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PENSANTES

Outros pensamentos, ideias e palavras que nos fazem pensar...

terça-feira, dezembro 29, 2015

# O presente na vida moderna [Dar e receber?]

Miguel Tamen
http://observador.pt/opiniao/presente-na-vida-moderna/

26/12/2015, 0:41

A situação moderna do presente indica uma noção peculiar de pessoa;
segundo essa noção, as pessoas servem para satisfazer desejos de
outras pessoas; e também para ver os seus desejos satisfeitos.

A teoria moderna é a seguinte: dar presentes é um contrato; como todos
os contratos depende da vontade das partes; portanto dar presentes
depende necessariamente da vontade de quem os recebe. À teoria está
associada uma segunda teoria acerca da vontade: sempre que um animal
tem vontade não é lícito ignorá-la; não é assim lícito ignorar a
vontade daquele a quem se dá um presente, desde que não seja uma
criança, ou um animal muito pequeno.

O resultado destas duas teorias observa-se nas cerimónias que dominam
a oferta moderna de presentes. Note-se que a oferta de presentes não é
em si sórdida; e pode nalguns casos ser maravilhosa. Nem a sordidez
nem a maravilha têm a ver com a quantidade de dinheiro que se gasta em
presentes: um presente caro pode ser maravilhoso e um presente frugal
pode ser sórdido. O que é sórdido é, por ordem crescente de sordidez:
a pessoa que vai receber o presente saber que vai receber aquele
presente; a pessoa que vai receber o presente manifestar
explicitamente a sua vontade; a pessoa que vai receber o presente
comprar o seu próprio presente; a pessoa que vai dar o presente deixar
que a pessoa que o recebe o compre. Quando se verifica esta última
situação já não estamos diante de um presente mas simplesmente diante
de alguém que subsidia a vontade de terceiros.

O modelo predominante é o modelo do subsídio da vontade de terceiros.
E só a manifesta impreparação dos menores de seis anos impede que esse
modelo prevaleça em todos os casos. Mal porém a infância dá sinais de
alívio a vontade do destinatário passa a reinar sem impedimentos. Para
encorajar a tendência o comércio inventou diversas formas de cheque,
com as quais se podem comprar livros e lingerie. Um cheque-lingerie,
todavia, ainda restringe, por trivial que seja a restrição, a vontade
do destinatário: não poderá este por exemplo comprar artigos para o
lar. O nadir daquilo que em si já é uma tragédia é o processo que
consiste em dar directamente dinheiro a quem se quer dar presentes.
Com o dinheiro desaparecem as últimas restrições à vontade do
destinatário, e triunfa o horror a tudo o que lhe escapa.

A situação moderna do presente indica uma noção peculiar de pessoa;
segundo essa noção, as pessoas servem para satisfazer desejos de
outras pessoas; e também para ver os seus desejos satisfeitos. Mas
como o conhecimento dos desejos das pessoas é sempre incerto, a
maneira mais prática de resolver o problema é, para evitar surpresas,
deixar aos interessados a especificação desses desejos. Quer isto
assim dizer que, apesar das estatísticas animadoras do comércio, a
actividade que consiste em dar presentes está em declínio. Para dar um
presente, e para realmente dar alguma coisa a alguém, a única coisa
que não se deve ter em consideração é a vontade de quem recebe.

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terça-feira, dezembro 22, 2015

# Psiquiatra Pedro Afonso: Há um endeusamento do trabalho

30 Outubro 2015, 16:00 por Lúcia Crespo | lcrespo@negocios.pt
http://www.jornaldenegocios.pt/weekend/detalhe/psiquiatra_pedro_afonso_ha_um_endeusamento_do_trabalho.html

"Se as empresas querem aumentar a produtividade, ponham os
funcionários a trabalhar menos horas", atira o psiquiatra Pedro
Afonso, autor do livro "Quando a mente adoece", lançado na AESE –
Escola de Direcção e Negócios.

