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PENSANTES

Outros pensamentos, ideias e palavras que nos fazem pensar...

sexta-feira, janeiro 04, 2019

# António Coimbra Matos. “A cada ano recomeçamos, mas recomeçar para repetir o mesmo não leva a lado nenhum”

https://observador.pt/especiais/antonio-coimbra-matos-a-cada-ano-recomecamos-mas-recomecar-para-repetir-o-mesmo-nao-leva-a-lado-nenhum/

30 Dezembro 2018 Ana Cristina Marques

No dia em que fez 89 anos ("A minha ideia é passar os 100") falou da
nostalgia do Natal e da euforia da passagem de ano, mas também do amor
e da vida. Entrevista ao psicanalista António Coimbra Matos.

O divã está ligeiramente encostado à janela e das cortinas que varrem
o chão foge a claridade da manhã. O relógio marca as 11h de
quinta-feira, 20 de dezembro — a entrevista vai a mais de meio quando
António Coimbra Matos revela que faz 89 anos nesse mesmo dia. Já no
terceiro ato da vida, aquela que é uma figura incontornável na saúde
mental em Portugal continua a receber pacientes e a falar aos
jornalistas. Desta vez, a conversa é sobre a expetativa em torno do
novo ano, sobre a importância de recomeçar e de terminar tarefas em
suspenso, sobre a depressão, sobre o amor e sobre como as queixas em
consultório mudaram: já não é do coração que se desabafa mais, antes
das condições de trabalho.

"Há licenciados a ganhar 700 euros, não chega para ter carro e alugar
uma casa. Nos anos 70, toda a gente acreditava que íamos trabalhar
menos horas. O que aconteceu foi o contrário." Esta é uma das críticas
que Coimbra Matos faz, ele que, a par de psicanalista de referência,
fala por comparação: de como as coisas eram no seu tempo, de como as
coisas são agora. Em uma hora e meia de conversa, fala de tudo um
pouco, com a saúde mental a ser sempre o elo de ligação entre tópicos.
Para o fim fica o amor, "a melhor coisa do mundo".

Esta altura do ano é sempre nostálgica. Há alguma explicação para isso?
O Natal é um pouco nostálgico. A festa é em família, as pessoas
reúnem-se e há uma certa tendência para lembrar aqueles que já não
estão. Mas depois vem a passagem de ano, que geralmente é uma festa ao
contrário: estamos lançados nas coisas que vamos fazer no próximo ano,
é uma visão mais otimista, de futuro.

É curioso que dois momentos contraditórios estejam tão próximos um do outro.
Sim, mas… a vida é sempre assim. O que verdadeiramente vivemos é o
presente. De vez em quando fazemos uma curva para relembrar o passado
e lançamos um laço para o futuro.

A chegada do ano novo coincide com a introspeção que fazemos dos
últimos 12 meses. Do ponto vista da saúde mental, é importante fazer
essa analepse?
Depende muito das pessoas. Há pessoas que têm uma certa tendência para
lembrar o passado, para pensar que no tempo delas é que era bom — são
os conservadores. Há outras que são mais otimistas e são mais
revolucionárias, pensam em mudar, em inovar e procuram coisas novas.

O que será o melhor desses dois mundos?
Ai, acho que é melhor o mundo mais otimista, o que aposta no futuro. O
passado foi aquilo que foi, já não o podemos modificar. Pode
servir-nos como exemplo, como aprendizagem, como referência. O futuro
é aquilo que vamos viver. Aparece a patologia da depressão em pessoas
muito ligadas ao passado… Há um poeta brasileiro, que já faleceu, o
Manuel Bandeira, que tem um poema — não me recordo agora do título —
com uma frase importante em que se refere às pessoas preocupadas com
aquilo que não foi mas que podia ter sido. "Eu podia ter feito isto
mas não fiz", etc. Costumo dizer que há uma coisa mais importante, que
é aquilo que ainda não fiz, mas que posso vir a fazer.

