Para os que não sabem, o Miguel Esteves Cardoso (MEC) teve em tempos um
site conhecido como o pastilhas. Basicamente consistia numa série de
crónicas, cursiosidades, sites interessantes etc, etc, que o MEC ia
colocando sobre a forma de ansióliticos, anti-depressivos, etc, etc. O site
tinha muitos seguidores - designados por "doentes" - e a"febre" era tal
ordem que chegaram a organizar diversos encontros. Basicamente era uma
comunidade virtual, como tantas outras que há por aí.
Uma vez, por altura do dia 1 de Abril, O MEC colocou uma mentira tão
credível, que muitos cairam como "patinhos". A graçola fez com que ele
ficasse com problemas de consciência e, para se redimir, escreveu a crónica
que se segue.
No meu entender, o MEC acertou, mais uma vez, em cheio... Ora leiam:
O mal da mentira
A experiência do Dia das Mentiras ensinou-me uma coisa fundamental. Muitos
doentes, todos com um invejável desportivismo, confessaram terem caído como
patinhos.
Mas caíram? Não me parece. Aquilo que aconteceu - e está na base de
qualquer mentira - é que confiaram em mim. Se a falsa notícia tem
aparecido, no dia 1 de Abril, noutro órgão de comunicação, teria sido logo
detectada. As mentiras são repugnantes porque queremos confiar nas pessoas
com quem sentimos afinidades. Quando um amigo ou um amante nos mente aquilo
que está a fazer é gastar aquela amizade ou aquele amor. E pior do que
isso: está a gastar um capital, feito de cumplicidades e ternuras,
acumulado com grande custo ao longo das aventuras conjuntas, que não é
dele. O capital da amizade e do amor pertence aos dois em igual medida.
Nem se pode dividir. Eu não posso gastar a "minha parte" porque não existem
partes. Metade de um ser vivo não é um ser vivo. Serrando uma pessoa ou uma
amizade ao meio produz duas coisas mortas. Quando se mente a um amigo
está-se a roubar. E quem rouba, desperdiça. Aquilo que dói numa mentira,
dito coloquialmente nas acusações inteiramente legítimas que depois se
fazem é isto:
"Foste capaz de pôr em risco a nossa amizade por uma coisa destas?"
Qualquer coisa é pequena comparada com a riqueza de um amor.
Suponhamos que uma ex-namorada me telefona. Eu atendo e mando-a pentear
macacos. Quando me encontro com a minha mulher e ela me pergunta se alguém
telefonou eu escolho mentir e oculto-lhe o telefonema. Claro que arranjo
mil desculpas para a minha mentira. Que não valeria a pena; que ela só iria
ficar chateada; que estragaria a noite; que ela provavelmente pensaria que
não foi bem como eu disse. Que não foi bem como eu disse. Aqui está a
raiz. A honestidade ou é total ou não presta. Se eu tiro um ponto aqui e
esguicho um bocadinho de lixívia ali, como posso depois queixar-me que a
pessoa a quem conto um episódio acredite que foi tal e qual assim?
Continuemos. Considero que a minha mentira foi "branca"; ou seja, que não
prejudicou ninguém. Se eu fôr particularmente estúpido ou pretensioso até
posso fingir comigo mesmo que foi "para o bem dela". Porque ela é ciumenta;
porque é nervosa e não sei mais o quê. Passadas umas semanas a minha mulher
encontra a dita ex-namorada. Esta diz-lhe: "Bem, o teu marido anda muito
mal disposto! Telefonei-lhe no outro dia para lhe perguntar uma coisa e ele
mandou-me pentear macacos! Ele anda muito em baixo; é?" Que figura faz a
minha mulher? Péssima. Não tanto por causa da figura, que pode não
interessar nada (mas, nestas coisas do amor e do passado, interessa muito),
mas por causa da surpresa. A partir desse momento, mesmo com a melhor das
intenções, está tudo estragado. Estou a falar de um caso relativamente
anódino porque a maioria das mentiras versa acontecimentos bem mais
importantes. E porque não é preciso uma mentira ser grave para se perceber
o mal que faz e o preço enorme, muitas vezes irrecuperável, que se paga. A
minha mulher chega a casa e quer saber porque lhe menti. Mas já nem vale a
pena responder. Porque ela já não acredita - e tem toda a razão em não
acreditar.
Ela pergunta: "Porque me disseste que ninguém tinha telefonado?"
Ela pergunta: "Porque é que me escondeste o telefonema dela?"
