Carta da Comissão Nacional Justiça e Paz aos cristãos
Aqui vai um texto chegado agora ao meu conhecimento, e que creio ter
interesse, enquanto posição representativa do pensamento social de sectores
da Igreja Católica,
apresentando pontes e conexões com a análise e a crítica do
neoliberalismo, dos seus responsáveis e consequências. Henrique Sousa
---------------------------------------------------------------
Comissão Nacional Justiça e Paz
Carta da Comissão Nacional Justiça e Paz aos Cristãos
UM OUTRO OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES E A EXCLUSÃO SOCIAL
UM OUTRO COMPROMISSO COM UM MUNDO MAIS JUSTO E SOLIDÁRIO
1. Nesta Quaresma de 2004, a CNJP vem dirigir-se aos cristãos, suas
comunidades, organizações e movimentos, com um objectivo: convidar a uma
paragem, a fim de, com verdade e abertura de coração, reflectirmos sobre a
sociedade a que pertencemos, os seus problemas e opções, o seu presente e o
seu futuro, à luz dos critérios evangélicos e da doutrina social da Igreja
católica. Com o objectivo de provocar essa reflexão partilhamos convosco os
tópicos seguintes.
2. Vemos com grande preocupação que se tenha instalado entre os nossos
concidadãos e concidadãs uma certa apatia e um aparente conformismo perante
situações de desigualdade e de exclusão social crescentes, no nosso país e
no mundo. Trata-se de realidades verdadeiramente clamorosas, mormente
quando
se tem presente que a Humanidade atingiu já níveis de produção tão
elevados,
que permitiriam assegurar a todas as famílias do mundo mínimos de
subsistência. O simples facto de tal não ser verdade - e de o não ser a uma
escala tão gigantesca - é razão bastante para não nos conformámos com o
mundo em que vivemos, com o estilo de vida que levamos, o qual permite
reproduzir esse mesmo estado de coisas.
3. É inaceitável que o progresso económico que o nosso país alcançou nos
últimos 30 anos e as ajudas comunitárias entretanto recebidas não se tenham traduzido numa redução substancial da pobreza, designadamente nas suas expressões mais severas, de falta de alimento e de habitação condigna, de dificuldades no acesso à educação e à saúde, de insuficiência de recursos bastantes para garantir uma vida digna, segundo os padrões correntes na nossa sociedade. Cerca de 1/5 dos nossos concidadãos conhecem a pobreza com maior ou menor severidade, e uma parte deles nunca teve situação diferente, porque a pobreza se tornou hereditária e esteve sempre presente nas suas vidas.
4. É preocupante que o desemprego tenha aumentado consideravelmente nos
últimos anos e afecte, hoje, mais de 400 mil pessoas, das quais boa parte
sem quaisquer perspectivas realistas de vir a encontrar um novo emprego, a
curto ou médio prazo.
5. Para as pessoas empregadas, a duração e as exigências do trabalho
intensificaram-se e absorvem hoje uma parcela cada vez maior do tempo
pessoal, gerando situações stressantes e efeitos colaterais sérios na vida
familiar, no relacionamento humano e na saúde das próprias pessoas. O
recurso sistemático ao trabalho extraordinário, muitas vezes com
desrespeito
das normas legais vigentes e dos preceitos internacionais, é uma prática
com
que a sociedade e os governos não deveriam pactuar, nem sequer por omissão,
designadamente em tempo de desemprego avultado, como presentemente sucede.
6. É intolerável que os níveis de remuneração média dos trabalhadores e o
salário mínimo permaneçam consideravelmente abaixo dos valores médios que
se
verificam nos outros países da União Europeia, em contraste com
remunerações
escandalosamente altas de gestores e de outros profissionais, como ainda
recentemente foi noticiado pela imprensa.
Mais grave ainda é o facto de que os níveis de salário mínimo e pensão
mínima sejam fixados em valores que, reconhecidamente, ficam, no caso do
primeiro, muito próximo do limiar de pobreza e, no caso da segunda, abaixo
desse limiar. Ou seja, são estabelecidos com a certeza antecipada de que as
pessoas que os têm como única fonte de rendimento não poderão assegurar uma
subsistência digna. Idêntico raciocínio se poderá fazer quanto ao
rendimento
mínimo. Em situação particularmente gravosa ficam as pessoas naquelas
condições que têm de fazer face a despesas com saúde avultadas, em virtude
de padecerem de doença crónica, serem portadoras de deficiência ou
simplesmente em razão da sua idade, já que as comparticipações dos fundos
públicos vêm sendo progressivamente reduzidas.