Esses "e se.." são tramados, não são?
Pois. O povo português… a saudade, o fado… é tudo muito ligado a isso.
Os factos históricos explicam isso, é um país pobre, um território
pobre, sempre virado para o mar, para a emigração, para fora — muitas
vezes os jovens ficaram sem os pais, apenas com as mães.

Isso teve alguma influência cultural na forma como vivemos?
Tem alguma. Na cultura clássica, mais antiga, os homens é que iam para
fora trabalhar, isso até acontecia localmente — os caçadores iam à
caça e as mulheres ficavam em casa a tratar dos filhos e a cozinhar.
Hoje isso é bastante diferente. Interfere em muitas coisas, na nossa
própria cultura, na escola, no convívio com a família… etc. Aqui há
uns anos — já foi há uns 40 anos talvez — apareceu um artigo num
jornal de psicanálise internacional de dois psicanalistas e psicólogos
norte-americanos. Eles fizeram um estudo que achei muito interessante,
embora bastante simples: foram a duas das principais revistas de
psicanálise dessa altura, ambas de língua inglesa, e foram procurar
200 artigos publicados nestas duas revistas por psicanalistas europeus
e 200 artigos por psicanalistas norte-americanos. Foram só procurar
uma coisa, o número de vezes que citavam o nome de Freud. Sabe qual
era a diferença? Os europeus citavam 10 vezes mais. A gente vê isso em
congressos, os norte-americanos fazem muito menos citações.

O que é que isso quer dizer dos norte-americanos por oposição aos europeus?
Que são mais ligados à realidade, à atualidade, ao futuro. Nós estamos
muito ligados à história. Este culto da história… O meu pai era muito
inovador e a minha mãe muito conservadora, o meu pai estava sempre a
fazer alguma coisa em casa e a minha mãe ficava aflita com aquilo,
chamava-o de maluco.

Voltemos ao novo ano: porque é que precisamos de recomeçar ano após ano?
Bom… Aí há dois aspetos. A cada ano recomeçamos, mas há o recomeçar
para repetir o mesmo e isso não leva a lado nenhum. Mas há um outro
tipo de recomeço, que é o seguinte: há coisas que deixámos no passado
que não acabámos e completá-las é importante. Por exemplo: acontece na
clínica ver pessoas que tiveram uma relação amorosa que acabou, mas
que nunca fizeram o luto total; de vez em quando ficam a pensar
naquilo… É bom retomar para terminar esse trabalho, levar essa tarefa
até ao fim. A pessoa que desejou muito desenhar mas que, por qualquer
razão, foi para um curso científico… porque não retomar? As tarefas
inacabadas convêm ser retomadas, senão…

Senão… estão sempre a puxar-nos para trás?
É. Ou a ocupar espaço.

Aquilo que disse de "recomeçar para repetir" tem alguma coisa que ver
com vivermos em piloto automático?
Tem mais que ver com certas inibições, tem que ver com pessoas que têm
uma certa dificuldade de viver o presente e de projetar o futuro.
Vamos ver isto de outra maneira: há pessoas que são de hábitos e há
pessoas que querem mais e diferente, de inovação. A rotina mata. É bom
não fazer a mesma coisa. Nós necessitamos de mudança. Os casais que
duram muito tempo são geralmente casais que inovam, não fazem sempre a
mesma coisa (por exemplo, não passam férias da mesma maneira). Aqueles
que fazem sempre a mesma coisa ou entram em conflito ou, então, numa
espécie de pasmaceira, uma pasmaceira confortável, que não traz nada
de novo. Há pessoas que viajam, chegam a determinado sítio e vão a um
restaurante e pedem um vinho português, um bacalhau com grão; há
outras que escolhem o prato do sítio, que nunca viram, têm essa
curiosidade que é muito mais interessante. Sou produtor e apreciador
de vinhos e, quando vou a qualquer sítio, a primeira coisa que faço é
ver os vinhos do sítio.

Há pessoas que apreciam mais o já conhecido e há pessoas que apreciam
mais o desconhecido. Perante o novo e o desconhecido há uma atitude
dupla em todos nós: um certo medo do que vai acontecer, porque pode
ser perigoso, pode ser desagradável, e o entusiasmo. Quando temos mais
saúde mental, predomina o interesse pelo desconhecido, o fascínio pelo
desconhecido. Se somos mais doentes, predomina o medo.

