Continuando o meu artigo anterior, nada melhor do que alguns excertos da
audição de Rocco Buttiglione na comissão das liberdades civis do Parlamento
Europeu. A que acrescentarei apenas breves notas minhas.
1. Deputada Buitenweg (Verde, Holandesa). "Senhor Buttiglione: Algumas das
suas opiniões estão em directa contradição com a lei europeia. Por exemplo:
a discriminação com base na orientação sexual é interdita e o Senhor disse
que a homossexualidade é um pecado e é sinal de desordem moral. Gostaria de
saber directamente de si, agora, como é que nós poderemos esperar que o
Senhor combata por esse direito e se poderia dar-nos um exemplo de como
espera alcançar o seu objectivo."
Resposta de Buttiglione. "Posso recordar um filósofo, já antigo, mas talvez
não completamente esquecido, de Könisberg - um tal Emmanuel Kant -, que fez
uma clara distinção entre moralidade e direito. Muitas coisas, que podem
ser consideradas imorais, não devem ser proibidas. Quando fazemos política,
não renunciamos ao direito de ter convicções e eu posso pensar que a
homossexualidade é um pecado e isso não ter efeito na política, o que só
sucederia se eu dissesse que a homossexualidade é um crime. Da mesma
maneira, a Senhora é livre de pensar que eu sou um pecador em muitas coisas
da vida, e isso não tem nenhum efeito nas nossas relações como cidadãos.
"Direi por isso que considero uma abordagem inadequada do problema
pretender que toda a gente concorde em questões de moralidade.
"Nós podemos construir uma comunidade de cidadãos mesmo que em algumas
questões de moralidade tenhamos opiniões diferentes. A questão é, isso sim,
da não discriminação. O Estado não tem o direito de meter o nariz nessas
questões de moralidade e ninguém pode ser discriminado com base na sua
orientação sexual ou qualquer orientação de género. É isto o que está na
Carta dos Direitos Fundamentais, na Constituição, e eu tenho defendido esta
Constituição."
2. Deputado Cashman (socialista, Inglês): "não creio que o devamos julgar
pelas suas palavras, mas antes pelas suas acções. Disse-nos hoje que o
Estado não tem o direito de se envolver nas questões que têm a ver com a
orientação sexual. Como explica então que tenha apresentado, na Convenção
para o Futuro da Europa, uma proposta que visava eliminar da Constituição a
referência à orientação sexual no combate às discriminações?"
Resposta de Buttiglione: "Quando definimos o princípio da não
discriminação, pretendíamos que ele fosse aplicado não apenas a um número
limitado de casos que estavam enumerados. O princípio é universal,
expansivo. Deve ser aplicado em muitas e variadas áreas e não creio que
constituísse um reforço para a sua aplicação referir em especial o caso dos
homossexuais. Mas, em qualquer circunstância, esse debate está encerrado.
Não tenho dúvidas de que se o Senhor Deputado Cashman a tivesse escrito
sozinho, teríamos uma Constituição ou uma Carta dos Direitos Fundamentais
diferente. E se fosse eu a fazê-lo, teríamos também uma Carta e uma
Constituição diferentes. Mas esta é a Constituição que escrevemos em
conjunto e esta é a Constituição que nos liga, sob a qual estou disposto a
viver e esta é a Carta dos Direitos que eu quero defender."
3. Mais alguns exemplos do tipo de inquirição-insinuação que alguns
deputados fizeram a Buttiglione.
Deputado Alvaro: "...como é que as suas estreitas relações com os Estados
Unidos e o Vaticano vão afectar as suas decisões?" Buttiglione respondeu:
"Eu sou amigo dos Estados Unidos, mas não sou americano. Tenho divergências
com os americanos como todos os europeus têm tido. Acredito que a Europa
tem de viver numa comunidade transatlântica com dois pilares, sendo a
Europa um deles. Temos de estar preparados para trabalhar com os
americanos, como parceiros iguais, sobre o futuro do mundo, com
responsabilidades conjuntas pelo futuro da humanidade. ...não é segredo que
eu sou católico, mas isso não tem a ver com o Vaticano mas com a minha fé,
com as minhas pessoais convicções; e penso que se pode ser um bom católico
e um bom europeu ao mesmo tempo ... como Adenauer, De Gasperi, Schuman ou
Helmut Kohl."