7. Por outro lado, os padrões de qualidade dos serviços públicos de
educação, de saúde e, de modo geral, dos demais bens públicos, longe de
revelarem desejáveis melhorias, parecem regredir, provocando efeitos
particularmente negativos para as pessoas de menores rendimentos. O
argumento da falta de recursos do Estado não deve ser aceite acriticamente,
antes deverá levar a que se questione as prioridades que estão subjacentes
nos critérios dos decisores políticos. Merecem particular reparo os
investimentos públicos que têm sido feitos em obras faraónicas e projectos
de utilidade social duvidosa, beneficiando apenas determinados sectores da
população.
8. O processo de privatização em curso, nomeadamente no que toca a bens
públicos básicos, designadamente a água, os correios ou os transportes
urbanos, para não falar da saúde e da educação, poderão configurar cenários
de maior desigualdade e cavar o fosso entre ricos e pobres, acabando por
mercantilizar direitos humanos e sociais básicos.
9. E que pensar do que está a ocorrer com o parque habitacional que
aumentou consideravelmente em número de fogos disponíveis e qualidade da
construção, mas não está ao alcance de uma parte significativa da
população,
que continua, designadamente nas grandes cidades, em situação de habitação
precária, quando não atirada para bairros periféricos de habitat degradado?
Sabe-se que é elevado o número de casas desocupadas, que funcionam para os
seus proprietários apenas como capital expectante, sem qualquer uso social.
Há indícios de que a compra de casas luxuosas em alguns casos está
associada
à lavagem de dinheiro e à corrupção. Por outro lado, é manifesto o défice
de
habitação social e as dificuldades com que deparam as pessoas de baixos
recursos para terem acesso a uma casa condigna compatível com as suas
posses. Estas realidades impõem-se à nossa reflexão.
10. Muitos milhares de imigrantes têm procurado no nosso país condições de
trabalho e de vida que, por variadas razões, não conseguem lograr nos seus
países de origem. Sem o seu contributo, Portugal não teria conhecido os
níveis de crescimento económico que alcançou no passado recente. Contudo,
muitas vezes, esses trabalhadores estrangeiros não são respeitados na sua
dignidade e nos seus direitos; não encontram condições mínimas de
habitação;
e deparam mesmo com algumas resistências na sua integração nas nossas
comunidades.
11. Em todos os quadrantes políticos, reconhece-se que os investimentos em
educação e em saúde e de modo geral nos vários domínios da qualidade de
vida
são de primordial importância para o nosso país, pela dupla razão de que
vêm
ao encontro de um direito de cidadania e deste modo reforçam a coesão
social
e porque vêm preencher um requisito básico do desenvolvimento da qualidade
dos recursos humanos, condição indispensável à viabilização de uma
sociedade
de informação e do conhecimento de que tanto se espera. Não é, pois,
aceitável que, nestas áreas fundamentais, não estejam asseguradas condições
de igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso, correndo riscos de
desigualdades e exclusões agravadas no futuro.
12. Se alargarmos o nosso horizonte de reflexão a outros espaços
geográficos, como é cada vez mais imperioso fazer por razões éticas e por
vivermos em tempo de mundialização, não podemos ignorar a extensão e a
intensidade dramáticas da pobreza que grassa em vastas regiões de outros
continentes, com destaque para a África, a Ásia, a América Central e alguns
países do continente latino-americano. À pobreza extrema de uma grande
parte
da população que vive nessas regiões, acrescem doenças evitáveis, o
analfabetismo, a corrupção dos dirigentes e as guerras. São disfunções em
grande parte produzidas pelo modelo económico vigente e a hegemonia das
grandes potências no domínio das relações comerciais - sistemas
proteccionistas nos países do Centro, imposição de preços baixos às
matérias-primas oriundas dos países em desenvolvimento, apertadas regras de
dependência tecnológica e assistência técnica, regime de patentes, asfixia
financeira devida a encargos com a dívida externa.
Como encaramos estes problemas? Reconhecemos aí a nossa quota parte de
responsabilidade? Pelas nossas posturas ideológicas e políticas? Pelas
nossas actuações, enquanto investigadores, técnicos ou parceiros
comerciais,
com impacto nas relações com esses países? Pelo nosso não envolvimento ou
desinteresse em organizações da sociedade civil mais atentas a estas
problemáticas? Pelas nossas atitudes e comportamentos quotidianos, de um
consumo irresponsável, de esbanjamento de recursos, de falta de
solidariedade no plano mundial?
LER A REALIDADE SEGUNDO O OLHAR DE JESUS
13. Se fazemos este elenco de situações que tanto nos magoam - ou deviam
magoar - não é para as colocar, uma vez mais, diante dos nossos olhos, como
se de um ecrã de cinema se tratasse, como se fosse uma mera imagem exterior
que não dissesse respeito aos nossos horizontes de preocupação, excepto
quando nos toca sermos nós próprios/as as vítimas.