Podemos ser viciados na novidade?
Podemos, mas é um bom vício. Foi o que fez D. Afonso Henriques, veio
conhecer as mouras porque as galegas estavam lá por Guimarães. É mais
saudável e mais natural.

A nível de comportamento e de ambições, as gerações mais novas podem
ser mais insatisfeitas?
As novas gerações são mais qualificadas do que as outras. O que
acontece atualmente na juventude é que as condições de vida, as
condições económicas, não são fáceis. Não se vê um futuro fácil. É a
primeira vez na história do ocidente que a geração dos filhos ganha
menos do que a geração dos pais. No meu tempo havia emprego, qualquer
licenciado arranjava emprego no dia seguinte. E arranjava um emprego
razoável, dava para viver.

Isso cria frustração enorme entre os mais novos…
Pois cria.

Como pode essa geração lidar melhor com a ideia de um futuro hipotecado?
Tem de se mudar o mundo, como está não está bom. Tem de se mudar,
sempre se mudou. Sempre houve mudanças.

Ainda sobre projetar o futuro, quais as diferenças entre o devaneio
diurno e o sonho noturno?
Na psicanálise clássica dá-se importância aos sonhos noturnos. Mas os
sonhos noturnos não têm uma importância muito grande porque trabalham
memórias, coisas que já lá estão. Dou mais importância ao sonho diurno
porque é no sonho diurno que aparecem coisas novas e ideias novas. É o
sonhar com um casa, é o imaginar como é que vou construir ou comprar
uma determinada casa… Estou a produzir coisas novas. Aí, a pessoa
revela-se de alguma forma.

O devaneio diurno é mais saudável do que o sonho noturno?
É muito mais importante porque representa planos de futuro. Mas depois
também há dois tipos de devaneio: há os devaneios vagos e aqueles que
chamo de sonhos-projeto ("Como é que gostaria de passar as próximas
férias?", "Como é que vai ser o próximo livro que vou escrever?"). Há
um poeta português que diz que o sonho comanda a vida. Se ele está a
pensar nos sonhos noturnos, não comanda de facto; se está a pensar nos
sonhos diurnos, sim. Por isso é que digo: a criatividade comanda a
vida.

À medida que vamos crescendo ficamos mais assustados com a passagem do
tempo. Como é que se lida com isso?
Isso é discutível. Claro que à medida que envelhecemos começamos a ter
um futuro possível mais curto e isso funciona como um certo travão,
temos menos sonhos. As pessoas mais saudáveis não sonham só para si,
sonham para os netos, para os bisnetos, sei lá. Um engenheiro que
constrói uma ponte, fá-lo para que esta dure 100 anos. Quando temos
uma visão mais alargada, projetamos coisas que já não são para nós,
alguém virá, deixamos uma obra.

É como o produtor de vinhos que faz aquele vinho que só vai ser bebido
daqui a 20, 30 anos…
Sim, sim, ou daqui a 100. Aqui há uns anos, uma amiga minha que é
filósofa convidou-me para um congresso sobre a morte e as origens.
Disse-lhe que não ia falar da morte, que tinha mais do que fazer. Ela
insistiu e eu disse: "Só se puder falar de sexo também". Todos nós
temos uma angústia da morte, um medo de morrer que é comum. Nós, os
humanos, temos outra angústia porque somos o primeiro animal que tem a
certeza de que a nossa vida é limitada, portanto, temos uma angústia
existencial. Essa angústia existencial tem algumas saídas: uma delas a
saída religiosa, outra é precisamente o que se costuma chamar de
imortalidade simbólica — "Eu sei que vou morrer, mas algumas pessoas
aprenderam alguma coisa comigo, escrevi algumas coisas que as pessoas
podem ler."

É a importância do legado?
Sim, sim. Ter legado mas com sentido produtivo e acrescentado pelos outros.

Está contente com o legado que já deixou?
Estou.