E ao deputado In't Veld, reafirmou: "sou contra a discriminação. Penso que
todas as pessoas devem ter os mesmos direitos, homossexuais, heterossexuais
ou o que forem. Estou comprometido a defender os direitos de todos os
cidadãos europeus, incluindo o direito de não discriminação. O Senhor quer
que eu seja pro-activo, mas eu não sei o que entende por isso. Penso que os
direitos dos homossexuais devem ser defendidos na mesma base dos demais
cidadãos europeus. Se houver específicos problemas para os homossexuais,
estou pronto a considerá-los. Se por exemplo me disser que há uma especial
violência contra os homossexuais, então eu estou pronto a considerar a
hipótese de legislação específica em ordem a protegê-los dessa violência e
a dar melhores garantias do direito à igualdade".
Já depois do tempo da audição, a uma insinuação de Cashman, Buttiglione
teve de responder: "Tenho de negar, enfaticamente. Já disse claramente que
esta é a Carta dos Direitos Fundamentais que fizemos conjuntamente, que eu
defendo e que eu estou determinado a defender. No que respeita às razões
pelas quais eu fiz propostas de alteração, já expliquei essas razões. O
Senhor pode estar, ou não, de acordo com as minhas razões, mas penso que a
minha resposta foi clara".
4. No Parlamento Europeu, não havia memória de que as opiniões pessoais dos
seus membros pudessem ser um obstáculo para alcançar postos de relevo. Há
bem pouco tempo, deu-se o caso do socialista espanhol Borrell, que, tendo
declarado que "as práticas sexuais dos católicos lhe pareciam aberrantes",
opinião assaz grosseira e intolerável, nem por isso foi vetado por qualquer
voz ou qualquer partido na sua candidatura à presidência do Parlamento.
O conhecido "Wall Street Journal" classificou a oposição do Parlamento
Europeu a Buttiglione como "a Inquisição Laica da Europa". Este veto violou
a não discriminação política por razões de ideologia, consciência e
crenças, que está garantida na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. É
por isso que o caso Buttiglione é um sério "case study".
5. Mais ou menos ao mesmo tempo que sucede isto em Bruxelas, com o sentido
ideológico que tem, aconteceu em Roma a Conferência Mundial das Mulheres
Parlamentares para a protecção das crianças e dos jovens, com representação
de mais de cem países, incluindo Portugal. Aí foi aprovada por unanimidade
esta conclusão: "definir e defender uma visão da família como unidade
fundamental para o desenvolvimento equilibrado dos filhos". Está aqui a
básica ideia de que é a geração dos filhos e o desenvolvimento equilibrado
das crianças e jovens que pede uma política pública de definição e de
defesa da família.
ADENDA: Creio que há que ponderar acerca do voto que merece a ratificação
do Tratado que aprova a Constituição Europeia. Não tanto por motivos de
arquitectura política e perda de soberania. Mas sobretudo por este
autoritarismo cultural-pós-modernista que tem penetrado em várias decisões
do Parlamento Europeu (este não é o primeiro episódio). Pelo crescendo de
clara inimizade contra o cristianismo e as religiões (visível em certas
potências dominantes). Pela Carta dos Direitos Fundamentais, que é sonsa e
cheia de viezes ideológicos. Já votei muitas vezes pelo mal menor. Desta
vez, o mal maior nem o consigo ver. A Europa precisa de deter esta
tendência demagógica obcecada pela simples fractura de todos os padrões e
referências, que é verdadeiramente suicida. Professor universitário
Dada a importância deste caso que já parece ter caído no esquecimento
nacional, junto, para quem não leu, o primeiro artigo, publicado no dia 8
de Novembro
O "Case Study" Buttiglione (1)
Por MÁRIO PINTO
Segunda-feira, 08 de Novembro de 2004
Não é para mim uma questão muito importante que A ou B, por serem
católicos, sejam ou não comissários na União Europeia. Devo dizer com toda
a franqueza que, ao longo da minha vida, já tenho tido grandes desgostos
com políticos católicos e justas alegrias com políticos não católicos.
