RAUL JUSTE LORES da Folha de S.Paulo
O filósofo e matemático Antanas Mockus, 55, encontrou-se esta semana com o
governador José Serra (PSDB), o prefeito Gilberto Kassab (DEM), secretários
municipais e estaduais, além de líderes de ONGs. A agenda de reuniões do
ex-prefeito (por duas vezes) de Bogotá são prova de seu prestígio.
Mockus é considerado o pai da revolução urbana que transformou aquela
cidade em exemplo de como fazer muito com pouquíssimo dinheiro.
Mesmo com um orçamento que representa um terço de São Paulo, a ainda pobre
Bogotá, 8 milhões de habitantes, apresenta inovações em transporte público,
educação no trânsito, habitação e cultura. A taxa de homicídios, que era de
80 por 100 mil habitantes em 1993, baixou para 18 no ano passado.
Em entrevista à Folha, Mockus falou que os impostos devem ser
"redistributivos" e priorizar habitação e transporte público e sugere um
"pacto de cidadania" com os motoboys.
FOLHA - O número de homicídios em São Paulo baixou quase tanto quanto
Bogotá, mas o número de assaltos, seqüestros relâmpagos e a sensação de
insegurança não melhoraram. Como mudar isso?
ANTANAS MOCKUS - Em Fortaleza, vi um estudo que fizeram com os
presidiários, dizia que eles gostavam mais de assaltar casas com muros
altos. O ladrão teme a transparência, que permite que os vizinhos, a
patrulha ou um pedestre possam ver o que acontece se houve uma invasão. A
vigilância eletrônica e a vigilância social funcionam mais sem áreas
escondidas. Aquele que se fecha cria lugar propício para o crime.
A segurança melhorou em Bogotá com mais espaço público, que é sagrado.
Discutimos muito para que as ciclovias passassem por dentro de condomínios
fechados. Quanto mais ciclista na rua, mais seguro. A noite das mulheres
[quando a prefeitura pediu que só mulheres saíssem em uma sexta-feira e que
os homens ficassem em casa] foi uma noite muito segura porque sempre
teremos espaços mais seguros quando o povo ocupa a cidade à noite. E se são
mulheres e crianças, mais ainda, muitos e frágeis são mais dissuasórios que
poucos fortões Por razões de segurança, os mais ricos só querem morar em
apartamentos, não em casa.
FOLHA - O senhor criou uma "vacinação contra a violência" nos bairros mais
violentos. Como funcionou?
MOCKUS - O grau de violência familiar e de mau-trato infantil chegou a um
ponto que não dava para empregar uma resposta convencional. Quisemos algo
extraordinário, diferente. Decidimos criar uma campanha de vacinação contra
a violência. Empregamos centenas de psiquiatras da prefeitura e voluntários
que, em um domingo, atenderam em juizados de família, centros de saúde e
escolas nas áreas mais violentas. Um psiquiatra recebia cada pessoa em um
cubículo. Perguntava qual era o momento em que você foi mais maltratado na
vida. Fazia que o paciente enchesse uma bexiga e pintasse nela a cara de
quem o maltratou. Depois o psiquiatra sugeria que a pessoa fizesse o que
quisesse. Tinha gente que estourava a bexiga, gritava, chorava. Os casos
mais graves eram encaminhados à rede municipal de saúde. Cerca de 15 mil
pessoas foram atendidas no primeiro domingo, 30 mil no segundo.
FOLHA - Sua primeira campanha de marketing envolveu a educação no
trânsito. Por que começou por ali?
MOCKUS - Para valorizar o espaço público, precisamos melhorar o encontro
dos desconhecidos. Então comecei a tentar melhorar o convívio entre
pedestres e motoristas. Descobrir o porquê da agressividade e o que piorava
a lentidão.
Começamos pelos mímicos, que atuavam nas principais avenidas, onde muitos
motoristas bloqueavam os cruzamentos ou paravam em cima da faixa de
segurança.
Quatrocentos atores e mímicos interagiram por alguns meses com os
motoristas, implorando, chorando ou fazendo cara de bravo aos infratores.
