamente melhores na multitarefa do que os adultos. "Também
eles [os nativos digitais] oscilam entre as diferentes atividades
tecnológicas que realizam, e essa oscilação tem o mesmo custo que tem
para os adultos", assegura L'Ecuyer.

E que custos são esses? De acordo com um estudo publicado em 2014, no
Journal of Experimental Psychology, interrupções de apenas dois ou
três segundos são o suficiente para os participantes duplicarem os
erros cometidos durante determinada tarefa. A isso acrescentam-se a
investigação da Universidade da Califórnia — que mostrou que trocamos
de tarefas cerca de 400 vezes por dia, daí estarmos tão cansados à
noite — e o estudo da Universidade de Stanford, que concluiu que os
alunos "que fazem multitarefa tecnológica obtiveram piores resultados
em todos os parâmetros".

A última palavra fica a cargo de Catherine L'Ecuyer: "Um estudo que
compara vários parâmetros cognitivos conclui que, hoje, uma criança de
11 anos tem um rendimento ao nível de uma criança de 8 ou 9 anos de
há… 30 anos! É preciso ver que papel podem ter tido os neuromitos, os
ecrãs e a multitarefa nessa mudança".

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segunda-feira, janeiro 15, 2018

# Estudo | 99% das pessoas com Síndrome de Down sentem-se felizes com a sua vida

http://observador.pt/opiniao/sera-que-nao-ha-lugar-para-eles-no-mundo/

Será que não há lugar para eles no mundo?

14/1/2018, 0:27

De acordo com a investigação científica, a esmagadora maioria das
pessoas com trissomia 21 declara ser feliz e dá felicidade aos seus
familiares. Será que não há lugar para eles no mundo?

De um modo geral, a legalização do aborto em vários países tem
ocorrido de forma faseada, começando pelo chamado sistema de
indicações, de causas determinadas, até chegar ao sistema de prazos,
que corresponde à sua liberalização. E entre essas indicações ou
causas conta-se, quase sempre, a situação em que o nascituro sofre de
doença grave e irreversível, como poderá ser a trissomia 21 (o chamado
aborto eugénico).

Parece que, em vários contextos, as consciências estão finalmente a
despertar para a particular gravidade da legalização do aborto nessa
situação, legalização que acompanhou historicamente as primeiras
inovações nesta matéria, tidas por mais moderadas, mas que não deixa
de representar um profundo retrocesso moral e civilizacional. É que a
gravidade dessa legalização não reside apenas no atentado à vida que o
aborto sempre representa, reside também na discriminação em função da
deficiência (num tempo que tanto proclama a igualdade e a rejeição da
discriminação). Uma discriminação dos mais fracos e vulneráveis. Uma
discriminação relativa ao mais básico dos direitos, pressuposto de
todos os outros, sem o qual outro tipo de proteção das pessoas com
deficiência perde quase todo o seu sentido.

Os resultados da legalização do aborto com este fundamento estão à
vista de todos: na Islândia não há praticamente crianças com trissomia
21 que tenham escapado ao aborto, na Dinamarca 98% das gravidezes em
que é detetada essa deficiência termina em aborto, no Reino Unido isso
sucede em 90% dos casos, em França em 77%. Há quem fale, a propósito,
de um genocídio silenciado e que não choca a sensibilidade da opinião
pública.

Parece que somos transportados aos tempos da Antiguidade clássica
pré-cristã, em que as crianças deficientes eram vítimas de
infanticídio ou abandono à nascença. Uma prática justificada por
grandes nomes dessa cultura, como Cícero e Séneca, e também presente
noutras culturas de várias latitudes. Uma prática cuja rejeição era um
sinal que identificava os primeiros cristãos, como indica a célebre
Carta a Diogneto. Com essa rejeição, nasceu a civilização cristã e
humanista, assente no respeito pela dignidade de toda e qualquer
pessoa, que vem marcando desde então, com imperfeições, as nossas
sociedades. É por isso que pode falar-se, a este respeito, em
retrocesso moral e civilizacional.

No entanto, vão-se dando passos no sentido de quebrar esse silêncio e
essa insensibilidade.

Reflexo de um despertar de consciências perante a gravidade desta
situação são a recente aprovação, pelo Senado do Estado
norte-americano de Ohio, da Lei de Não-Discriminação da Síndrome de
Down, que proíbe o aborto com esse fundamento, assim como a
apresentação no Parlamento polaco de um projeto de proibição do aborto
motivado pela deficiência do nascituro (a causa da esmagadora maioria
dos abortos praticados ao abrigo da legislação polaca, das mais
restritivas da Europa).

Para essa despertar de consciências também tem contribuído o
testemunho de pessoas com essa deficiência, apresentado em várias
instâncias políticas. Perante a justificação "piedosa" do aborto
nestes casos, como se o aborto fosse um ato de misericórdia que poupa
às suas vítimas uma vida infeliz (o que, mesmo que fosse verdade,
nunca justificaria que alguém se substituísse a essas vítimas para
formular esse juízo), esses testemunhos revelam que essas pessoas são
felizes, apesar das suas limitações.