Fazemo-lo por três razões.
14. Em primeiro lugar, porque reconhecemos que existe na população
portuguesa uma fraca sensibilização à pobreza e à desigualdade, não as
considerando como males sociais, isto é, produzidos pela própria sociedade
e
prejudiciais para a mesma. Tanto a grande desigualdade como a pobreza e a
exclusão social são realidades ainda toleradas por parte de muitos dos
nossos concidadãos e concidadãs; diríamos que, para muitos, são fenómenos
aceites com demasiada complacência e resignação, no pressuposto da sua
inevitabilidade, uma espécie de marca do destino, quando não a consequência
de alguma culpabilidade dos próprios pobres.
Há países europeus em que o grau de aversão e recusa da grande desigualdade
e da pobreza e exclusão social é bem superior ao nosso. Já faz parte da
consciência dos cidadãos desses países a certeza de que a exclusão social e
em menor escala a grande desigualdade de riqueza, rendimento ou de
oportunidades, além de serem condenáveis por razões éticas e/ou cívicas,
constituem factores que põem em risco a própria democracia, a coesão social
e a paz.
Nestes países, os cidadãos estão dispostos a pagar mais impostos e outras
contribuições para prevenir ou corrigir a exclusão e em geral para
viabilizar o cumprimento dos direitos de cidadania. São países em que os
leques salariais e de remunerações têm menor amplitude e aceitam-se
políticas redistributivas mais claras e eficientes.
Sentimos que, também entre nós, é necessário fomentar uma consciência mais
esclarecida a este respeito. Cremos que é tempo de insistir junto dos
nossos
concidadãos e dos cristãos em particular sobre a necessidade de um outro
modo de olhar as situações de empobrecimento nas suas múltiplas vertentes e
da grande desigualdade que se instalou nas nossas sociedades, de
compreender
os mecanismos económicos, financeiros e políticos, que as produzem e
alimentam, de tomar consciência de como tais situações comprometem a coesão
social e constituem uma ameaça à paz.
15. A segunda razão que nos move a incentivar esta reflexão é o facto de
constatarmos que em certos meios políticos e na comunicação social,
frequentemente se veiculam ideias preconceituosas relativamente aos modelos
económicos vigentes, designadamente no que se refere à sua inevitabilidade,
e suporte teórico, daí retirando legitimação para certas políticas e
práticas de gestão. Por exemplo, é frequente o argumento da necessidade de
controlo orçamental (o que, em si mesmo, ninguém contesta) para justificar
medidas de restrição da despesa pública, o que já não pode ser aceite sem
ponderação dos seus efeitos sobre a extensão e a qualidade dos serviços
públicos prestados (educação, saúde, investigação, habitação social, acção
social, etc.) ou as reduções drásticas de remunerações e regalias dos
funcionários públicos sem negociação com os interessados e sem
contrapartidas. De resto, a despesa é apenas um dos factores de
ajustamento;
este consegue-se também através da recuperação de receitas fiscais devidas,
através de medidas eficazes de combate à fraude e à evasão fiscais e, em
geral, com o aperfeiçoamento de uma política tributária mais equitativa e
eficiente.
No que se refere às empresas, preocupa-nos que, com frequência, fiquem por
sancionar práticas de gestão danosa, por vezes, a par de elevados proveitos
dos seus gestores, e, em particular, o encerramento das mesmas, à revelia
da
participação dos respectivos trabalhadores que são atirados para
despedimentos colectivos, os quais tantas vezes põem em risco as economias
locais dependentes da empresa que encerra a sua actividade somente para ir
procurar em outras paragens lucros mais vultuosos.
16. A terceira razão que nos move nesta reflexão é o reconhecimento de que
os cristãos pouco confrontam as suas atitudes e comportamentos na sociedade
(trabalho, negócios, ensino e investigação, participação cívica e política)
com as exigências que decorrem da sua fé em Jesus Cristo. Sucede, assim,
que
os valores humanos e cristãos interferem pouco ou nada nas suas respectivas
práticas de vida. Ora, há cristãos em todos os sectores da vida económica,
social e política - gestores e quadros técnicos de empresa, banqueiros,
educadores e professores, políticos, deputados, governantes, juízes,
detentores de cargos públicos - sem que se observem sinais que testemunhem
as suas referências cristãs.