Sem falar uma palavra, nem agressividade. Virou uma brincadeira. Quando um
motorista parava de forma errada, as pessoas até vaiavam. Se o motorista
insistia no erro, o policial aparecia para multar ou advertir o infrator. O
policial também saiu mais valorizado.
Distribuímos 350 mil cartões vermelhos e 350 mil cartões verdes para que os
motoristas interagissem uns com outros, em vez de se xingar, buzinar ou
agredir.
*FOLHA - Em São Paulo, os motoboys formam outro elemento que gera confronto
no trânsito.
* MOCKUS - Os pedestres atravessam nos lugares indicados graças aos
motoboys, senão seriam atropelados. Em Bogotá, os motoristas fechariam os
motoboys!
Eles são muito grupais, entusiastas de sua perícia, arriscados. Eles andam
com mais velocidade que os carros e tempo hoje é ouro. No trânsito, eles são
reis. Vi que há solidariedade ali, quando um cai, vários param para ajudar.
Sei que há um culto à velocidade, muito risco, muitos acidentes. Por que
não se criam duas ou três regras que destacaria os motoboys mais admiráveis
e sensatos? Porque não fazer uma homenagem ao motoboy que não quebra
espelhinhos, que respeita os colegas, que é bom exemplo? Eu faria um pacto
de cidadania com eles.
FOLHA - São Paulo gastou cerca de R$ 200 milhões no ano passado recapeando
ruas, e o governo anterior construiu túneis dos Jardins na direção do
Morumbi. Ambas ações priorizam o uso do carro em vez do transporte público.
Bogotá fez o contrário?
MOCKUS - Nosso rodízio atinge 40% dos carros por dia, quatro números não
podem circular durante seis horas por dia. Quando eu era reitor da
Universidade, eu ia de bicicleta para a reitoria, chamava atenção que a
minha escolta usava carro e eu na bici. Quando prefeito, andei de bicicleta
várias vezes.
Aos domingos, fechamos as principais avenidas de Bogotá por várias horas e
elas se transformam em um grande parque. É um dia de mais exercício físico,
as pessoas ficam de melhor humor, a poluição diminui.
Investimento prioritário é transporte público. Menos espaço e verbas para o
transporte privado de carro, prioridade para faixas exclusivas de ônibus,
melhorar as calçadas.
Todas as grandes cidades terão que seguir Cingapura e Londres no futuro, e
ter um pedágio eletrônico. Usar carro em certas horas é caro, não dá para
tirar dinheiro público para fazer as obras caríssimas que demandam o
tráfego de carros. Investir em transporte público com esse dinheiro é
redistribuir renda.
FOLHA - O senhor aumentou impostos como prefeito. O paulistano reclama que
já paga demais. Como fazer?
MOCKUS - Ganhei duas vezes prometendo mais impostos, não menos.
Precisávamos enriquecer os cofres da Prefeitura. Vendi 50% da empresa
municipal de energia, que precisava de investimentos, e vendi 11% da
empresa de telefonia porque é bom que esses pequenos acionistas fiscalizem
o desempenho do governo, se há politicagem ou corrupção.
Na distribuição da cartela da nossa versão do IPTU, fizemos uma campanha de
pagamento voluntário. Quem pudesse, pagaria 10% a mais do total. No talão,
colocamos quinze projetos que a Prefeitura estava tocando e pedimos que quem
fosse pagar os 10%, fizesse um "x" ao lado do projeto preferido. Mais de
65.000 famílias contribuíram voluntariamente.
De US$ 200 milhões de IPTU em 1994 passamos a US$ 750 milhões em 2003. Hoje
já passa de US$ 1 bilhão de IPTU. Só conseguimos isso elevando a confiança
dos cidadãos na prefeitura.
Intervenções nas áreas mais caras da cidade, classe média ou classe alta,
eram custeadas pelos moradores, não saíam do orçamento comum. O dinheiro
público tem que ser redistributivo. Criei um imposto sobre a gasolina de
25%. Metade do arrecadado vai para o sistema de ônibus, a outra para a
manutenção viária, incluídas as calçadas
FOLHA - Para ter essa crença na cidade, é necessário recuperar a
auto-estima. Os paulistanos vivem falando que a cidade é um caso perdido. Há
receita para se recuperá-la?