"Há mulheres em licença de maternidade pressionadas pelas empresas
para consultar os 'e-mails' de trabalho. Eu conheço vários casos",
conta o psiquiatra Pedro Afonso, autor do livro "Quando a mente
adoece", lançado na AESE - Escola de Direcção e Negócios, onde dá
aulas a gestores e empresários. Ele tenta provocar o debate. E
provoca. "Há uma cultura crescente de invasão da vida profissional na
vida pessoal", diz. E continua. "Se as empresas querem aumentar a
produtividade, ponham os funcionários a trabalhar menos horas". E
continua ainda. "As empresas estão a sugar-nos a saúde e a nossa
qualidade de vida. E isto não é dramatismo. Toda a gente funciona
muito no do 'dar, dar e dar' e, às tantas, está tudo sequestrado por
esta cultura, que é uma cultura autofágica, que absorve as pessoas e
as destrói". Há um limite. Que é o limite humano, diz.

Temos pensado pouco sobre a relação que temos com o mundo do trabalho.
Enquanto psiquiatra e professor na AESE - Escola de Direcção e
Negócios, tento provocar alguma discussão em torno dos limites
humanos. Há, claramente, um divórcio entre as características humanas
e aquilo que está a ser exigido às pessoas. Eu diria mesmo que se as
empresas querem aumentar a produtividade, ponham os funcionários a
trabalhar menos horas. Se não existir um equilíbrio, não só diminuímos
a produtividade como colocamos a nossa saúde em risco. As doenças
psíquicas no mundo do trabalho, como as perturbações da ansiedade e os
quadros depressivos, têm vindo a aumentar.

Mas o que está em causa não é só o número de horas de trabalho. É a
pressão para chegar a resultados em menos tempo e com menos pessoas.
Face a políticas de reformas antecipadas ou de rescisões por mútuo
acordo, por exemplo, quem sai não é substituído e quem fica é
sobrecarregado com o trabalho dos que se reformam ou rescindem. É uma
política muito usual. E isto tem um limite. Que é o tal limite humano.

É preciso alertar as mentalidades que o preço a pagar por um quadro
depressivo ou por um quadro de exaustão, em termos de absentismo, é
muito maior do que apostar na sua prevenção. Há pessoas que suportam
mais a pressão, mas todos nós, mais cedo ou mais tarde, acabamos por
sofrer as consequências. Os trabalhadores devem tentar, eles próprios,
proteger-se. Eu costumo dizer aos meus doentes para devolverem a
responsabilidade. Quando alguém é assoberbado de trabalho e sabe, à
partida, que não vai conseguir cumprir tudo aquilo que lhe foi
proposto, deve remeter a escolha do que fica para fazer para a chefia:
'eu não consigo fazer tudo no prazo indicado. Peço-lhe que me indique
o que é que eu vou deixar de fazer e o que é que é mais importante.
Ou, em alternativa, tem de alocar uma pessoa para me ajudar'. É
preciso fazer esse confronto.

A pressão para os resultados é transmitida de cima para baixo, os
próprios gestores estão sob imensa pressão, e tudo isto acaba por ser
uma correia de transmissão. É algo transmitido aos directores, às
chefias e a todos os funcionários. É um sequestro global. Há, de
facto, um certo endeusamento do trabalho. Toda a gente funciona muito
nesse registo do "dar, dar e dar" e, às tantas, está tudo sequestrado
por esta cultura, que é uma cultura autofágica, que absorve as pessoas
e as destrói.

Há uma cultura crescente de invasão da vida profissional na vida
pessoal. Não imagina a quantidade de doentes meus que estão
constantemente a responder a 'e-mails' de trabalho em período de
férias. Já não se respeita o período em que a pessoa deve estar
desligada do trabalho. Já não se respeita as mulheres em licença de
maternidade. Tenho conhecido vários casos. Ao fim de um mês de
licença, as empresas quase que exigem a consulta dos 'e-mails'. Há uma
cultura empresarial perversa.

Também se assiste a alguma encenação no local de trabalho. Certas
pessoas reconhecem que, muitas vezes, não estão propriamente a
produzir, mas sentem uma certa obrigação de estarem presentes. Há esta
mentalidade… A Google criou os chamados "nap rooms" para os
funcionários fazerem pequenas sestas. Em Portugal, isto poderia ser
visto como um período de ociosidade e até de irresponsabilidade. Mas
está demonstrado que dormir uma pequena sesta aumenta a produtividade
e a concentração. Portanto, há que introduzir, na cultura das
empresas, estas formas inteligentes de gestão. A verdade é que
assistimos a uma certa regressão. E o chamado "multitasking" não
ajuda. É improdutivo. Mas instalou-se na nossa cultura. Ninguém hoje
em dia pratica o "monotasking".