Sente-se realizado?
Mais ou menos. Continuo a ter projetos, ainda ontem fiz um seminário à noite.

O que lhe falta cumprir?
A minha ideia é ultrapassar os 100 anos. Faço hoje 89.

Parabéns!
Obrigado.

Já disse em entrevista que "estamos atrasados em relação a muitas
coisas, mas ao nível das mentalidades não". Somos um país evoluído na
forma de pensar?
Acho que evoluímos muito, principalmente depois do 25 de abril. Houve
uma evolução muito grande, mais até do que em muitos outros países
europeus. Por exemplo, em relação à sexualidade, à adoção de casais
homossexuais, à mudança de sexo… A este nível das mentalidades tem
havido evoluções grandes.

O país não é tradicionalista?
Era, mas hoje está mais avançado do que a maior parte dos países da
Europa. Ainda há muitos países europeus que não aceitam o casamento
homossexual — pode não ser proibido, mas não é propriamente aceite. A
adoção de crianças por casais homossexuais menos ainda. O mesmo tendo
em conta a aceitação da transexualidade e, fundamentalmente, esta
ideia de ser o próprio indivíduo a poder mudar a sua identidade de
género sem intervenção de médicos, desde que tenha 18 anos — e aos 16
já o pode fazer desde que os pais estejam de acordo.

Nesse sentido somos progressistas?
Acho que sim. Acho que demos uma grande volta. Noutras coisas…
Economicamente estamos mais atrasados do que outros países, os
salários são mais baixos, a produção científica é bastante boa, mas só
nos últimos 10, 15 anos…

Isso está relacionado com o facto de termos sido reprimidos durante tanto tempo?
A revolução do 25 de Abril durou muito tempo, foram quase uns dez
anos. Houve muitas mudanças. Em Espanha, mudou de Franco para a
república, mas muitas coisas continuam exatamente na mesma, houve
pouca mudança de mentalidades. Mesmo nas próprias leis, não houve as
mudanças que houve aqui.

Porque é que se interessou sobre a depressão?
Fundamentalmente porque tinha muitos casos, é uma patologia muito
frequente. Por outro lado, as explicações e as teorias que existiam
não me satisfaziam, não encontrava resultados. Comecei a investigar
com os meus próprios doentes. Foi um caso de necessidade, aquilo que
encontrava na prática clínica, as teorias que existiam e os métodos
propostos não me satisfaziam.

O que é que via em consultório que não encontrava nos livros?
Bom, isso é um bocado mais difícil dizer, mas … para já, a depressão é
muito confundida com o luto. O luto patológico e a depressão são
coisas diferentes, o luto é a reação perante o desaparecimento, como a
morte, a depressão é perda de afeto, só surge numa rutura amorosa. Se
a minha mulher morre, faço um processo de luto, se a minha mulher
deixa de se interessar por mim porque se interessou por outro homem,
faço uma depressão. O luto é reação à perda do objeto de amor, a
depressão é reação à perda do amor do objeto — é mais complicada, lida
com coisas menos visíveis. A economia depressiva é quando um indivíduo
vive relações em que dá mais do que aquilo que recebe, pelo que está
permanentemente em perda — é como a economia de um país que importa
muito e exporta pouco… entra em depressão económica.

Imaginemos alguém que está retido nessa economia depressiva, como é que se sai?
Não é fácil, em alguns casos é muito complicado e demora muitos anos a
esquecer, isso é quase caso a caso.

É possível uma pessoa estar deprimida durante anos e não o perceber?
É.

Como é que se pode identificar uma situação dessas?
No luto, o principal sintoma é o facto de a pessoa estar triste, num
estado depressivo a pessoa também está triste mas, fundamentalmente,
há menos motivação — uma pessoa sai menos para ir ao cinema, faz menos
telefonemas aos amigos, come menos ou come demais, está
desinteressada, esse é que é o grande sinal.

