12-03-2004
Para Saldanha Sanches. Professor de Direito Fiscal da Universidade de
Lisboa, a má gestão nos vários ministérios é o prato do dia.
Mas afinal, com tão fracos ordenados e reformas que não passam das boas
intenções, ir para o governo não é a ambição dos melhores.
MaisValia - O nosso sistema fiscal algum dia poderá ser eficiente?
Saldanha Sanches -Tem de passar a ser eficiente porque é um tremendo peso
morto. Neste momento dá o seguinte sinal às empresas: não cresças,
mantém-te pequena; se tiveres sócios de confiança, engana o Estado. Esse
sinal que se dá aos empresários é o pior serviço que se pode prestar ao
país.
M.V. - Como é que se altera isso?
S.S. - Tem de haver rigor fiscal em relação às pequenas e médias empresa. É
preciso criar o risco de penalizar quem tem comportamentos censuráveis.
M.V -As penas devem ser aumentadas?
S.S. - É preciso aumentar o risco. Aumentar as penas é sempre uma saída
demagógica. Acima de tudo, o sistema tem de funcionar já. A nossa lei tem
penas que nunca mais acabam. A questão é aplicá-las em tempo útil: quando
alguém é julgado por um crime fiscal ao fim de 10 anos, isso deixa de fazer
sentido.
M.V - Podemos manter os milhares de funcionários da Administração Fiscal?
S.S. - Não. A solução é criar um corpo que se sobreponha à Administração
Fiscal e que a reconstnia, com a ajuda dos melhores que lá estão.
M.V. -Acha que o Estado devia criar um de auditores de elite?
S.S. - Basta começar por um pequeno grupo de elite. A questão é escolher,
mas a nomeação não pode ter uma lógica partidária. Tem de ter uma lógica de
pura eficiência. Não podem ser escolhidas pessoas como fez o PS na
Administração Geral Tributária. Essas pessoas têm de ter poderes vastos
para reconstruir uma máquina que está inteiramente apodrecida.
M.V. - Esse grupo de auditores não pode ir a todas as empresas...
S.S. - Não é preciso ir a todas. Basta escolher os pontos de intervenção.
Por exemplo, começar por atacar quatro ou cinco empresas de construção
civil, que é o sector marcado da economia paralela. A partir daí, os outros
vão perceber.
M.V - O que considera essencial na reforma da Administração Pública?
S.S. - Deve haver uma estrutura tipo instituto, criada de novo, com
gestores de grande competência - de preferência gestores do sector privado,
jovens em começo de carreira. Tem que existir grande seriedade em relação
às questões deontológicas. Não pode haver compromissos, não pode haver
part-times, não pode haver trabalhos privados enquanto estão lá. Têm que
ser relativamente bem pagos.
M.V -A mudança sistemática do quadro gostam. Sa0 fiscal tem dificultado a
vida à administração fiscal?
S.S. - Cada governo muda a lei. A lei do sigilo bancário tem de ser mudada.
Tal como está é um entrave. Na maior parte dos casos, as leis e a
Constituição são muito razoáveis, bem explorados podiam resolver os
problemas com que nos defrontamos.
M.V - Em que situações concorda com o levantamento do sigilo bancário?
S.S. - Devíamos ter um controlo directo, imediato, feito por computador,
como acontece nos Estados Unidos e no Canadá, às contas dos contribuintes:
controlo permanente para investigar os casos em que houvesse suspeitas. Um
controlo feito de forma automática e com investigação personalizada.
M.V. - O levantamento do sigilo bancário ia afugentar investidores de
Portugal?
S.S. - Isso é um perfeito disparate. Para haver investimento cá, tem de
haver capital cá. E só vai haver investimento cá se houver oportunidade de
fazer bons negócios. A fuga de capitais é um falso problema. A não ser que
achemos que Portugal deve ser um paraíso fiscal. Os capitais deslocam-se
não por causa do sigilo bancário, mas por causa dos impostos.
M.V - Acha que se deve sancionar publicamente os infractores das leis
fiscais, como forma de censura social?
S.S. -Os julgamentos são públicos, inclusive num crime fiscal. Não é
preciso fazer publicidade. Se fosse apanhado um empresário de futebol, com
ligações a presidentes de clubes, num processo de crime fiscal com pernas
para andar, estaria a televisão em peso na Boa Hora.
Há imensos candidatos.