Por outro lado, temos de reconhecer que, em muitas das nossas comunidades e
assembleias, paira uma muralha de silêncio sobre estas problemáticas e são
muito ténues as interpelações dirigidas ao compromisso dos cristãos com os
valores evangélicos quando está em causa a sua aplicação na transformação
das sociedades a que pertencem, em ordem à construção da justiça e da paz.
17. Em que pensaria Jesus quando, dirigindo-se aos seus discípulos, lhes
dizia: vós sois a luz do mundo, vós sois o sal da terra, vós sois o
fermento
que uma mulher junta à massa para a levedar?
Que nos quer dizer a nós, mulheres e homens do começo deste século XXI, a
nós que vivemos em Portugal, um país membro da União Europeia, uma das
grandes potências económicas do Mundo?
Certamente quer encorajar-nos a não nos deixarmos conformar com as
situações
de injustiça e com os mecanismos que lhes estão subjacentes, que
contradizem
os critérios e valores do Evangelho e o paradigma do reino de Deus que a
todos nós cristãos cabe anunciar.
18. Ser "luz", "sal" ou "fermento" hoje é estar na primeira linha de quem
defende e promove direitos fundamentais:
§ a dignidade e o valor de toda a pessoa humana, de cada mulher e
de
cada homem, da criança, do jovem, do adulto ou da pessoa idosa;
§ o direito de cada pessoa encontrar na sociedade a que pertence
condições para uma vida digna, nomeadamente o direito ao trabalho com
garantias e sua justa remuneração, mas também o acesso a uma habitação
condigna, à saúde, à educação, à segurança;
§ o direito à liberdade de palavra e de expressão, de deslocação,
de
associação e de participação cívica e política, tanto no próprio país como
à
escala mundial.
Ser "luz", "sal" ou "fermento" hoje é, para além disto, escolher estar do
lado dos empobrecidos e dos mais fracos (opção preferencial pelos pobres,
como lembra o Concílio Vaticano II), compartilhar as suas dificuldades e ir
em sua ajuda, empenhando-se em remover as causas estruturais da pobreza nas
suas múltiplas vertentes.
Ser "luz", "sal" ou "fermento" hoje é defender o princípio fundamental do
destino universal dos bens da terra e consequentemente procurar com todo o
empenho que aqueles se destinem prioritariamente à subsistência e melhoria
de condições de vida para todos e não em benefício exclusivo de alguns.
Ser "luz", "sal" ou "fermento" hoje é reconhecer que a propriedade privada
ou a livre concorrência não são valores absolutos, mas antes instrumentos
ao
serviço da produção e da eficiência da economia.
Ser "luz", "sal" ou "fermento" hoje é não pactuar com estruturas injustas,
denunciando-as e promovendo as soluções alternativas e inovadoras que
estiverem ao seu alcance; ou refutando os argumentos da inevitabilidade de
certas práticas, contrapondo-lhes soluções paradigmáticas de maior justiça
na organização da economia e da sociedade, nas empresas como na
administração pública e adoptando atitudes e comportamentos pessoais de
consumo, de produção, de troca, de gestão que sejam coerentes com os
valores
evangélicos.
Ser "luz", "sal" ou "fermento" hoje é ser capaz de enquadrar os critérios
mundanos da competitividade, da eficácia e da eficiência pelo referencial
primeiro do Amor, o sinal pelo qual serão reconhecidos os discípulos de
Cristo.
19. Estamos conscientes de que o "outro olhar" a que fazemos apelo não é
alcançável sem uma reflexão séria e profunda, em clima interior de abertura
ao Espírito de Jesus Cristo morto e ressuscitado. Sugerimos, por isso, que
esta temática, cuja importância para o modo de ser cristão hoje, esteja
presente, quer na oração pessoal de cada cristão, quer em iniciativas
comunitárias neste tempo privilegiado da Quaresma. Cada cristão e cada
comunidade saberá escolher as formas concretas que melhor se adequarem a
cada caso.
20. É certo que, ao contrário daquilo que muitas vezes aceitamos com fácil
comodismo, podemos sempre fazer algo para mudar este estado de coisas.
Bastaria que, numa sociedade em que a maioria das pessoas se reconhece como
cristã, vivêssemos mais de acordo com os critérios Evangélicos para que os
problemas colectivos que enfrentamos encontrassem resposta. Se o nosso
coração se alegrasse mais e desse mais valor aquela pessoa que conseguiu
romper com a sua situação de pobreza e exclusão do que à ostentação do
sucesso daquele que já muito tem, fomentaríamos um "outro olhar", outros
valores e outras atitudes na nossa sociedade. A Esperança no Cristo
ressuscitado do Domingo de Páscoa desafia constantemente as nossas certezas condescendentes sobre um "mundo-que-não-podemos-mudar".
Quaresma de 2004