Disse Charlotte Fien, uma jovem de 21 anos com trissomia 21, em março,
perante a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas: «Não estou
doente. Nenhum dos meus amigos com a síndrome de Down está a sofrer.
Temos vidas felizes. Temos apenas um cromossoma a mais. Somos seres
humanos. Não somos monstros. Não tenham medo de nós, Por favor, não
tentem matar-nos a todos»

E disse Frank Stephens, em outubro, perante uma comissão do Senado
norte-americano: «Sou um homem com a síndrome de Down e a minha vida
vale a pena ser vivida. (…) Somos uma inesgotável fonte de felicidade.
(…) Será que não há lugar para nós no mundo?»

Não são testemunhos isolados. São testemunhos corroborados pela
investigação científica. Um estudo de 2011, de Brian Skotko, Susan
Levine e Richard Goldstein, investigadores de Harvard, Self-perception
from people with Down-Syndrome, revela que a esmagadora maioria dessas
pessoas declara ser feliz e dá felicidade aos seus familiares.

"This study asks people with Down syndrome (DS), ages 12 and older,
about their self-perception so that their information could be shared
with new and expectant parents of children with DS. We analyzed valid
and reliable survey instruments from 284 people with DS on the mailing
lists of 6 non-profit DS organizations around the country. Among those
surveyed, nearly 99% of people with DS indicated that they were happy
with their lives, 97% liked who they are, and 96% liked how they look.
Nearly 99% people with DS expressed love for their families, and 97%
liked their brothers and sisters. While 86% of people with DS felt
they could make friends easily, those with difficulties mostly had
isolating living situations. A small percentage expressed sadness
about their life. In our qualitative analysis, people with DS
encouraged parents to love their babies with DS, mentioning that their
own lives were good. They further encouraged healthcare professionals
to value them, emphasizing that they share similar hopes and dreams as
people without DS. Overall, the overwhelming majority of people with
DS surveyed indicate they live happy and fulfilling lives."
in:
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/ajmg.a.34235/abstract

Será que não há lugar para eles no mundo?

Pedro Vaz Patto
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz

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sexta-feira, janeiro 12, 2018

# Luciano Floridi: “Eu não acredito em deus. Espero é que ele exista”

Um filósofo não crente que se dedica a discutir a possibilidade da
existência de deus e a ideia de esperança, tendo como pano de fundo as
revoluções tecnológicas que a humanidade enfrenta e as suas
implicações

Diogo Queiroz de Andrade in Público 26 de Dezembro de 2017

Juntar filosofia, fé, tecnologia e racionalidade na mesma conversa não
é óbvio. Mas é o caminho que está a ser tentado por Luciano Floridi,
um pensador italiano que trabalha no campo da ética da informação e
que explora as mudanças que a tecnologia tem imposto na sociedade. É
professor de Filosofia e director do Laboratório de Ética Digital na
Universidade de Oxford, em Inglaterra. O seu trabalho mais recente
tem-se dedicado às consequências sociopolíticas das mudanças
tecnológicas. O seu último livro, intitulado The Fourth Revolution –
How the Infosphere Is Reshaping Human Reality ("A Quarta Revolução -
Como a Infoesfera está a reformatar a realidade humana", ainda não
editado em Portugal), trata do impacto das tecnologias da comunicação
e informação na forma como olhamos para nós mesmos enquanto espécie e
enquanto indivíduos.



O autor veio a uma conferência sobre inteligência artificial, na
Universidade do Porto, abordar algo que normalmente está longe das
conversas sobre tecnologia: o divino. A sua ideia é que devemos
valorizar a esperança na possibilidade da existência de deus e que
isso é compatível com a racionalidade. Pelo meio critica a forma como
a tecnologia se quer tornar omnipotente e dominante, incluindo no
controlo da ideia e do ideal da esperança. O modo como Floridi cruza a
expectativa do divino com a crítica à fé desmesurada na tecnologia
como resolução para todos os problemas da humanidade foi o mote para
esta conversa.



Na sua apresentação mencionou que o valor mais alto da esperança deve
ser a existência do divino, que isso deve ser algo a que o ser humano
deve aspirar. Em contraponto, a utopia tecnológica quer propagar um
valor ainda mais elevado do que esse, porque afirma que no futuro a
evolução do ser humano vai fazer com que sejamos nós mesmos o divino.
Deixamos de precisar de deus, porque nos tornamos deus.

Sim, é exactamente isso que nos vendem, que nos tornaremos melhores e
mais poderosos. Num certo sentido é como na publicidade, que me quer
vender aquele carro e me diz que se eu o comprar fico mais
interessante e mais atraente. Mas é um disparate, eu ainda sou eu e
serei com ou sem carro. É um truque. Faz parecer que sim, que podemos
ser deus e o valor mais alto que existe no Universo.



Mas depois temos de olhar para a História: já tanta vez nos pusemos no
centro do Universo e fomos sempre arredados desse papel. Copérnico,
Darwin, Freud, Turing, todos eles foram pensadores que nos fizeram o
favor de se afastar do centro do Universo. Nós não somos o valor
supremo do Universo, há sempre pensadores que são suficientemente
inteligentes para perceber isso. Ou há algo mais – e eu não estou a
dizer que há, atenção –, ou então o cenário fica incompleto. E essa é
a deriva histórica que se verifica sempre que o homem se coloca no
centro do Universo.