E eu estou, com muita justiça, lixado. Porque nenhuma resposta serve. Se eu
digo "Foi para não te arreliar escusadamente" estou a insultá-la. Ela é uma
pessoa; não uma flor de estufa ou uma criancinha. Ou mesmo que fosse!
É que uma pessoa que mente numa coisa não é capaz de mentir em todas - mas
é como se fosse. A partir desse momento, quando é que a minha mulher vai
confiar em mim quando digo que não telefonou ninguém? Nunca mais. Ou seja:
por causa de uma suposta "mentirinha", as ex-namoradas começam a
telefonar-me todos os dias. Sem excepção. É difícil confiar numa pessoa e
não é apenas uma questão de fé. A confiança mede-se com provas. Podem não
ser provas procuradas e propositadamente exibidas. Mas tem de haver uma
série de incidentes em que eu digo uma coisa que parece inverosímil e que
depois são confirmadas como verdadeiras para se estabelecer a confiança. O
horror da mentira é este: posso dizer a verdade absoluta 999 vezes
seguidas. Mas, quando minto à milésima, não é só aquela prova de confiança
que perco: são milhares. Mil para trás e milhares para a frente. É por isso
que mentir, para além de uma cobardia, é uma estupidez extraordinária. E
extra-ordinária. Estamos a esbanjar milhares de verdades, ditas no passado
e por dizer no futuro, por uma única mentirinha. É um péssimo negócio. Quem
sai mais enganado e mal servido é o mentiroso. Mas ambas as pessoas e, mais
triste ainda, a relação entre elas, perdem uma quantidade infinitamente
maior de qualidades, das quais a principal é a confiança, ao pé das quais
os benefícios temporários de uma mentira são irrisórios. Não: desprezíveis.
Mas há mais. Eu, quando minto, desprezo-me a mim próprio. Digo a mim mesmo
que não sou capaz de lidar com a verdade; que não tenho estofo ou
integridade para aguentar as consequências das minhas acções. Não se pode
ser "quase sempre" verdadeiro. Eu posso achar que consigo. Mas para a outra
pessoa, amiga ou amada, quem é capaz de mentir é capaz de mentir. E pronto.
E tem razão!
(A sinceridade é outra coisa, já que, em termos de opiniões sem relação com
factos e ocorrências, muitas vezes vale mais a pena ficar calado).
Mesmo ao escrever a minha falsa notícia, apesar de a ter rodeado de
pastilhas sobre o Dia das Mentiras, podem ter a certeza que me lixei um
bocadinho e que me sinto sujo por causa disso.
Mesmo mostrar a habilidade para mentir, mesmo sendo essencial num escritor
que escreve ficção, quando se faz num contexto de verdade que é a crónica,
é destruir a confiança estabelecida entre mim e os meus queridos doentes.
Isto nada tem a ver com o facto de ninguém gostar de ser enganado. Até
porque não é verdade. Há um prazer em ser enganado quando o que engana é
uma ilusão mútua, que não pode ser negada pela realidade ou posta em causa
pela experiência de terceiros. Tem a ver - cá está ela outra vez - com a
confiança. As pessoas acreditam porque confiam. E confiam porque querem
confiar. Mesmo uma brincadeira como aquela da AACS e do "Expresso" é nociva
porque parte de uma confiança estabelecida; utiliza-a e sacrifica-a; sendo
feita apenas por uma das partes, numa relação que é só uma. Que não tem
partes. Muito mais haverá a dizer sobre a mentira. Mas não posso deixar de
concluir com a verdade mais importante de todas, que vem da filosofia, do
tempo em que a filosofia era a sabedoria sobre tudo, antes de se dividir em
matemática, física, biologia e tudo o mais.
Essa verdade é que, mesmo que ninguém mentisse neste mundo e todos
confiassem uns nos outros e se amassem profundamente - mesmo assim
saberíamos muito pouco.
Num mundo onde ninguém sabe quase nada, mentir é cuspir nessa nossa
condição. A verdade - seja na forma de informação ou de revelação - tem de
ser partilhada, se não queremos morrer todos estúpidos.
Ou, pior ainda, se não queremos viver todos estupidamente.
Desculpem-me, queridos doentes, a mentira de 1 de Abril. Foi por uma boa
causa - esta crónica não poderia ser escrita sem ela - mas a verdade é que
nunca há boas causas para mentir.
Não pudessem vocês agora perguntar se eu não estarei agora a mentir outra
vez. Não estou. Mas já existe pelo menos uma prova que sou capaz de mentir.
E isso é muito mau.
Sent by: Flora Cousso