Se há imensas pessoas pressionadas pelos resultados das empresas, mais
recentemente também tenho visto pessoas com propostas de rescisões de
contrato que ficam deprimidíssimas. Têm cerca de cinquenta e poucos
anos e nunca imaginaram que a sua carreira ficaria interrompida tão
cedo e que, muito provavelmente, nunca mais iriam regressar ao mercado
de trabalho. É toda uma vida profissional que, subitamente, fica
interrompida. E isso gera um período de perplexidade e de
despersonalização. Nós temos uma certa fusão com aquilo que fazemos e
se isso nos é retirado de repente, há uma parte de nós que acaba por
morrer.

Andamos num corrupio e a vida passa demasiado depressa. Eu conto a
história de uma directora que investiu maciçamente na carreira e, com
perto dos 50 anos, percebeu que não havia muito mais para conquistar e
caiu numa grande depressão. É importante que, paralelamente à gestão
da carreira profissional e à conciliação com a família, as pessoas
possam, de alguma forma, criar o seu projecto de vida. Muitas delas
deixam os seus pequenos sonhos para a reforma, seja um curso de
pintura, de fotografia ou uma viagem. Por que não conciliar estes
sonhos com a vida profissional? Mas, para isso, é preciso tempo. Tempo
e energia, porque a energia é maciçamente consumida no local de
trabalho.

Enquanto psiquiatra, gostava de alertar para uma outra questão, que
está a ser discutida por sociólogos e psicólogos nos Estados Unidos,
que é o chamado trabalho sombra, o "shadow work". Um trabalho que está
a ser transferido para os consumidores de forma a diminuir os custos
de produção das empresas. Vamos a uma bomba de gasolina e temos de ser
nós a encher o tanque do carro. Vamos às compras e temos de fazer os
embrulhos de Natal. Oferecem-nos os laços e o papel... Até o trabalho
do caixa de supermercado está a ser substituído por máquinas
automáticas. Há aqui um trabalho oculto que, no final do dia, origina
um grande desgaste cumulativo.

Um psiquiatra é um bocadinho como o poeta. Olha para as coisas de uma
forma um bocadinho diferente. Ser psiquiatra é procurar perceber, é
procurar compreender. E, para se ser psiquiatra, é preciso, acima de
tudo, capacidade de escutar e de se colocar no lugar do outro. É a
chamada empatia. Uma pessoa que pertença a um estrato social
privilegiado, que tenha sido educada em bons colégios numa zona social
óptima, e que nunca tenha contactado com a miséria humana, não
percebe, de facto, as dificuldades das pessoas mais desfavorecidas.
Que é o caso da maior parte dos nossos políticos...

Na política, por vezes, até pode haver empatia, mas falta compaixão. A
compaixão pressupõe que, activamente, se alivie o sofrimento do outro.
Há o chamado Síndrome de Hubris (adição ao poder), que tem a ver com a
transformação da personalidade pela permanência prolongada em cargos
de poder. O que acaba, muitas vezes, por aumentar o distanciamento e
fazer desaparecer a empatia. E isso pressente-se nos discursos. As
palavras até estão lá, mas falta a componente emocional. Há uma
dissociação entre as palavras e a emoção. Soa a falso.

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segunda-feira, dezembro 21, 2015

# Exercícios para limpares o pó ao coração neste Natal

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terça-feira, dezembro 15, 2015

# Impostos: quem paga mais na OCDE?

Ver gráfico online:
http://observador.pt/2015/12/15/impostos-paga-na-ocde/

A OCDE reuniu os dados sobre os impostos de 34 países tendo em conta o
PIB de cada um e realizou um ranking. Portugal está ali no meio. Igual
à média da OCDE.

António Cotrim/LUSA

Os dados sobre os impostos recolhidos pelos governos de 34 países, em
2014, reunidos pela OCDE e que incluem impostos sobre rendimentos e
salários, património, empresas ou IVA, permitiu elaborar um ranking
com os países com maiores receitas fiscais, de acordo com a
percentagem do PIB de cada um.