Estamos num processo em que a religião das novas gerações poderá ser a
tecnologia. Yuval Noah Harari defende, no Homo Deus, que pode ocorrer
um movimento religioso face à tecnologia, tornando como inevitável uma
fé dominante nela... Isso não o preocupa?

Não há propriamente um problema quanto a uma tecno-igreja. Mas seria
uma oportunidade perdida, creio. Se não percebermos quão
extraordinários e simultaneamente limitados nós somos, estamos a
desperdiçar o nosso capital de análise. Noutro contexto, gosto de me
referir à humanidade como um erro lindo: e podemos olhar para a beleza
do erro ou para a dimensão errada da beleza. Somos ao mesmo tempo
capazes das coisas mais horríveis e das mais belas, o Holocausto e a
mão de David na Capela Sistina foram feitos pela mesma espécie...
Parece-me, nesse sentido, que é altamente limitador resignarmo-nos a
almejar aquilo que somos e que temos, mas gosto de acreditar que o
Universo contém mais do que isso.



O maior problema dessa tecno-fé ou tecno-religião é que coloca um
limite na esperança. Vê o indivíduo como o fim de tudo e limita o
alcance da esperança, que é uma forma de a matar. Tem tudo que ver com
a perspectiva: se eu for um pequeno pássaro numa jaula enorme, eu
posso não perceber que a jaula está lá – mas não é por eu não ter a
percepção da jaula que ela deixa de existir. Acredito que essa
limitação da esperança é um empobrecimento da humanidade. E há outro
problema: essa forma de pensar é também frustrante em termos de
ambições. Algumas das maiores realizações da humanidade ocorreram
porque sempre tivemos esperança em algo mais e melhor e nunca nos
contentamos com o que há.



O consumismo trata sempre de reduzir o espectro da esperança ao
objecto ou produto que está em frente aos nossos olhos. Se é
comprável, então está no limite da esperança – se não é comprável,
então não tem valor. Assim, o que é economicamente adquirível é o que
deve estar dentro do meu limite de esperança e nada mais – acho que é
uma tristeza pensar assim. Outra expressão desse pensamento é a
afirmação de que toda a política é económica. Não é! Há tantas coisas
mais: as finanças de um país são um meio para um fim, não são um
objectivo em si mesmas. Mas o horizonte de quem pensa assim é
reduzido.



A sua conclusão sugere que a humanidade deve caminhar para uma
teologia da esperança, certo?

Ter esperança implica acreditar em algo que não podemos provar nem
testar. Implica um salto de fé, implica simplesmente acreditar sem ter
demonstrações que ajudem nessa crença. Seria bom poder injectar alguma
dose de racionalismo nessa interacção que fazemos com a ideia de algo
transcendente. Nesse sentido a minha proposta é a de que não se
abdique da racionalidade, antes pelo contrário, que use mais
racionalidade e se faça mais reflexão. Em primeiro lugar, ter
esperança que deus exista é muito diferente de acreditar que ele
existe. Aliás, se eu acreditar, quero ter a certeza daquilo em que
estou a acreditar. Mas não preciso de chegar aí; preciso só de aceitar
a hipótese de que existe um valor transcendente no Universo – algo
mais do que aquilo que é fisicamente palpável.



Isto tem muito mais que ver com esperança do que com crença. E é aqui
que a esperança se torna uma suspensão da crença. Eu não posso
acreditar e decidir sim ou não pela existência do divino, porque não
tenho provas para o fazer. O que eu posso é desejar que sim, que
exista, até porque o mundo faria muito mais sentido. E seria muito bom
para a sociedade, porque nos permitiria ser ainda mais ambiciosos nos
nossos objectivos – indo muito para além da sociedade consumista em
que estamos.



E é por isso, por essa superação do ser humano, que um homem que não
acredita em deus se preocupa com a existência desse mesmo deus?

Sim. Mas note, não é uma preocupação. Eu não acredito em deus – eu
espero é que ele exista.

Nota: A International Conference on Artificial Intelligence and
Information foi organizada pela Associação Episteme & Logos com o
apoio do Mind, Language and Action Group, do Instituto de Filosofia da
Universidade do Porto

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# O que precisamos hoje?

"Hoje é preciso uma forma especial de coragem, diferente daquela que é
necessária no campo de batalha, uma coragem que nos faz erguer por
tudo o que consideramos ser correcto. Tudo o que é verdadeiro e
honesto. Um tipo de coragem que pode fazer frente à subtil corrupção
dos cínicos, para mostrar ao mundo que não temos medo do futuro"

Rainha Isabel II de Inglaterra
(na mensagem de Natal de 1957)

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terça-feira, janeiro 09, 2018

# Investidores da Apple pedem medidas contra o vício das crianças no iPhone

http://observador.pt/2018/01/09/investidores-da-apple-pedem-medidas-contra-o-vicio-das-criancas-no-iphone/

9/1/2018, 13:13

Dois dos maiores investidores da Apple escreveram uma carta aberta à
empresa. No documento, pedem um verdadeiro combate ao crescente vício
das crianças no iPhone e nas redes sociais.