Como é que se chega ao suicídio?
O suicídio é um problema muito complicado. Mas… enfim, o suicídio na
maior parte das vezes é uma depressão funda, são estados depressivos,
perdas amorosas, algumas muito antigas, desde a infância. Mas há uma
outra coisa desconhecida no suicídio: há sempre uma porção, que pode
ou não ser mínima, em que o suicídio é a realização de um mandato
filicida. Vou explicar: é a pessoa que em criança sempre sentiu que a
sua presença tinha sido a desgraça da família, portanto, que não devia
existir, que devia morrer. São geralmente mensagens não explícitas —
mensagens implícitas e também inconscientes — que se ouvem: "O teu pai
morreu com um enfarte, mas também fazias birras terríveis"… A pessoa
começa a pensar que a culpa é dela. Mais ainda, que não devia existir.

As pessoas que pensam no suicídio normalmente procuram amigos,
especialistas, psiquiatras ou psicólogos. O pior são as pessoas que
não pensam no suicídio, em que elas próprias não tomam grande
consciência dessas ideias latentes. Essas são as mais arriscadas. É
difícil, geralmente só um técnico bastante habilitado é que é capaz de
ver numa primeira consulta que aquele indivíduo corre risco de vida,
de suicídio. Mas normalmente aqueles que dizem "qualquer dia
suicido-me"… cão que ladra não morde. Mas agora a pessoa que diz "a
vida não tem interesse nenhum, não sei porque é que a gente existe…
Ah, mas não pense que me vou suicidar"…

Já lhe aconteceu ter receio pela vida do paciente?
Mais do que uma vez e tive um que se suicidou. O caso marcou-me
bastante. O paciente era do Porto, foi o cunhado dele, que foi meu
colega de curso, que me pediu para o ver. Tinha sido tratado por um
colega do Porto, um colega distinto, que foi meu professor de
psiquiatria. O homem tinha diagnóstico de esquizofrenia, uma depressão
grave, e tratou-se comigo durante uns 5 anos. Depois mantive-o durante
uns 15 anos, ele vinha a Lisboa regularmente. Ultimamente, estava a
vê-lo de seis em seis meses e, depois, passei a vê-lo de ano em ano.
Suicidou-se neste segundo ano. Acho que larguei-o cedo demais, devia
ter mantido as consultas de seis em seis meses. A coisa mais dramática
para um terapeuta é um doente que se suicida.

Ainda hoje recebe pacientes com os mais variados problemas…
É preciso estar atento. Todos os dias tomo notas, geralmente são os
casos clínicos que me ajudam a perceber melhor, ajudam-me a escrever
artigos.

Tem ideia de qual é o paciente que está consigo há mais tempo?
O paciente que está comigo há mais tempo esteve ontem comigo. Agora só
vem uma vez por mês, mas já veio três vezes por semana. Está comigo há
muito tempo, melhorou muito, mas ainda tem alguns problemas. Mas este
mês fez progressos. Há pacientes que quando chegam a determinado
patamar acham que já estão bem, há outros mais exigentes consigo
próprios, que é este caso, que acha que ainda pode ir mais longe.

É um otimista?
Quem? Eu sou!

O paciente…
Começa a ser.

De um modo geral, como é o estado da saúde mental dos portugueses?
O que as estatísticas mostram é que, se analisarmos os dados dos
serviços de saúde, há uma maior percentagem de depressão e ansiedade
do que na média europeia. Mas isso depende muito da forma como se
fazem os diagnósticos.

O que quer dizer com isso?
É aquilo que é visível. Há uns anos colaborei num trabalho com vários
sociólogos sobre a violência doméstica. E quando fizemos a análise dos
dados, chegámos à conclusão de que havia muito pouca violência
doméstica. Estranhei aquilo e um sociólogo disse-me "É um problema de
visibilidade". Ainda somos um país onde as pessoas não contam,
escondem, têm esse problema. Quando digo também que é um problema de
diagnóstico… quer dizer, isto é baseado nos diagnósticos feitos nos
hospitais ou nos centros de saúde. Acho que há um certo exagero no
diagnóstico, facilmente se rótula um indivíduo com depressão ou com
ansiedade patológica, quando muitas vezes não está propriamente
deprimido. Não é propriamente doença.