Ou seja, com base nesta lista, e tendo em conta que algumas
características específicas dos regimes fiscais de certos países podem
ter influenciado a classificação, Portugal está ali no meio. Tão no
meio que a percentagem é exatamente a mesma do que a média da OCDE:
34.4%. Está portanto atrás de países como a Alemanha ou a França e à
frente, por exemplo, dos EUA ou de Espanha, numa tabela liderada pela
Dinamarca e onde o México apresenta a percentagem mais baixa:

Ver online: http://observador.pt/2015/12/15/impostos-paga-na-ocde/

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sexta-feira, dezembro 11, 2015

# Alegria do Natal ao 3º ano de prisão (Rosa Luxemburgo)

A carta escrita na prisão por Rosa Luxemburgo sobre a alegria do Natal

http://www.snpcultura.org/a_carta_da_prisao_de_rosa_luxemburgo_sobre_alegria_natal.html

Um dos textos mais comoventes que conheço é uma carta de Rosa
Luxemburgo escrita a uma amiga a partir da prisão feminina de
Breslavia, na Polónia, por ocasião do Natal, poucos meses antes da sua
execução.

Era o último vislumbre daquele paradoxal ano de 1917, e poucos se
arriscavam a dizer com certeza para que destino o mundo estava a ser
arrastado. O texto de Rosa Luxemburgo confirma um compromisso
explícito naquele contexto histórico e toma a defesa da revolução
então em curso na Rússia, em oposição à perspetiva dos
«correspondentes dos jornais burgueses» que descreviam a nova situação
como um desencadeamento insano. Esta é, seguramente, a parte mais
datada, parcial e envelhecida da carta. Rosa sabe ser profética quanto
à Alemanha, entrevendo a possibilidade de um "pogrom", mas não o é da
mesma maneira em relação à Rússia.

Na verdade, o que faz da sua carta um «documento de humanidade e
poesia», para citar Karl Kraus, que deveria ser ensinado «às gerações
futuras», são as duas partes seguintes. Era o terceiro Natal que a
filósofa e sindicalista passava na prisão. Procura uma árvore de Natal
para si, mas não consegue encontrar melhor do que um arbusto mísero e
despido, que ainda assim transporta para a própria cela. E isto leva-a
a interrogar-se sobre a «alegre embriaguez» que conseguia conservar
naquele inferno, naquela irredutível espécie de confiança que nela
persistia, a despeito do desconforto e da desolação.

Escreve naquela noite: «Aqui estou eu, deitada, só, em silêncio,
envolvida nestes múltiplos e negros lençóis das trevas, do tédio, da
prisão invernal – e entretanto o meu coração bate de uma alegria
interior incompreensível e desconhecida, como se estivesse a caminhar
ao sol radioso sobre um prado florido. (…) Nestes momentos penso em
vós e gostaria muito de vos transmitir esta chave mágica e alegre da
vida». E quando se pergunta mais profundamente sobre o porquê de tanta
«felicidade», declara: «Não encontro nada e não posso impedir-me de
sorrir novamente de mim. Creio que este segredo não é outro senão o da
própria vida».

A última parte da carta não é menos inesquecível. Rosa Luxemburgo
assiste à chegada de vagões cheios de pesados sacos de roupa militar,
que os prisioneiros deverão remendar. São puxados por búfalos
capturados na Roménia e exibidos como troféus. Pela primeira vez,
atenta na indizível dor dos animais. É um choque e uma revelação.
Quando se arrisca a pedir «um pouco de compaixão por aquelas criaturas
extenuadas, o carreteiro responde-lhe violentamente: «E de nós, quem
tem piedade?» E diante dela recomeça a bater com força nos búfalos.

O olhar de Rosa Luxemburgo fixa-se então sobre um deles. O animal
deitava sangue mas permanecia imóvel, com os olhos mais dóceis que ela
alguma vez tinha visto. Naqueles olhos entrevê uma impotência
semelhante à de uma criança que tivesse chorado durante muito tempo
sem ter sido escutada. «Era exatamente a expressão de uma criança que
acaba de ser duramente castigada e não sabe por que motivo nem para
quê, que não sabe como escapar do sofrimento e da força bruta… Eu
estava diante dele, o animal olhava-me, as lágrimas caiam dos meus
olhos, eram as suas lágrimas. Diante da dor de um irmão querido é
impossível não ser sacudido pela mais dolorosa amargura como eu estava
na minha impotência diante deste mudo sofrimento».