M.V -A grande fatia das receitas fiscais vem do IVA. É normal que assim
seja?
S.S. - É um bocado terceiro mundista. Mas atenção: não se pode mexer muito
aí porque, apesar de tudo, o IVA é mais eficiente do que o IRS e o IRC. A
questão é saber até que ponto o IVA a 19% nos está a prejudicar por causa
da Espanha ter 15%. Era capaz de ser útil baixar o I VA, se conseguirmos
que o IRS e o IRC rendam mais. E, isso, é extremamente difícil.
M.V - Baixar o IRC para 20% faz sentido?
S.S. - Não tem sentido nenhum. Não é por aí que vamos competir com a
Estónia, que tem 0%. A Autoeuropa já paga 0%. E se vierem para cá outras
"Autoeuropas", também pagarão 0%. Se vier para cá gente especular, deve
pagar 30%.
M.V -A descida do IRC teve um efeito meramente psicológico?
S.S. - Teve um efeito político. Durão Barroso tinha feito promessas
insensatas sobre o choque fiscal. Depois aumentou o IVA ninguém estranhou.
O choque fiscal foi esse. A consequência é que se sentiu obrigado a fazer
algo de bom para as empresas.
M.V. - O que faria para atrair investimento?
S.S. - A curto prazo, pouco. .actualmente qualquer grande projecto vem para
cá com 0% de IRC. Esses Grandes projectos esbarram sempre na burocracia que não funciona e nas dificuldades com as autarquias. É preciso reforçar o
poder central. Se entregamos projectos internos à voracidade do poder
autárquico, estamos a impedir que esses projectos venham para caí. As
autarquias portam-se como senhores feudais. Pretendem cobrar direitos de
passagem.
M.V.- É necessária agilizar a burocracia?
S.S. -.Agilizar não significa fazer um hotel de luxo no Mosteiro dos
Jerónimos..A burocracia tem de defender o património, mas tomar decisões
rápidas. Não podemos cair no curto prazismo de deixar que tudo seja
permitido para atrair o investimento.
M.V -O que deve ser feito para equilibrar as contas públicas?
S.S. - As contas pública, estarão equilibradas se se mantiver a política de
redução de despesa. É essencial reformar o que está por trás do défice: o
modo como funciona a Administração Pública. Há sectores que podem ser
reestruturados com Grande rapidez. Por exemplo, o registo e o notariado.
Pode fazer-se tudo aquilo com muito menos gente e muito menos despesa.
M.V -A reforma da Administração Pública implica mandar gente para casa?
S-S. -Vão-se reformando pouco a pouco. É a altura pior para os despedir. É
uma questão de gestão de recursos, em que há entrada de pouca gente e,
pouco a pouco, a grande camada de funcionários desmotivados e
desqualificados vai-se reformando.
M.V - Que outros cortes faria na despesa?
S.S. - O sector que simboliza a resistência à racionalização são as Forças
Armadas. Continuamos a ter tudo: Marinha, Força Aérea, temos tudo. Temos
que fazer escolhas. Tudo aquilo mantém-se em função do interesse do soldado funcionário e nunca em nome do interesse nacional.
M.V. - O congelamento dos salários da função pública era inevitável?
S.S. - Era porque não havia dinheiro. A função pública tem gente notável,
que trabalha porque gosta. Este emprego tem tantas garantias que só se
trabalha quando se quer. No entanto, há pessoas que trabalham porque
gostam. O ordenado é o mesmo. A progressão de carreira é a mesma. Qual é a vantagem? Só mesmo por gosto. São manias... Os critérios diferenciadores
têm de ser cada vez mais intensos.
M.V - Que conselhos daria à ministra Manuela Ferreira Leite? autarquias
S.S - A ministra mostra uma grande firmeza naquilo que faz, mas por vezes
confunde firmeza com inflexibilidade. O seu grande problema não é a
política que desenvolve, é que nos demais ministérios as coisas conseguem
ser piores. A má gestão sucede-se. Quem é que hoje quer ir para o governo?
Pretendem
M.V - Como atrair bons ministros?
S.S - Devia haver coragem para pagar direitos de aos agentes políticos.
Isso implicaria um ministro com muito mais carisma, para atrair gente
competente para aqueles lugares. Hoje, um ministro chega ao ministério,
rodeia-se de pessoas da sua confiança e olha com susto para o resto que lá
está.