Refere-se a um excesso de diagnósticos?
Sim e de rotulagem. É tudo hiperpsicótico, hipermaníaco, todo o tipo
sofre de uma depressão grave. Durante algum tempo conheceu-se mal a
depressão infantil, achava-se que as crianças não deprimiam. Eu sou
desse tempo. Depois começou-se a perceber que as crianças também têm
depressão. Também sou do tempo em que isso foi uma epidemia. Dirigi um
centro de saúde mental durante 20 anos e houve uma altura em que as
equipas quase só diagnosticavam depressão. Havia um excesso de
visibilidade e um excesso de diagnóstico. Por outro lado, somos dos
países que mais consome psicotrópicos — principalmente ansiolíticos e
antidepressivos. Isso é que é um bocado o nosso atraso. Somos um país
em que os psiquiatras, os médicos em geral, são muito mais
influenciados pela propaganda das empresas do que noutros países.
Nisso, somos menos técnicos, menos científicos, acreditamos demasiado
no livro, no que está escrito.

É um problema de falta de confiança?
É um problema de educação. Ainda veneramos o professor, o professor é
que sabe. Ainda veneramos muito os estrangeiros…

Então, é um complexo de inferioridade?
É! Até nas línguas, vamos a qualquer lado e pomo-nos logo a falar
inglês. O Samora Machel, que foi presidente de Moçambique, foi aos EUA
em viagem em oficial — o tipo falava inglês e recusava-se a dizer uma
única palavra em inglês, era uma questão de honra. Aqui não. Nisso,
somos um pouco servis. Veneramos o que vem de fora. Há uns tempos fui
a um congresso em Lisboa, em que havia conferências de ingleses,
americanos e portugueses. Num dos congressos havia um conferencista
português que fez uma excelente conferência e o inglês fez uma
conferência fracota, no entanto, toda a gente ficou embasbacada com o
inglês. Portugal é um país onde se abusa dos títulos. Agora há menos,
mas ainda acontece na maior parte dos congressos — professor, senhor
doutor. Vai-se a Inglaterra ou aos EUA e não há nem professor nem
doutor. Há uns tempos, numa entrevista, perguntaram-me como é que me
podiam tratar. Disse "António Coimbra Matos".

Ainda há muito estigma em torno das doenças mentais?
Diminuiu muito. Sou do tempo em que havia muito mais. Havia pacientes
que me pediam para não escrever o nome deles na agenda. Lembro-me de
um paciente perguntar se o recebia às 22h para ninguém o ver entrar no
meu consultório. Hoje em dia isso não acontece.

Mas parece que ainda há vergonha em dizer que se está em terapia.
Sim, mas pouco. Comparativamente falando.

São muitos anos de consultório, há alguma coisa de que o português se
queixe mais?
Há alguma mudança nestes últimos anos e isso representa um aspeto
social importante. Mais atrás, o principal motivo de queixas eram
coisas de relação afetiva, relação em casal, dificuldades com os
filhos ou com os pais. Hoje aparecem várias pessoas com problemas
relacionados com o trabalho — sentem-se usados no trabalho, o trabalho
que é insuportável, etc. Há uns tempos recebi uma paciente que, na
segunda consulta, percebi que não estava deprimida, estava em burn out
porque trabalhava horas em excesso. Ela que é uma médica distinta não
tinha feito esse diagnóstico. A maior parte das pessoas trabalha muito
mais, as empresas exigem muito mais.

Há cada vez mais casos de burn out?
Há mais casos de burn out e de conflitos laborais, pessoas que não se
sentem bem porque têm conflitos com os colegas.

Faz sentido que seja uma das principais críticas porque é onde
passamos mais tempo…
Também é verdade, mas as condições de trabalho pioraram. Trabalha-se
mais, paga-se menos. No meu tempo não havia licenciado nenhum, mesmo
acabado de formar, que não ganhasse o suficiente para arrendar uma
casa… Hoje, a maior parte não pode fazer isso. Ou não tem emprego ou
tem quase o salário mínimo. Há licenciados a ganhar 700 euros, não
chega para ter carro e alugar uma casa. Nos anos 70 toda a gente
acreditava que íamos trabalhar menos horas. O que aconteceu foi o
contrário. Nos anos 1960 eu dava aulas um dia por semana e às
quartas-feiras não trabalhava. Há já muitos anos que não faço isso.