Da empatia que ligava naquele momento uma mulher a um anónimo animal
ferido nascia uma nova forma de resistência à brutalidade e à
barbárie. «Diante dos meus olhos vi passar a guerra ao estado puro»:
Rosa Luxemburgo compreende que uma comunhão entre os seres humanos e
as outras criaturas não é só possível. É urgente e necessária.


José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"

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segunda-feira, dezembro 07, 2015

# “O trabalho sombra”: uma praga invisível

Pedro Afonso 7/12/2015, 15:03
http://observador.pt/opiniao/o-trabalho-sombra-uma-praga-invisivel/

Se o trabalho sombra pode trazer vantagens, reduzindo preços e
alargando a oferta de bens e serviços, é bom não esquecer que rouba
tempo e energia, contribuindo para uma sociedade mais desumanizada.

Com o corrupio das compras de Natal, para se poupar tempo, as caixas
self-service disponíveis nos hipermercados são cada vez mais
utilizadas. Curiosamente, enquanto os clientes passam freneticamente
os produtos pelo leitor do código de barras, muitas vezes a
funcionária da caixa permanece imóvel, numa aparente indolência, em
frente a um ecrã de computador. Perante esta situação algo caricata, é
justo colocar a seguinte pergunta: Mas por que é que andamos a fazer
isto?

Atualmente realizamos ao longo do dia vários trabalhos que há algum
tempo atrás eram executados por profissionais. Por razões de
rentabilidade económica, as grandes empresas estão a transferir os
custos do trabalho para os consumidores. Senão, vejamos: quando vamos
à bomba de gasolina temos que pegar na mangueira e encher o depósito
de combustível. No supermercado temos que colocar as compras no saco
ou registá-las na caixa automática em vez do funcionário. Nalgumas
lojas, se quisermos comprar uma estante ou uma mesa, somos obrigados a
fazer a montagem. No restaurante de fast food, no final da refeição,
somos convidados a levantar o tabuleiro e a separar o lixo. As férias
raramente são marcadas por um funcionário de uma agência de viagens.
Através da internet escolhemos o destino, e acabamos por fazer as
reservas do bilhete de avião e do hotel. Os tradicionais embrulhos de
natal, em várias das grandes superfícies, deixaram de ser feitos por
funcionários, sendo apenas disponibilizados o papel, a tesoura e os
laços decorativos. Tudo isto assenta numa estratégia do tipo "faça
você mesmo, pois isto tem custos para nós".

Sem nos apercebermos, diariamente perdemos imenso tempo desempenhando
trabalho não remunerado para muitas empresas que o deixaram de
disponibilizar. Este trabalho chama-se "trabalho sombra". O termo
"shadow work" foi introduzido pela primeira vez pelo filósofo
austríaco Ivan Illich em 1981 no seu livro publicado com o mesmo
título. Este tipo trabalho veio alterar a relação comercial entre
produtores e consumidores. Tradicionalmente, os produtores produzem
bens e serviços e vendem-nos aos consumidores a troco de dinheiro. Mas
com o trabalho sombra, o consumidor não paga apenas o produto ou
serviço, como ainda se junta ao vendedor, ajudando-o a produzi-lo.

As empresas ao transferirem algumas funções para os consumidores
reduzem o número de empregados. Deste modo, diminuem os custos do
trabalho e aumentam os seus lucros, mas por outro lado agravam o
desemprego. Além disso, esta situação tem custos para todos nós, já
que nos faz perder tempo, retira-nos energia que seria melhor
utilizada noutras atividades, e aumenta o nosso cansaço diário.

Será que faz sentido que, no final de um dia de trabalho, numa
deslocação ao supermercado para comprar alguns produtos alimentares,
sejamos nós a executar o trabalho que supostamente deveria ser feito
pela funcionária da caixa? Curiosamente, depois da ida ao supermercado
— ­ e sem termos consciência disso — ainda continuamos a realizar
trabalho sombra. Quando à noite atualizamos o Facebook estamos a
trabalhar para esta empresa que vive à custa do nosso trabalho. Todos
dias milhões de pessoas "trabalham para o Facebook gratuitamente"
fornecendo conteúdos. Ou seja, o Facebook fornece gratuitamente uma
ferramenta, mas o trabalho de criação e introdução dos conteúdos é
realizado pelos utilizadores.