MOCKUS - Pergunte a um grande industrial se ele mudaria para uma cidade
pequena ou se ele continuaria em São Paulo. O que faz São Paulo tão
atraente? A prefeitura deveria pesquisar quais são as 10 principais razões
para se morar em São Paulo, perguntar ao munícipe o que ele deve à cidade,
e conectar as respostas com ações que fortaleçam e potencializem aspectos
criativos de amor com a cidade.
Os bogotanos tinham pouquíssima auto-estima no início dos anos 90. Quando
ninguém respeita as leis, qualquer desconhecido representa um perigo. As
relações anônimas melhoram quando há um nível de respeito.
FOLHA - Para suas campanhas educativas de trânsito, violência ou
cidadania, o senhor recorreu a mímicos, brincadeiras e até se vestiu de
super-homem. Não temia o ridículo?
MOCKUS - Não temi ser chamado de ridículo ou populista com meus atos.
Decidi arriscar, um risco pedagógico. Há problemas que se resolvem com
dinheiro, outros com a aplicação da lei, outros com educação, a maneira
mais difícil. Continuo a me sentir um educador, só entrei na política
porque sabia que iria ensinar e aprender.
Só dá para ser levado a sério se o político se autoaplica o remédio.
Cultura cidadã não é acessório, tem que ser o coração da política. Como
fazer para arrecadar mais, como gastar melhor, como comunicar minhas
decisões, como melhorar a qualidade do espaço público e melhorar a
convivência, cada ação tem que ser precedida dessas perguntas.
Me cerquei de intelectuais, de acadêmicos da universidade para governar, o
melhor em cada cargo. E foi ótimo. Com cronogramas, prazos e objetivos. Se
os partidos tradicionais, os políticos, nos colocassem barreiras,
obstáculos para governar, todo mundo iria saber.
FOLHA - Então comunicar é tudo?
MOCKUS - Sempre preferi que as questões municipais fossem visualizadas de
forma que ninguém pudesse dizer "não entendi". As pessoas deveriam ser
sensibilizadas a partir de formas que elas nunca viram antes. Velhos
discursos não comoveriam ninguém.
FOLHA - No Brasil, governos só investem em publicidade às vésperas de
campanhas eleitorais com fins eleitoreiros. Como o senhor fez tanto
marketing?
MOCKUS - Decidimos criar versões interessantes dos problemas da cidade,
visuais, simbólicas, gerar uma narrativa que atraísse a atenção da
imprensa. Chegou um momento que os jornalistas já nos rondavam,
perguntando-se qual seria a novidade da semana. Criei um nível de suspense
a fim de enriquecer as mensagens. Como acontece na arte, alguém abre uma
porta que permite que vários outros comecem a usar uma nova linguagem.
Minha missão era criar matéria-prima que fizesse nossas idéias mais
visuais, com apelo. E explicá-las aos jornalistas, com quem sempre tive boa
relação.
Só se o cidadão entende as razões de um projeto, poderá apoiá-lo. Não deve
ficar um único cidadão sem entender a mensagem.
FOLHA - São Paulo está com seus limites ocupados por invasões e conjuntos
habitacionais a dezenas de quilômetros das áreas centrais, enquanto muitas
destas estão subaproveitadas. Como Bogotá regularizou sua expansão?
MOCKUS - Para fazer conjuntos habitacionais, o governo comprou terras e
estipulava um plano diretor. O mercado não faz bom urbanismo. As
construtoras então competiam entre si, fazendo apartamentos de 45 m2,
subsidiados. Os lotes tinham urbanismo básico, água, luz, calçadas, antes
das empreiteiras terminarem os edifícios, de cinco andares ou casas que
pudessem ser ampliadas. O ideal é fazer como os parisienses: morar em
apartamentos pequeninos, mas ter uma cidade maravilhosa onde conviver.
Espaço público é sagrado.
Temos que fazer a reforma urbana a tempo, coisa que não soubemos fazer no
passado com a reforma agrária.
Bogotá ficou densa, parece bem mais densa que São Paulo, isso ajuda nas
distâncias, tudo ficou mais perto. Antes, quando um bairro ficava decadente,
era abandonado e a cidade continuava a se expandir para o norte. Hoje isso
parou e começamos a recuperar o centro expandido.