Este tipo de vida é muito mais…
Stressante.

…Mortífero?
Também. Quando a pessoa faz aquilo que gosta… Os meus amigos às vezes
criticam-me, acham que trabalho demais. Eu gosto daquilo que faço,
isso também é uma coisa importante. É importantíssimo a pessoa
escolher uma coisa que gosta porque passamos a maior parte do tempo a
trabalhar. Conheço um fisioterapeuta no Hospital de Coimbra que tem de
fazer massagens de 20 em 20 minutos sem intervalos, ninguém consegue.
Há mais. Há um hospital, parceria público-privada, em que a maior
parte dos gabinetes médicos não tem janela para o exterior e o que é
mais grave é a razão de ser: é para a pessoa não se distrair, para o
técnico não se distrair. É exploração. Esta coisa de "não sou eu, é a
empresa, são os mercados, a entidade anónima, os outros". [A culpa] é
de uma coisa anónima, não se sabe a quem é.

E agora sobre o amor…
Isso é a melhor coisa do mundo.

O que é melhor, estarmos sós ou mal acompanhados?
Nem uma coisa nem outra. Mas é bom termos a capacidade de estar sós.
Porque se tivermos a capacidade de estar sós fazemos melhores
escolhas, esperamos, selecionamos… Se não conseguirmos estar sós,
agarramos a pessoa que nos aparece.

A solidão é um flagelo deste século?
É um problema na medida em que há menos relações sociais. Eu vim do
Porto para Lisboa em 1960. No Porto é diferente, agora está mais
parecido com aqui, mas em Lisboa não conhecemos os nossos vizinhos.
Vivemos muito em solidão, sem relações com alguma vinculação, com
algum afeto. No prédio onde moro, estou lá desde 1971, morreu uma
senhora que vivia sozinha com 80 anos e ninguém foi ao funeral. Um
jornalista na televisão, aqui há uns tempos, relatou um caso que achei
muita piada: era sobre dois casais, havia ali uma troca, um tipo que
era casado e que tinha uma relação amorosa com a mulher de outro e só
ao fim de dois anos é que perceberam que moravam no mesmo prédio. Isso
mostra bem a solidão.

Sendo o amor o mais importante, será que o pomos em primeiro lugar?
Acho que sim. Este é um país de poetas, a poesia é uma coisa muito do amor.

E só existimos se amarmos alguém?
Ai, sim. Só existimos apaixonados. Só é bom existirmos apaixonados.

Mas a paixão é difícil de manter…
Não. O meu psicanalista dizia muitas vezes que eu era um apaixonado,
pelas coisas, pelas pessoas. Acho que a vida tem de ser vivida com
alguma intensidade. Para o próximo congresso que está marcado para
março pediram-me para fazer a conferência inaugural e para escolher um
título. O título que dei é "Sol-pôr da paixão" [trocadilho com
pôr-do-sol] e o subtítulo "A decadência do entusiasmo". É isto que
leva à doença, à própria doença psicossomática.

A decadência do entusiasmo?
Sim. Quando se está na madrugada da paixão não há mal que nos chegue.

Mas a paixão não se tende a esvair?
Depende um bocado do tipo de relação. Habitualmente, nas relações que
têm mais sucesso e que representam também uma maior maturidade das
pessoas, a paixão vai-se fazendo. Começa como uma relação de
bem-estar, de gostar de conviver com aquela pessoa… as paixões à
primeira vista, etc, essas é que muitas vezes decaem, não é? A pessoa
vê depois que, afinal, foi uma ilusão. Depois outro aspeto, que é um
aspeto importante, de haver variedade, de não fazer sempre a mesma
coisa, de manter vivo [o romance].