Presentemente, na nossa sociedade, vivemos um paradoxo curioso: apesar
de terem sido criados inúmeros meios tecnológicos para nos facilitarem
a vida, tudo parece mais difícil e o ritmo do dia a dia não pára de
aumentar, contribuindo para o nosso desgaste. Trabalhamos muito mais
do que há algum tempo atrás. Estamos a desempenhar cada vez mais
tarefas com a falsa crença de podermos ganhar tempo. O trabalho
sombra parece imparável, tendo-se infiltrado sub-repticiamente nas
nossas vidas, como se fosse uma praga invisível.

Mas se o trabalho sombra pode trazer vantagens, reduzindo os preços e
alargando a oferta de alguns bens e serviços, é preciso não esquecer
que nos rouba tempo e energia para o lazer, contribuindo para uma
sociedade mais desumanizada. Neste caso, as relações entre as pessoas
estão a ser substituídas por interfaces robotizadas, agravando a nossa
solidão, uma vez que se exclui o contacto humano. Vale a pena
pensarmos quantas vezes entrámos num hipermercado, saímos com as
nossas compras, e no final não trocámos com ninguém uma única palavra.

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domingo, dezembro 06, 2015

# Novas Figuras do Advento

1. Segundo um conto judaico, um rabino fez a Deus o seguinte pedido:
"Deixa-me ir dar uma vista de olhos pelo céu e pelo inferno". O pedido
foi aceite e Deus enviou-lhe o profeta Elias, como guia.

O profeta levou o rabino a uma grande sala. No centro ardia um fogo
que aquecia uma panela enorme, com um guisado que enchia o espaço com
o seu aroma.

À volta deste apetitoso manjar estava reunida uma multidão com uma
grande colher na mão. Apesar disso, viam-se as pessoas esfomeadas,
macilentas, sem forças, a cair.

As colheres eram mais compridas do que os seus braços, de tal modo que
não as conseguiam levar à boca. Tristes, desejosas e em silêncio, de
olhar perdido.

O rabino, espantado e comovido, pediu para sair desse lugar espectral.
De inferno já tinha visto o suficiente.

O profeta levou-o então a outra sala. Ou talvez fosse a mesma. Tudo
parecia exactamente igual: a panela ao lume, com apetitosas iguarias,
a gente à volta com grandes colheres na mão. Via-se que estavam todas
a comer com gosto, alegres, com saúde, cheias de vida. A conversa e as
gargalhadas enchiam a sala. Isto tinha que ser o paraíso! Mas, como é
que tinham conseguido uma tal transformação?

As pessoas tinham-se voltado umas para as outras e usavam a enorme
colher para levar comida a quem estava à sua frente, procurando que a
outra ficasse satisfeita e assim acabavam por ficar todas bem!

2. Foi notícia a festa de arromba que um empresário ofereceu, em
Loures, para celebrar os 15 anos da sua filha. Transportada antes em
limousine e depois, em helicóptero, a partir de Algés. A brincadeira
terá ultrapassado os duzentos mil euros. Apesar de tudo muito mais
barata do que o jacto de Ronaldo. Não se pode dizer que vivem acima
das suas possibilidades. A propriedade privada é sagrada.

John Magufuli, de 56 anos, Presidente da Tanzânia desde 5 de
Novembro, já anda na boca das pessoas. É conhecido porBulldozer pelas
mudanças radicais que introduziu no país.

Pela primeira vez em 54 anos, a Tanzânia não vai celebrar oficialmente
o dia da Independência, porque Magufuli defende ser "vergonhoso"
gastar rios de dinheiro nas celebrações quandoo nosso povo está a
morrer de cólera. Só nos últimos três meses vitimou, pelo menos, 60
pessoas. Acabaram-se as viagens dos governantes ao estrageiro. As
embaixadas deverão tratar dos assuntos que lhes competem. Se for
necessário viajar, terá de pedir uma licença especial ao Presidente ou
ao seu Chefe de Gabinete. Em 1ª classe e executiva só o Presidente, o
Vice-Presidente e o Primeiro-Ministro. Acabaram-se os workshops e
seminários em hotéis caros, quando há tantas salas de ministérios
vazias.