Os investidores atribuem problemas de concentração e riscos mais altos
de depressão nas crianças ao exagerado uso dos telemóveis

Dois dos maiores investidores da Apple estão a pedir à empresa que
combata o crescente vício das crianças no iPhone e na internet. Numa
carta aberta, a Jana Partners e o California State Teachers'
Retirement System demonstraram uma grande preocupação com os efeitos
da tecnologia e das redes sociais no desenvolvimento dos mais novos.

Os investidores, que juntos controlam 2 mil milhões de dólares de
ações da Apple, afirmam que "existe um consenso crescente em todo o
mundo, incluindo Silicon Valley, de que as potenciais consequências a
longo termo das novas tecnologias precisam de ser ponderadas logo no
início, e nenhuma empresa pode delegar essa responsabilidade".

Os dois grupos pediram à Apple para criar ferramentas que ajudem as
crianças a evitar a adição e garantir mais opções aos pais, para que
consigam proteger a saúde dos seus filhos através do controlo do tempo
passado à frente de um ecrã de telemóvel. Ainda que o atual sistema
iOS já inclua algumas medidas de controlo parental, os investidores
pedem mais: a possibilidade de personalizar a idade do utilizador do
iPhone, a implementação de um limite de tempo em que o ecrã pode
funcionar, horas do dia em que o telemóvel pode ser usado e bloqueio
de algumas redes sociais.

A Apple pode ter um papel determinante em sinalizar à indústria que
prestar especial atenção à saúde e desenvolvimento da próxima geração
é não só um bom negócio como a coisa certa fazer", escrevem os
investidores no documento, citado pelo The Guardian.

A carta aberta cita estudos e investigações que atribuem ao uso
exagerado de telemóveis vários efeitos negativos no desenvolvimento de
uma criança. Desde os mais comuns, como falta de atenção na sala de
aula e problemas de concentração, até questões mais graves como riscos
mais altos de suicídio e depressão. Os dois grupos de investidores
propõem ainda a criação de um comité de especialistas em
desenvolvimento infantil que todos os anos produza um relatório para a
Apple.

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quarta-feira, janeiro 03, 2018

# Arlindo Oliveira. “Não sei se os smartphones vão durar outros 10 anos”

http://observador.pt/especiais/arlindo-oliveira-nao-sei-se-os-smartphones-vao-durar-outros-10-anos/
19 Dezembro 2017 Ana Pimentel

O presidente do Instituto Superior Técnico lançou o livro "Mentes
Digitais". Em entrevista ao Observador, diz que vai ser possível
reproduzir um ser humano num computador. Consequência? A vida eterna.

Neurónios substituídos por circuitos eletrónicos, reproduções
integrais de seres humanos em computadores, homens que são deuses
porque, em última instância, vivem para sempre. Ficção científica?
Não, "a realidade muitas vezes ultrapassa a ficção", explica Arlindo
Oliveira, presidente do Instituto Superior Técnico (IST) e autor do
livro Mentes Digitais: A Ciência Redefinindo a Humanidade, publicado
pela IST Press. Só há uma coisa que Arlindo Oliveira não garante: se
trocarmos o cérebro por um computador mantemos a alma? Num cenário
mais próximo e realista, o presidente do IST explica que não sabe qual
será o próximo passo da tecnologia, mas que é bem provável que os
smartphones sejam substituídos por "outra coisa completamente
diferente".

Doutorado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores pela
Universidade da Califórnia, em Berkeley, Arlindo Oliveira foi
presidente da Associação Portuguesa para a Inteligência Artificial, é
membro da Academia da Engenharia e tem vários trabalhos publicados nas
áreas da inteligência artificial, bioinformática, algoritmia e
arquitetura de computadores. No seu livro, escreve sobre o que têm em
comum os computadores com o cérebro humano, as células e como se
definirá a relação entre as pessoas e as mentes digitais que, segundo
Arlindo Oliveira, nos fará refletir sobre o futuro da inteligência.

"Os computadores ainda são muito burros"

O que são mentes digitais?
É a ideia de que podemos vir a ter mentes que resultam do
funcionamento de sistemas digitais, ou seja, computadores. Que podemos
vir a ter, num futuro mais ou menos próximo, sistemas que se comportam
de maneira inteligente, que resultam do funcionamento de um programa
de computador e que esse programa pode ser obtido de muitas maneiras:
simulando o cérebro humano ou com inteligência artificial, a que se
chega por outros métodos. É um bocadinho essa questão que se coloca e
as consequências dessa possibilidade que se discute no livro.

Ou seja, unindo o cérebro a sistemas de inteligência artificial.
Sim, unir ou complementar. Sabemos que o nosso cérebro gera uma mente,
gera inteligência. Também desconfiamos que os animais têm algum tipo
de inteligência ou de consciência. Ainda não associamos esse tipo de
comportamento a sistemas nos computadores. Os computadores ainda são
muito burros, mas à medida que se vão desenvolvendo é provável que se
comportem de maneira inteligente.

