Haverá saída?
Miguel Sousa Tavares
Várias vezes me tenho colocado esta pergunta, mas nunca tantas vezes como
agora: será Portugal viável? Haverá ainda, na consciência da maioria dos
portugueses, a noção de que um país se constrói com o esforço, a
iniciativa, o trabalho e, se necessário, o sacrifício de todos, na medida
das respectivas responsabilidades? De que um país não pode depender apenas
ou principalmente do Estado, do Governo, das iniciativas e dos dinheiros
públicos? Que a cidadania não é só direitos adquiridos e benesses
garantidas eternamente, sem relação com a produtividade, o crescimento, a
competitividade, a qualidade daquilo que se faz e se produz?
Tenho as maiores dúvidas. Como todos, oiço os portugueses a falar, todo o
tipo de portugueses, e constato que a esmagadora maioria não vai, nem quer
ir, além do inverso da célebre frase de Kennedy: limitam-se a perguntar o
que pode o país fazer por eles. Ouvindo-os, eles têm sempre razões de
queixa e matéria para reivindicarem do Estado e do Governo, seja ele qual
for, que episodicamente o represente. Mesmo aqueles que tinham mais
obrigação de estarem informados e reflectirem sobre a informação de que
dispõem reagem às más notícias como se elas fossem matéria abstracta,
insusceptível de descer ao concreto e poder afectá-los. Lêem que o Estado
português vive há vários anos acima das suas disponibilidades, gastando
mais do que tem e endividando-se para as gerações futuras, mas, ao mesmo
tempo que reconhecem que isso não pode continuar, recusam qualquer medida
de contenção de gastos públicos que mexa com os seus "direitos adquiridos".
Lêem (e sabem que é incontroverso) que as pessoas se reformam cada vez mais
cedo e vivem até mais tarde, consumindo simultaneamente maiores cuidados de
saúde, o que torna financeiramente insustentável o actual sistema de
pensões e reformas, mas, quando se pretende reformar o seu estatuto
particular, aqui d"El rei, que "descontei toda a vida para a Segurança
Social e não me podem agora mexer nas minhas expectativas!". Lêem que os
portugueses têm o maior índice europeu de consumo de medicamentos, mas
acham um roubo que o Governo diminua a sua comparticipação nos
medicamentos, que, além do mais, constitui uma forma de assegurar um
negócio florescente e de risco garantido a laboratórios e farmácias. Lêem
que os professores trabalham poucas horas em comparação com os seus colegas
europeus, ganhando proporcionalmente mais e reformando-se mais cedo, ao
mesmo tempo que a Educação consome recursos desproporcionados e com
resultados menos que medíocres. Mas, qualquer tentativa de mexer no que
está, dá logo direito a uma greve aos exames nacionais - com a compreensão,
aliás, de um juiz de Ponta Delgada, que deve achar que, de "irremediável"
só existe a morte, e, portanto, qualquer prejuízo desproporcionado que uma
greve possa causar, mesmo a centenas de milhares de alunos, nunca será
suficiente para pôr em causa o direito à greve, sem serviços mínimos.
Aliás, eles próprios, juízes, também sabem, e sabem que nós sabemos, que a
justiça é talvez a coisa que pior funciona em Portugal, mais lenta, mais
ineficaz, mais cara e mais afastada das necessidades dos cidadãos. Mas
aquilo com que unicamente os ouvimos preocuparem-se é com o seu estatuto,
as suas férias, a manutenção do seu regime de total desresponsabilização
profissional.
A desresponsabilização é, de facto, a grande reivindicação de quem se
habituou a trabalhar para o Estado ou a depender do Estado. Somos um país
onde muito pouca gente está disposta a abrir caminho por si, a assumir
responsabilidades e correr riscos, sem a cobertura do emprego público, do
favor público ou do dinheiro público. Ainda esta semana, Jorge Sampaio
chamava a atenção para a inexistência de financiamento ao capital de risco
por parte da banca, em comparação com a facilidade do financiamento ao
consumo, de risco praticamente nulo. Em Portugal, 63 por cento do capital
de risco é assumido pelo sector público; em Espanha é 9 por cento, o resto
é privado. A diferença é eloquente e explica muita coisa: em Portugal, a
formação de cartógrafos e navegadores, a construção dos navios, o pagamento
das tripulações, todo o financiamento das Descobertas e a comercialização
dos produtos foram de iniciativa pública; em Espanha, foram empresários
privados de Sevilha que ajudaram a financiar a primeira viagem de Colombo,
início da expansão ultramarina de Castela. Talvez tenha começado aí a
história da nossa progressiva demissão cívica, agravada, nos tempos
recentes, por três momentos decisivos: o salazarismo, o gonçalvismo e os
dinheiros europeus. O primeiro propôs-nos o Estado protector, inflexível na
defesa do nosso bem e em tornar-nos imunes às tentações libertárias vindas
de fora; o segundo propôs-nos o Estado suficiente, motor da história,
infinitamente justo e generoso, distribuindo a cada um em função das suas
necessidades e a ninguém em função do seu mérito; o terceiro propôs-nos o
Estado oportunidade, aberto a todos os espertos que quisessem fazer fortuna
rapidamente ou ganhar dinheiro fácil, bastando estender a mão e declarar-se
qualquer coisa: agricultor, empresário, formador, inovador, isolado no
interior ou ilhas, enfim, representante adequado dessa coisa enxovalhante a
que chamam "a especificidade portuguesa" - o direito de esmolar eternamente
à conta de sermos piores, mais atrasados e mais incompetentes do que os
outros.
Há cada vez mais gente que, olhando para o diagnóstico frio daquilo que
somos e do que valemos, vai insinuando a ideia de que o menos mau seria
sermos absorvidos pela Espanha. Nem adianta entrar em questões de
patriotismo para concluir que eles estão errados na sua última esperança:
seguramente que a Espanha não nos quereria para sermos em relação a ela o
que a Madeira autónoma é em relação a nós. A Espanha quer é que nós
continuemos a ser o que somos, como vizinho: um mercado escancarado e sem
competitividade para enfrentar a sua concorrência e uma espécie de
laboratório daquilo que deve ser evitado - como temos sido para eles, desde
1975. Agora, para nos pagar o fado ou a "especificidade", isso de certeza
que não querem. Resta-nos esperar que a União Europeia não se desagregue
nem se canse de nos aturar, porque, então sim, ficaremos face a face com
nós próprios e corremos o risco de concluir que nos tornámos um país
inviável.
Peço desculpa se isto soa a demasiado pessimismo negativista. Mas, nestes
dias em que todos só falam dos seus interesses e só olham para o seu
próprio umbigo, onde estão os sinais de esperança? Jornalista
Sent by: Ana Collaço