Porém, o caso Buttiglione não foi apenas um caso político parlamentar, como
alguns querem fazer passar. Porque esteve irrecusavelmente em causa saber
se um "católico conservador e amigo do Papa" (por sinal Papa já distinguido
pela defesa dos direitos humanos) é digno de confiança para comissário
encarregado da defesa dos direitos fundamentais e do princípio da não
discriminação, independentemente das suas declarações em comissões
parlamentares e do seu programa político.
De nada serviu que Buttiglione, acusado de ter dito que a homossexualidade
é um pecado, tivesse respondido que uma coisa é a moral, outra coisa a
legalidade; e que dizer que a homossexualidade é (moralmente) pecado não
significa dizer que seja (juridicamente) ilícito. De nada serviu declarar
que defende o princípio da não discriminação. De nada serviu explicar que o
seu conceito de casamento não afecta o exercício das suas funções. De nada
serviu que tivesse afirmado expressamente que sempre tem defendido a
Constituição europeia, que a considerava apoiada nos direitos humanos de
acordo com uma evolução que vinha já da filosofia grega, passando pelo
cristianismo e pelo iluminismo até ao ponto actual. E que estava por isso
disposto a cumprir e fazer cumprir essa Constituição. Nada! Eu tive o
escrúpulo de ler na íntegra as actas das comissões, que quem quiser pode
obter com facilidade.
2. Bem sei que pessoas ilustres, por quem tenho consideração, vieram entre
nós declarar em público que este episódio devia resumir-se a um acto
parlamentar de confiança política - portanto, questão de maioria
parlamentar, questão política. E que outros acharam que Buttiglione poderia
ter omitido as formulações correspondentes às suas convicções pessoais -
portanto, questão de fórmulas.
Respondo que estes argumentos não convencem. Pois se as convicções pessoais
expressas e as formulações utilizadas foram decisivas para a decisão da
Comissão, como é que agora nós as poderemos deixar de lado para apreciarmos
a decisão da Comissão? Buttiglione foi directamente interrogado acerca das
suas opiniões sobre o casamento e sobre o princípio da não discriminação. E
ainda sobre declarações suas anteriores. Ele respondeu (e aliás com
superior qualidade, em minha opinião) a tudo o que lhe perguntaram, e não
acrescentou nada para além do que lhe perguntaram. Com base no que
respondeu, nunca poderia ser considerado indigno de confiança.
3. Em vez de as análises dos debates se aterem aos textos oficiais das
comissões, fez-se correr uma campanha orquestrada internacionalmente. Na
Internet, o conhecido motor de busca que usei, o Google, deu-me há dias
95.800 "sites" para Rocco Buttiglione. Abri-os até 170. Desisti. Eram
esmagadoramente uma acusação insultuosa contra o famigerado comissário
"católico conservador e amigo do Papa". Hoje, quarta-feira, o número de
"sites" do Google já é de 130.000. E aparecem muitas opiniões indignadas
pela exclusão de Buttiglione. Mas agora... Inês é morta!
Até o prof. Prado Coelho, por quem tenho estima e apreço, embora com
grandes divergências, tratou assim o prof. Buttiglione na sua coluna no
PÚBLICO: "Sabem certamente quem é Buttiglione? Trata-se de uma curiosa
personagem, ao que parece muito próxima do Vaticano. E ao mesmo tempo de um
professor universitário." Para quem é doutor nas ciências da linguagem,
excelente escritor e crítico literário, vê-se logo que Prado Coelho
desenhou assim uma imagem caricatural e quase ridícula de Buttiglione. Com
efeito, é injusto apoucá-lo como uma "curiosa personagem". Ser "amigo do
Papa" é irrelevante para o caso. E dizer que é... "ao mesmo tempo
professor"... é um tanto malicioso e presta-se a muitas ambiguidades.