Cenários como os que vimos na Web Summit — carros voadores, robôs a
conversarem — não estão assim tão distantes, pois não?
Varia um bocadinho. Já há protótipos para os carros voadores… Há ali
uns problemas de energia que não sei muito bem como se vão resolver,
porque um carro voador que ande 10 metros é muito fácil de fazer, mas
um que nos leve daqui ao Porto quase de certeza que não é. O que sinto
é que estas tecnologias estão a ser desenvolvidas muito rapidamente.
Todo este entusiasmo à volta da área faz com que haja um grande
esforço que está a acelerar um bocadinho o seu desenvolvimento. Neste
momento, há empresas muito interessantes e há muita indústria de
investigação a fazer trabalho muito interessante, que é referido aqui
e que estão a fazer uma aceleração significativa. Porque esta área já
existe há muito tempo, já existe há 60 anos, só que era numa
comunidade relativamente pequena e não tinha assim tanta atenção.
Neste momento, há muitos recursos alocados nesta área, o que faz com
que evolua mais depressa.

No seu livro, fala da geração que nasceu com o computador, mas já há
uma geração que nasceu com os smartphones. E os nossos sistemas de
ensino…
São muito tradicionais.

Como é que deveríamos estar a pensar as crianças nesta realidade?
Como deveríamos estar a pensar as crianças e as menos crianças, nas
universidades. Acho que não estamos a trabalhar suficientemente bem,
não estamos nem a usar as tecnologias nem a adaptar os nossos modelos
de ensino devidamente aos jovens. Acho que há muitos jovens a serem
pouco estimulados nas escolas, estamos a aproveitá-los pouco. E também
não estamos a usar estas tecnologias no seu melhor, no seu potencial.

Esta geração já nasceu com os smartphones e a próxima vai nascer com o
quê? Não sabemos. Daqui até ao fim, vai ser smartphones sempre? Acho
que não. Daqui a 30 anos podemos ter outra coisa completamente
diferente, mas a próxima geração, daqui a 10, 15 ou 20 anos ,vai com
certeza nascer com outra coisa, talvez com um amigo que anda sempre
com ele, com quem fala. Talvez, mas acho que o smartphone tem 10 anos
e não sei se vai durar outros 10, que é um conceito diferente.

A verdade é que já não conseguimos imaginar o que é viver sem um smartphone.
Tem de ser substituído por uma coisa mais interessante ainda e que é
difícil perceber o que é.

Para onde aponta?
Não sei… Tenho acreditado sempre que a realidade virtual é uma
componente muito forte, mas tem-me sempre desiludido um bocadinho,
tem-se sempre atrasado. Acho que mais tarde ou mais cedo a tecnologia
vai evoluir em termos de interação com a Internet e estou convencido
que daqui a alguns anos vai desempenhar um papel muito importante.
Temos uns óculos e estamos no mundo, estamos numa ilha nas Maldivas.
Não estou a dizer que vai substituir os smartphones, mas acho que vai
substituir uma parte grande da nossa interação com a Internet. A
realidade virtual e a realidade aumentada.

Voltando ao sistema de ensino, estamos a falar o suficiente destas
coisas nas escolas?
Não, acima de tudo não estamos a fazer o esforço para formar
devidamente os nossos educadores, que é uma coisa cara. Temos de ter
bons professores para termos bons alunos. Os nossos professores muitas
vezes são bons, mas podem não ter os recursos, não têm o apoio, não
têm as condições para se atualizarem devidamente. Em termos de novas
tecnologias, as nossas escolas primárias não estão suficientemente
atualizadas, não estamos a dar suficientes oportunidades de formação
para os professores poderem transmitir estes conhecimentos. Este
entusiasmo com a tecnologia também depende muito da nossa capacidade
de vir a influenciar a economia futura, porque se tivermos jovens que
estão familiarizados com as tecnologias vão, com certeza, criar novos
produtos, novos serviços, novos conteúdos. E se não forem, vamos estar
mais atrás e o mundo é cada vez mais digital.

Existem algumas correntes antitecnologia. Vale a pena a lutar muito
contra o que está a acontecer?
Acho que é uma luta perdida. É importante que se tente dosear essa
componente com componentes que não envolvam tecnologia, que haja
interação direta com as pessoas, espaços onde não há telemóveis nem
que seja às refeições ou à noite ou o que for. Acho isso importante,
mas acho que não é razoável pensar que um sistema pode funcionar onde
um aluno durante a escola não usa o telemóvel ou não usa computador.
Acho que isso não vai funcionar, acho que isso faz com que o país
perca competitividade. E as pessoas ficariam em desvantagem perante
outros nas oportunidades que teriam ao longo da vida.

Importante é não deixarmos que este tipo de interação tão limitada com
o telemóvel se torne na única forma de interação. E que as pessoas
deixem de falar, de se juntar para jantar, de ir passear no campo ou
na praia, por causa do telemóvel. Mas já não sou novo, pode ser que as
pessoas daqui a 30 anos achem que isto que estou a dizer é um
disparate e que as pessoas possam andar o tempo todo com uns óculos a
conviver em realidade virtual sem nunca encontrarem ninguém.

Concorda com a teoria de que nunca estivemos tão ligados mas tão sozinhos?
Sim, acho que temos de combater isso um bocadinho, especialmente com
as crianças, que são mais influenciáveis e que têm comportamentos mais
moldados para isso. Quer dizer… A possibilidade de uma criança ficar
completamente dependente de um telemóvel ou de um computador é real.
Isso deve ser combatido. Também devo dizer que imagine que temos uma
tecnologia de realidade virtual onde um miúdo põe uns óculos e está
ali a brincar num jardim com os outros miúdos ao mesmo tempo, a
páginas tantas a diferença já não é assim tão grande. Mas enquanto a
tecnologia não for assim, se calhar devemos preocupar-nos que a
educação das crianças não seja monolítica e centrada unicamente neste
tipo de aparelhos e devemos incentivar o contacto pessoal, que é
importante. Temos de evitar comportamentos que se desviem muito da
normalidade. O que quer dizer normalidade? Que os miúdos se tornem
solitários ou incapazes socialmente.