O Presidente Magufuli perguntou por que motivo os engenheiros recebem
modelos de carro topo de gama, se as carrinhas são mais práticas para
o seu trabalho. Acabaram-se os subsídios. Por que motivo são pagos
subsídios se vocês recebem salários; aplicável também aos
parlamentares. Todos os indivíduos, ou empresas, que tenham comprado
empresas do Estado, que foram privatizadas, mas não fizeram nada com
elas, passados 20 anos, ou as fazem recuperar imediatamente ou
devem-nas devolver.

John Magufuli cortou o orçamento da inauguração do novo Parlamento. De
100 mil dólares passou para 7 mil.

3. Tem um precedente na América Latina, José Mujica. O
ex-guerrilheiro, conhecido como o presidente mais pobre do mundo
devido ao seu estilo de vida, deixou o poder a 1 de Março.

Uma chácara, nos arredores de Montevideu, um VW Carocha de 1987 e três
tractores. Esta é toda a riqueza do presidente do Uruguai, avaliada
em menos de 170 mil euros. Pode parecer pouco para um chefe de Estado,
mas para Pepe, que doa 90% do seu salário anual, dez mil euros, para
caridade, é mais do que suficiente. É por isso que ficou conhecido
como o presidente mais pobre do mundo.

Mujica continua como sempre. Em algumas entrevistas, declarou: "não
sou pobre, sou sóbrio, com pouca bagagem, vivo com o suficiente para
que as coisas não me roubem a liberdade"; por outro lado, "tu, com o
teu dinheiro, não podes ir a um supermercado e dizer: venda-me mais
cinco anos de vida. Não podes. Não é uma mercadoria, então não a
devemos gastar mal. Temos de a usar e gastar com as coisas que nos
motivam a viver." À CNN disse: "temos de viver como vive a maioria,
não como vive a minoria", lembrando que "o presidente é um funcionário
que foi eleito pelas pessoas para um momento e uma etapa" e que
"ninguém é melhor do que ninguém". "A política é a luta pela
felicidade de todos".

Entre estas palavras e a sua existência quotidiana não há distâncias.

Vive com a mulher de há 40 anos, a senadora Lucía Topolansky, na casa
de uma assoalhada, onde também costuma receber os jornalistas. Ao lado
da roupa estendida e da horta que cultiva, é vegetariano, no meio das
galinhas e junto à cadela Manuela, que só tem três patas. Não é
esquisito no vestir e nem para ir à Casa Branca usou gravata, que
considera "um trapo inútil".

Estamos no Advento. Uns dizem que o melhor está para vir, mas adiam a
felicidade para o fim dos tempos. Outros repetem as figuras que
anunciaram a vinda do Messias. Porque não abrir os olhos para as
figuras que vivem hoje e abrem novos caminhos de Esperança?

Frei Bento Domingues, O.P.in Publico

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quarta-feira, dezembro 02, 2015

# As barrigas têm coração

http://observador.pt/opiniao/as-barrigas-tem-coracao/

Uma barriga traz consigo um coração que sente e uma cabeça que pensa.
O que se pede à mulher que "suporta a gravidez" é ou que não pense nem
sinta nada, que seja uma "coisa", uma caixa, uma incubadora

O novo governo precisava disto. Um projeto que galvanizasse as
cadeiras à esquerda do hemiciclo, afirmando (antes de mais) para
dentro e para fora, que a esquerda está unida! Houvera quem duvidasse,
tais suspeitas caíram. Logo na primeira oportunidade, levou-se à
discussão um conjunto de decisões chamadas fraturantes. E, afinal, sem
qualquer fratura a não ser nuns banquinhos mais à direita, tudo foi
aprovado.

Fixemo-nos no projeto de lei apresentado pelo Bloco de Esquerda sobre
a gestação de substituição, vulgo "barrigas de aluguer". Há, ao longo
de todo o texto, desde a exposição de motivos ao último artigo, uma
ausência quase absoluta, muito significativa e perturbadora: não se
fala da criança que vier a nascer deste processo. Quer dizer: trata-se
assumidamente do direito individual da mulher, acima de todo e
qualquer direito do nascituro.