Não é difícil, muitas vezes, perceber quando é que é amor?
Podemos falar de vários amores. Há relações afetivas e há a palavra
amor aplicada em sentido restrito, que está ligada ao erotismo, à
sexualidade. Portanto, depende do sentido que se está a dar à palavra.
Começa a haver uma relação de nível amoroso, seja entre amigos, entre
pais e filho, entre namorados ou amantes quando eu existo no afeto de
alguém e a outra pessoa existe dentro do meu afeto, do meu pensamento,
na alma e no coração. Quando namorados se despedem no aeroporto dizem
sempre o mesmo: "Não te vais esquecer de mim, pois não?". É o mais
importante. Não é "não me vais trair ou não me vais abandonar". Quando
há esta vinculação, esta existência do outro dentro do seu parceiro,
amigo ou amante, podemos falar de amor. Fora disso falamos de desejo,
excitação, sexualidade.

Como é que os portugueses amam?
Pensam que amam melhor, porque as relações amorosas e a sexualidade
estão mais livres. Os adolescentes começam a fazer isso relativamente
cedo, portanto, o amor cresce de uma maneira mais natural, sem
conflitos, sem medos, etc. Isso facilita a que as pessoas possam
escolher sem estarem com dificuldades, sem sentirem censuras, sem
transgredir.

Há menos tabu?
Muito menos. Há uns anos muitas coisas eram tabu e outras coisas eram ignoradas.

Hoje o amor vive-se de uma forma mais livre?
Bastante mais. Mais livre e mais autêntica, as pessoas assumem. E mais
transparente. Isso vê-se na clínica. Há 40 ou 50 anos as infidelidades
conjugais, quer do homem quer da mulher, ficavam muitas vezes
escondidas. Hoje, na maior parte das vezes, acabam por contar ao
próprio. É uma coisa muito mais assumida.

Mas não sendo assumida, imagino que seja um fardo muito grande…
Maior ainda, mais culpa, mais dificuldade em esconder.

António Coimbra Matos, o que espera no novo ano?
Não sei. Sei do meu desejo. Na primeira ou segunda semana de janeiro
quero ir à minha terra [no Douro]. Tenho lá um vinho do Porto, um
Vintage 2017… está na altura de o provar.

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# Três em cada quatro emigrantes qualificados podem voltar a Portugal

https://observador.pt/2019/01/04/tres-em-cada-quatro-emigrantes-qualificados-podem-voltar-a-portugal/

4 Jan 2019 JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Cerca de 78% dos emigrantes portugueses qualificados admitem voltar a
Portugal. Outros dizem que os próximos dois anos podem mesmo ser de
regresso ao país.

Entre o período mais crítico da crise e 2018, a percentagem de
trabalhadores dispostos a emigrar caiu de 80% para 37%

Três em cada quatro emigrantes qualificados admitem regressar a
Portugal, o que se traduz num valor de cerca de 78% daqueles que
decidiram deixar o país no passado em busca de uma maior qualidade de
vida. Destes 78%, 43% afirmam que podem fazê-lo nos próximos anos,
segundo noticia a Renascença.

Este é o resultado do Guia do Mercado Laboral, avançado por uma
consultora na área do emprego e do recrutamento especializado. De
acordo com o inquérito, 84% dos portugueses que saíram do país no
tempo da crise não se arrependem de o ter feito, mas a estabilização
da economia nacional pode estar a atrair de volta aqueles que
emigraram nessa altura e poderá estar também a fixar os mais
qualificados.

O facto de as empresas começarem a pagar melhor e a promover os que se
destacam nas respetivas áreas é algo que pode estar igualmente a
abrandar a emigração portuguesa. Entre o período mais crítico da crise
— no qual a taxa de desemprego ultrapassou os 16% — e 2018, a
percentagem de trabalhadores dispostos a emigrar caiu de 80% para 37%.

O que o inquérito não conseguiu, porém, apurar foi o facto de este
poder ser ou não o resultado daquilo que foi prometido pelo Governo em
termos de benefícios fiscais, no início da legislatura. Ainda assim,
87% dos mais de 3 mil emigrantes inquiridos dizem que uma eventual
redução do IRS como benefício fiscal terá pouca ou mesmo nenhuma
influência na decisão de regressar.

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