Se estivermos a viver a "tempestade digital" que aparece no livro,
estamos devidamente precavidos?
Isso é aquela ideia de "estamos a dar aos nossos jovens as
competências certas?" Acho que estamos um bocadinho atrasados, mas até
estamos a fazer alguns esforços. Neste momento, até há um projeto que
acho muito interessante, que é o Incode, liderado pelo Governo, que
tem como objetivo melhorarmos as competências digitais em Portugal, no
geral. Um dos eixos é justamente a formação dos nossos jovens, outro
eixo é a investigação, tem mais um conjunto de eixos interessante.
Acho que estão a ser tomadas algumas medidas para tentar garantir que
a nossa população, os nossos jovens e estudantes estejam a ter as
competências necessárias para se protegerem dessa tempestade. Porque
essa tempestade existe todos os dias, com novas tecnologias, novas
apps, novas aplicações.

O que é que no decorrer do seu trabalho o impressionou mais ou que
pode vir a ser mais polémico?
O que me impressionou mais é a ideia de que um dia poderemos simular
completamente o cérebro de uma pessoa real. E se fizermos a simulação
de um cérebro de uma pessoa real num computador é como se essa pessoa
vivesse no computador. Claro que também tem de ver e tal, de ter
câmaras, mas isso é um problema técnico. E esta ideia é muito
estranha: nós pensamos e existimos porque o nosso cérebro funciona.
Mas imagine que eu pegava no seu cérebro e trocava um neurónio que
estava a funcionar mal por um neurónio eletrónico ( porque os
neurónios são coisas eletrónicas) e com certeza vai dizer que tem
muitos milhares de milhões de neurónios, portanto não é um neurónio
que faz a diferença, é como se fosse uma prótese. A Ana continua a ser
a Ana. Mas a seguir troco outro neurónio e outro neurónio e mais dez.
Imagine que vou trocando e no fim troquei os neurónios todos.

Nesse cenário, estaria aqui com o meu corpo, mas todo o meu cérebro
seria eletrónico.
É um computador. Mas não deixava de ser a Ana, especialmente se eu
trocar um neurónio de cada vez, não vai ser um neurónio que faz a
diferença. Esta ideia de que cada neurónio, por si, poder ser
substituído… Não é quando substitui o último neurónio que a Ana deixa
de ser a Ana. Este argumento é o argumento de que o cérebro é um
computador e que a vantagem desses neurónios eletrónicos é a de que,
quando se avariarem, eles substituem-se, ao contrário de um neurónio
normal, que é uma chatice. Esta tecnologia em última análise
permite-nos, se quisermos, reproduzir um ser humano num computador. E
isso leva a uma série de consequências, entre as quais a vida eterna.

Então, toda a questão da vida eterna ganha um novo…
Ganha um novo alento. Note que a tecnologia biológica também pode
melhorar um bocadinho isto, mas nunca será eterna. Podemos viver 500
ou 1.000 anos mas, a páginas tantas, há coisas que deixam de
funcionar, em particular as células, mas ninguém se aborrece muito com
a prótese de um rim ou mesmo com um coração artificial, não é uma
coisa que meta muita confusão. Um cérebro artificial mete um bocadinho
mais de confusão, mas mesmo o cérebro pode ser artificial nesta visão.
Ou talvez só uma parte do cérebro. Por isso, respondendo à sua
pergunta: a coisa conceptualmente mais desafiante, mais complexa e
mais difícil de aceitar é esta ideia que a tecnologia, em última
análise, pode transformar-nos em deuses, ideia que não é bem minha ou,
pelo menos, não fui o primeiro a escrevê-la.

E isto também tem impacto em coisas como o pensamento abstrato,
criatividade, sensações de bem-estar?
Isto é uma coisa conceptual, porque tecnologicamente é impossível
acontecer agora. Mas se eu trocasse neurónio a neurónio o seu cérebro,
claro que depois os neurónios tinham também de sentir as hormonas e as
emoções, mas isso é uma questão técnica.

Mas possível?
É possível. Até é uma coisa que já sabemos fazer, não sabemos é fazer
nesta escala. Tudo isso — as emoções, a criatividade –, tudo isso em
última análise é possível. Só há uma coisa à qual não sei responder,
porque ninguém sabe.

Qual é?
A alma. Se trocar os seus neurónios todos não sei se fica com alma ou
sem alma, mas há aquela teoria muito interessante, que é a de que o
gene da alma está no cromossoma dois. Sabe porquê? Porque os nossos
primos mais próximos, os chimpanzés, têm 24 cromossomas e os
antecessores comuns também, mas houve dois cromossomas que se juntaram
para darem o cromossoma dois. Portanto, o nosso cromossoma dois (nós
só temos 23) resulta da junção de dois cromossomas dos nossos
antepassados e como eles não tinham alma — os chimpanzés não têm alma
e nós temos — tentaram o cromossoma dois, neste sítio onde os
cromossomas se juntaram.