Buttiglione é um professor digno, culto e poliglota excepcional. Exprime-se
com notável qualidade de saber e de elegância. Mostrou excelente
conhecimento dos "dossiers" e das questões europeias. Pede meças aos nossos
deputados. Respondeu directa e imediatamente aos que o interrogaram falando
em várias línguas, conforme a sua nacionalidade: italiano, francês, inglês
e alemão. Exprimir-se assim numa ocasião de interrogatório difícil, e não
em conversa informal, é digno de nota. Não foi essa capacidade posta a
crédito do comissário Vitorino? E de Barroso? Então por que é regateada a
Buttiglione?
4. O escândalo contra Buttiglione é feito de ignorância e facciosismo. Ele
mostrou que sabe muito bem separar as suas convicções pessoais da autonomia
e legitimidade da esfera pública. Quando Buttiglione explicou que a palavra
latina matrimónio tem na origem um sentido de protecção da maternidade,
"matrimonium", isso é verdade e só o não sabe quem é ignorante. Ele (e eu
também) pensa que esse sentido é essencial (embora não exclusivo) e deve
ainda hoje valer, no novo contexto da cultura e da civilização actuais.
Porque um simples contrato de vida em comum entre duas pessoas homossexuais
é outra coisa que não matrimónio, porque não tem a função natural de gerar
e criar filhos. Esse contrato pode merecer protecção em nome da liberdade e
legítimos interesses reconhecidos às partes; mas não tem a mesma natureza e
relevância de interesse público, porque não tem exactamente os mesmos fins
- faltam-lhe os fins naturais da procriação. O que sobretudo dá importância
maior à instituição do casamento heterossexual e monogâmico, e exige
estabilidade e exclusividade, é a geração e a criação dos filhos - embora
esta não seja a única finalidade do matrimónio. Ao longo dos séculos, a
sociedade sempre esteve altamente preocupada com a protecção da maternidade
e da criação das crianças: esse interesse é comum de toda a sociedade e tem
carácter público; não é apenas interesse das partes casadas. Mais: são
impostos aos cônjuges (sujeitos do mesmo jugo) direitos e deveres
fundamentais em nome dos nascituros e crianças, e servindo o interesse da
sociedade pela reprodução e criação de novos seres humanos, interesse que
vai muito para além do que seria necessário se as partes fossem apenas
sócios de uma sociedade de vida comum e relação sexual recíproca, sem
função reprodutiva. Se a sociedade se organizasse agora na base do
casamento homossexual, só duraria a presente geração. Isso não é evidente?
E se se organizar na base duma plena igualdade de casamentos, quando só os
heterossexuais podem gerar, há uma evidente assimetria igualando coisas com
fins desiguais - e não basta que os homossexuais queiram adoptar crianças,
porque se querem adoptar crianças estas só podem ser os filhos dos
heterossexuais. Isto pelo menos enquanto se não separar a geração da
relação heterossexual. Se um dia a geração vier a ser questão de
laboratório, então a coisa muda, e será seguramente dramático. Entretanto,
como Buttiglione bem frisou, a definição do que é casamento é da
competência dos Estados nacionais, e não da União Europeia; e em 22 dos 25
Estados membros só o casamento heterossexual é reconhecido.
Outro dia vi na televisão uma notável reportagem de uma gentil senhora
americana, bonita, saudável e muito harmoniosa de corpo (qualidades que a
reportagem expressamente enunciou), que vendia por alto preço os seus
óvulos para reprodução de filhos comprados por outros casais. Pagavam-lhe
muito caro - dizia ela. E parecia muito contente da vida. Não foi porém
muito esclarecedora, e até se lhe toldou o semblante visivelmente, quando
lhe perguntaram se nunca pensava na quantidade de bebés que eram seus
filhos biológicos e que ela não conhecia. Chegada aqui, faltou-lhe a
alegria com que até ali tinha falado.
5. Já vou longo e não esgotei o assunto. Prometo continuar, até porque não
acabei a resposta para que o prof. Prado Coelho me desafiou.
Professor da Universidade Católica