Mas porque é que se centra todo o discurso no direito da mulher a
produzir um filho e nem sequer se refere a necessidade que o filho tem
de ter uma estrutura humana que o acolha saudavelmente? A única
referência, também perturbadora pelo extremo simplismo, surge numa
pequena frase: "A criança que nascer é tida como filha dos respetivos
beneficiários" (Artigo 8º, nº6). Como se fosse a coisa mais natural do
mundo trazer um filho de outros durante nove meses na barriga. No
entanto, o nº 1 do art. 8º diz que a mulher que suportou a gravidez,
renuncia "aos poderes e deveres próprios da maternidade". Ora, como só
renunciamos ao que nos pertence, de facto ou por direito, este artigo
reconhece que a maternidade é qualidade da mulher grávida (aliás, como
previa a lei de 2006: "A mulher que suportar uma gravidez de
substituição de outrem é havida, para todos os efeitos legais, como a
mãe da criança que vier a nascer").

Mais, confere-lhe um direito absolutamente inusitado: renunciar aos
deveres próprios da maternidade. Renunciar a um dever?! Está bem.
Mando dizer ao meu chefe que hoje decidi renunciar ao dever próprio de
ir trabalhar.

O BE, convencido do seu progressismo, revela-se, afinal, uma
organização discriminatória das minorias. Discrimina os homens. Diz o
texto que este projeto de lei defende "a eliminação da condição de se
ser casado ou viver em união de facto como critério de recurso às
técnicas de PMA. Desta forma estaremos a permitir o acesso a todos os
casais e a todas as mulheres independentemente do seu estado civil". E
os homens? Por que não podem os homens recorrer às barrigas de
aluguer? Se ser solteiro não é impedimento e não ter útero (ou lesão
do mesmo) é condição, porque não são os homens tidos em conta neste
projeto?

Não deixa de ser interessante que, afirmando-se o BE como o baluarte
dos direitos das mulheres, promovendo, por exemplo, o direito ao
aborto como decorrente do direito da mulher a decidir do seu próprio
corpo, etc., venha a defender que a mulher seja passível de se tornar
propriedade para alugar (sim, eu sei que não se prevê a inclusão de
qualquer pagamento por este "serviço"). Mesmo que seja uma decisão
individual daquela mulher em concreto (cuja intenção pode ser a
melhor!), o princípio é que a mulher pode ser aproveitada para
propriedade alheia. Instrumentalizar assim as mulheres nem parece do
BE.

Falemos do óbvio. Uma barriga geralmente traz consigo um coração que
sente e uma cabeça que pensa. O que se pede à mulher que "suporta a
gravidez" é, das duas uma: que não pense nem sinta nada, que seja uma
"coisa", uma caixa, uma incubadora, apenas cumprindo o estipulado no
acordo, tal e só como uma máquina (o que, para além de impossível,
seria desumano – para a mulher e para a criança); ou que seja o que
uma mãe é quando está à espera de bebé. Ao longo de nove meses,
enjoa-se nos primeiros tempos, espanta-se quando sente os primeiros
pontapés, ri-se quando sente os movimentos, alegra-se quando vê que
está tudo bem na ecografia, obriga-se a repouso absoluto quando o bebé
corre perigo… aqui apenas com um pormenor: ao fim de nove meses, é
obrigada (sim, mesmo que tenha assinado um papel de livre vontade) a
uma ruptura nesta relação, provocada pela entrega da criança aos
"beneficiários". Não se pode negar a violência gerada pela mecanização
desta relação.

Um "suponhamos": suponhamos que é diagnosticada à criança a síndrome
de Down, por exemplo. A mulher que a tem na barriga, porque
desenvolveu uma sensibilidade materna (certamente por incompetência
não conseguiu reduzir-se a incubadora), quer levar a gravidez até ao
fim e que os "beneficiários" não querem. Ou que a mulher quer fazer um
aborto e que os "benificiários" não querem. Isto só para levantar uma
questão, entre tantas outras.

Ao ter sérias reservas e acusar a imoralidade desta lei, não se trata
de negar a possibilidade a casais que não podem ter filhos por
inexistência ou lesão do útero da mulher. Não se trata de negar que
algumas mulheres até se ofereceriam honestamente para serem "barrigas
de aluguer" com uma séria intenção de ajuda a quem não pode "trazer"
os seus filhos. Trata-se de uma mudança de paradigma. Algumas
perspectivas de vida centram toda a sua visão no direito absoluto da
mulher a produzir e possuir um filho. E este é um princípio que
desumaniza. Porque não se pode usar os outros (ou as outras) como
meios para atingir os fins pessoais. Porque as pessoas não se possuem.
Porque um filho não é um direito.

P. Miguel Almeida, sj

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