Esta visão mecanicista do comportamento do cérebro é muito difícil de
conciliar com a visão religiosa, com a questão da alma. Uma vez um
colega seu disse-me que a palavra Deus não existia no índice e
continua a não existir.

E é um campo que fica em aberto…
Esse fica em aberto, para outras pessoas tratarem.

Portanto, emoções, criatividade, etc, não lhe parece difícil?
Acho que tudo isso não só é programável em sistemas de inteligência
artificial como acho que qualquer sistema que emulasse um cérebro ou
que tentasse obter os comportamentos humanos também vai ter essas
mesmas coisas. Neste momento, já há sistemas de criatividade de
artistas computacionais que fazem coisas muito interessantes.

E também existe a inteligência emocional artificial.
Sim e isso é uma área que vai evoluir muito rapidamente. Porque
detetar as emoções… Imagine que é um call center, onde em vez de falar
ao telefone, fala num ecrã e aparece um Avatar, identificar as suas
emoções é uma coisa fundamental.

Há pessoas que já procuram sistemas como a Siri e a Alexa para
desabafarem, como se fossem psicólogas.
É verdade e elas respondem bem. Portanto…

Estive a ler sobre o seu percurso. Como é que junta a computação às
neurociências?
Isto são tudo computadores, são é computadores um bocadinho
diferentes. Os computadores trabalham com circuitos elétricos. O
cérebro também é um circuito elétrico essencialmente, mas funciona com
princípios muito diferentes. Os computadores trabalham com transistor,
que ligam e desligam e fazem passar correntes, enquanto o cérebro
funciona com pequeníssimas correntes elétricas, que passam nos
neurónios, nas paredes das células, mas não são assim tão diferentes.
A diferença é que nós sabemos bem como funciona um computador, como se
executa um programa, mas não sabemos como funciona o cérebro. Temos
uma ideia, sabemos como funciona cada neurónio, mas não sabemos como
estão interligados, como geram pensamento e, seguramente, não sabemos
como um cérebro gera consciência e as capacidades que os humanos têm.

Mas — e isso é um bocadinho o argumento central do livro — ambos são
computadores e, de alguma maneira, equivalentes. Teoricamente, devia
ser possível pôr um computador a simular um cérebro humano ou um
cérebro humano a simular um computador, dentro dos limites e das
capacidades, das velocidades, de um ponto de vista matemático formal.
Eu defendo aí, e é uma questão polémica, não é trivial, que estas
máquinas são computacionalmente equivalentes. Se o estudo das
neurociências fosse bem sucedido permitir-nos-ia, em princípio,
reproduzir parte ou a totalidade dos comportamentos do cérebro no
computador através de uma simulação, de uma emulação parcial.

São duas coisas equivalentes, mas não fazem a mesma coisa porque não
correm os mesmos programas nem todos os computadores são iguais, mas é
um bocadinho esse paralelo que é feito. Ver estas coisas como modelos
de computação que na sua essência são equivalentes, mas que ainda
vemos como muito diferentes porque não conhecemos bem o cérebro e
conhecemos bem os computadores.

Isto, ao limite, leva a sociedade onde?
Não sabemos, mas esse é um dos argumentos base do livro. É muito
difícil prever o que faz uma civilização tecnológica durante milhares
de anos. Temos uma civilização tecnológica basicamente há cerca de
duzentos anos. E estas tecnologias mais recentes têm 50 anos. Acho
muito difícil sabermos como vai ser a sociedade daqui a 10 mil anos…
Serão pessoas como nós, mas que vivem 500 anos? Só por si já era uma
alteração significativa, não é? Serão cyborgs, mistos de pessoas com
uma ligação à Internet com chip, estímulo direto do cérebro à
Internet? Parece-me muito provável. Pelo menos já há pessoas que andam
a testar isso.

Se pensarmos no futuro… Serão sistemas, pessoas que de alguma maneira
vivem em mundos simulados, em realidades virtuais, completamente
virtuais como partes do cérebro ou um cérebro inteiro simulado no
computador? Não sei, levanto essa possibilidade. São tecnologias que
não temos agora, que podemos nunca vir a ter, mas 5 mil anos é tanto
tempo. Duzentos anos é tanto tempo que é difícil para mim extrapolar.
Onde é que isto nos leva? Em última análise, pode levar-nos a uma
coisa que é completamente diferente do que temos agora. Mas, se pensar
bem, o que temos agora também já é completamente diferente do que
tínhamos há 100 anos. O mundo mudou muito em 100 anos e provavelmente
vai mudar ainda mais nos próximos 100. Portanto, onde é que isto nos
leva no fim? Não sei… Realmente acho que ninguém sabe, mas é um
bocadinho essa discussão que o livro faz.

Sente que as pessoas têm noção de todas estas coisas? Que a
inteligência artificial está assim tão avançada e que é possível ter
estas mentes digitais?
Note que não digo que a inteligência artificial está assim tão
avançada. Não, acho que não e também acho que os seres humanos e os
portugueses em particular não são particularmente bons a fazer esta
extrapolações a longo prazo. Nós tendemos a viver no dia a dia. Quando
nos chega uma nova tecnologia, um telemóvel ou um carro sem condutor,
adaptamo-nos e tal, mas a maior parte das pessoas não pensa muito
sobre isso. Por isso, acho que não, muitas pessoas não pensam nisto e
outras pessoas nem sequer consideram isto na sua vida diária.

Há coisas que se vê muito nos filmes de ficção cientifica e algumas
delas ocorrem rapidamente. Quase tudo o que está no "2001: Odisseia no
Espaço" — que foi um filme que na altura era pura ficção científica —
já existe, menos a nave que vai daqui a Jupiter. Há muitas coisas que
já existem e que não estavam no "2001: Odisseia do Espaço" e que não
foram previstas pelos seus autores. A realidade acaba por apanhar a
ficção e muitas vezes ultrapassa a ficção, o que é curioso.

E como é que estas mentes digitais se vão comportar?
Depende um bocadinho daquilo em que se tornarem. Se forem uns agentes
que temos no telemóvel, que nos ajudam a organizar a vida, se calhar
são uma espécie de secretárias. Se forem um sistema que ajuda os
carros, fala com os passageiros e ajuda a entretê-los é um condutor.
Depende das aplicações. Se for um sistema que faz artigos de jornal
comporta-se como um jornalista e pode fazer entrevistas: faz umas
perguntas, fica com as respostas e elabora um artigo. Mas em muitos
casos podemos imputar-lhes algum tipo de sapiência, de consciência…
Não é irrazoável pensar num sistema que lê um livro, faz um conjunto
de perguntas por email, a pessoa responde e ele elabora um artigo com
base naquilo. É uma coisa que não só está ao alcance da tecnologia
atual como até já é feita em alguns domínios.

É um bocadinho assustador. Parece que estas mentes vão fazer tudo
aquilo que fazemos.
É, mas depende um bocadinho do tempo. Com certeza que isto não vai
acontecer daqui a um ano ou dois. Daqui a dez, se calhar, já vão fazer
algumas coisas que agora são feitas por humanos, como a condução dos
carros, mas há outras coisas também, como a análise de diplomas ou
aconselhamento legal. Daqui a 50 anos, acho que é muito difícil de
perceber porque acontece muita coisa em 50 anos. É um bocadinho
assustador? Sim. É desconhecido o mundo que nos levaria a isto e
também temos medo de ser substituídos.

Não me importava de ser substituído se pudesse ficar em casa a fazer o
que me apetecesse, pudesse ir para a praia, desde que me pagassem um
ordenado na mesma. O emprego não é uma coisa que me preocupa muito
desde que me paguem ordenado. Note que as pessoas que trabalham nos
campos tiveram as mesmas preocupações quando vieram as ceifeiras
debulhadoras. Estas máquinas vieram substitui-los. As pessoas
conseguiram sempre fazer outras coisas que são mais valiosas e não
fazer as coisas chatas que as máquinas faziam. Pode ser que aconteça o
mesmo. Não é garantido que seja a mesma situação, porque estas
máquinas também são mais espertas.

Qual é a pior aplicação que estas máquinas podem ter?
Bom, acho que a pior é qualquer coisa que não esteja alinhada com os
interesses da humanidade. Circulou um abaixo-assinado, que também
assinei, contra as armas autónomas, que podem matar sem intervenção
humana. Esta parece-me uma coisa relativamente preocupante — termos
sistemas completamente autónomos que decidem quem é que matam, não
matam, quando é que intervêm. Não só porque numa guerra seria de facto
uma guerra muito desumana, que já é um bocadinho com os drones, mas
porque podem ficar fora de controlo. Imagine que estas máquinas ficam
na mão de um grupo terrorista… Era bom que esses sistemas nunca fossem
desenvolvidos. Acho que este é um bocadinho o worst case scenario,
excetuando aquele caso mais ou menos catastrófico de as máquinas
tomarem conta disto tudo e darem conta dos humanos. Essa é uma questão
com a qual as pessoas se preocupam, mas não me parece muito realista
nos próximos tempos.

Um dos argumentos a favor é que o facto de estas mentes não terem
emoções pode ser uma coisa positiva, porque não são afetados por
sentimentos como a raiva. Mas disse há pouco que estas mentes podem
ter consciência.
Isso é verdade, é. Mas não disse bem isso, disse que é uma
possibilidade. Não sabemos o que é a consciência, não sabemos
exatamente. Um cão pode ter consciência, não é? Gostamos de pensar que
uma galinha não tem muita, mas pode ter um restinho. A consciência,
muito provavelmente, não é uma coisa sim ou não, é uma coisa
progressiva. É provável que os sistemas de inteligência artificial
venham a ter alguma espécie de consciência, alguns valores morais. É
um bocadinho difícil porque não sabemos muito bem de onde estas coisas
vêm: a consciência, o medo de morrer. Um robô, em princípio, não tem
medo de morrer… que a gente saiba.

Relativamente à sua pergunta, é de facto verdade que as máquinas não
têm essas emoções. Não matam num momento de raiva, não causam um
acidente porque vão distraídas, mas também há o reverso da medalha,
porque a nossa condição humana também coloca muitas restrições nas
coisas que fazemos e na forma como atuamos, que uma máquina pode não
ter se não estiver devidamente programada.

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