O começo da história é banal: Mitch Altman decidiu deixar o emprego em
2003 para dedicar a vida a algo de que "realmente gostasse". Menos
banal é aquilo de que Altman realmente gosta: desligar televisões
Se fosse possível, desligava todas as televisões do mundo. Foi a isso
que decidiu dedicar a vida – e é com isso que paga as contas todos os
meses.
Altman – um americano de 52 anos, com um curso de Engenharia
Electrónica e uma carreira de pequenas invenções – esteve em Lisboa,
em Dezembro, no Sapo Codebits, um evento que reúne anualmente amantes
da tecnologia e da programação informática. E era fácil encontrá-lo
entre as centenas de participantes: junto a uma bancada repleta de
material electrónico e dispositivos bizarros, não passava despercebido
graças ao cabelo quase pelos ombros (ao pouco cabelo que lhe resta,
pelo menos) pintado em várias cores.
A celebridade de Altman nos meandros da tecnologia começou em 2004,
quando se popularizou uma invenção que tinha em mente já desde 1993.
Foi em Outubro desse ano que a conhecida revista de tecnologia Wired
publicou online um artigo sobre o TV-B-Gone (que se pode traduzir por
"TV vai-te embora" ou "TV desaparece"). É um pequeno aparelho, não
muito diferente do comando de um carro, que tem apenas um botão e um
objectivo bem claro: desligar praticamente todos os modelos de
televisão que existem no mercado.
A aversão aos televisores é antiga. Altman já foi um viciado em
televisão e o pequeno ecrã servia para atenuar aquilo que descreve
como uma depressão que começou na infância e se arrastou até aos
primeiros anos da vida adulta. "Quando era criança, era completamente
deprimido", recorda ao P2. "Era um geek introvertido, gay, era mau a
fazer desporto, batiam-me na escola, os meus pais eram negligentes,
todas essas coisas." Quando foi para a universidade, a televisão
encarregou-se de preencher a maior parte das horas que passava
acordado.
Um dia, em 1980, Altman (que tinha então 23 anos) estava em casa a ver
uma reposição de uma série dos anos 60 e a pergunta surgiu: "Por que
estou a fazer isto? Eu nem sequer gosto de ver televisão." Desde aí,
já lá vão três décadas, assegura que, ao todo, não viu mais de 20
horas de televisão. "Acontece de vez em quando, se um amigo me convida
para ver um vídeo. Não é que a televisão seja má. Mas há coisas
melhores para fazer com o meu tempo."
O caminho para a fama
Quando em 2003 se demitiu de uma empresa de electrónica, depois de
quase duas décadas a trabalhar na meca da tecnologia que é Silicon
Valley, Altman não sabia que fazer. Durante os primeiros meses de
desempregado (a viver do dinheiro que amealhara, graças a um estilo de
vida "muito poupado"), dedicou-se a vários tipos de trabalho
voluntário em São Francisco, onde mora.
Depois de ter ajudado a construir pistas para bicicletas, montado
computadores para instituições de caridade e trabalhado em linhas de
apoio a seropositivos, avançou para a construção do primeiro protótipo
do TV-B-Gone. O aparelho funciona de forma simples: envia
sucessivamente vários sinais electrónicos para o televisor-alvo, até
encontrar o sinal certo para o fazer desligar. Os sinais para desligar
os modelos mais comuns são enviados primeiro.
O invento poderia não ter passado de uma pequena diversão. Mas, em
2004, um amigo de um amigo precisava de escrever um trabalho para
concluir um curso de Jornalismo. Escolheu como tema o TV-B-Gone e
entrevistou Altman numa loja da Best Buy, uma gigantesca cadeia de
equipamento electrónico. Enquanto a entrevista decorria, Altman
desligava sucessivamente as várias televisões expostas. Entrevistador
e entrevistado acharam piada e seguiram pela cidade a desligar
televisões em locais públicos: lavandarias, restaurantes, cafés. "Não
é ilegal nos EUA", assegura Altman, que se aconselhou com o irmão, que
é advogado.
Por esta altura, Altman recebeu 70 mil dólares (cerca de 47 mil euros,
ao câmbio actual) na sequência da venda de uma empresa que ajudara a
fundar. Foi uma minúscula fracção do valor do negócio, mas chegou para
o inventor mandar fabricar, na China, 20 mil TV-B-Gone. "Foi dinheiro
que caiu do céu. Foi um risco. Mas calculei que, se vendesse cinco mil
aparelhos a um preço de 15 dólares conseguia recuperar o investimento
ao fim de uns anos."
O artigo acabou por ser publicado no site da Wired – dificilmente se
poderia imaginar um sítio melhor para publicitar um invento como o
TV-B-Gone – e depressa começou a chuva de encomendas. Os 20 mil
aparelhos foram vendidos em poucas semanas.
O primeiro milhão
Altman fundou e é hoje o presidente e CEO da Cornfi eld Electronics.
Mas esta não é uma grande empresa e Altman está muito longe de ter
ganho um milhão de dólares a vender o TV-B-Gone. Vive num T0 ("um
apartamento minúsculo"), paga a 12 pessoas que trabalham para ele em
part-time (é preciso gerir o site, processar as encomendas, enviar os
aparelhos por correio) e fica com o que sobra. "Dá à justa para o meu
estilo de vida." Contudo, à média de 250 mil aparelhos por ano, a
marca do milhão de unidades vendidas já foi ultrapassada (o aparelho
para televisões americanas custa 20 dólares e o que desliga televisões
europeias, 25 dólares, ou 17 euros).
O negócio foi impulsionado pela enorme cobertura mediática que se
seguiu ao artigo da Wired, recorda Altman, que dá pequenos pulos na
cadeira quando fala do projecto – isto apesar de já ter dado
entrevistas a praticamente todas as grandes cadeias de televisão
americanas, da NBC à CNN. "Tive cobertura nas televisões por querer
desligar televisões! É o tipo de publicidade que não se consegue
comprar." Muitas pessoas compram o TV-BGone pelo lado "maléfico",
admite o inventor. "Querem desligar a televisão num bar onde toda a
gente está a ver desporto e ficar a ver o que acontece." É o tipo de
partida que o próprio Altman também já fez. Mas a motivação para
continuar a vender o TV-B-Gone é outra: "Quero que as pessoas façam
uma escolha consciente em relação ao que estão a fazer com o tempo que
têm. Muitas vezes, ver televisão não é uma escolha consciente. A
televisão é ligada automaticamente. E está sempre ligada."
Desligar televisões é o modo de vida de Altman, mas não é a única
actividade que o tornou uma minicelebridade entre aficionados da
electrónica. O inventor organiza vários workshops onde incentiva as
pessoas a desenvolver e montar os seus próprios aparelhos. E montar um
aparelho electrónico não é uma tarefa simples. Um dos pontos mais
delicados é soldar os componentes. E, ao falar disto, Altman fica tão
entusiasmado como quando fala do TV-B-Gone: "Consigo ensinar qualquer
pessoa a soldar! Já ensinei milhares de pessoas a soldar."
02.01.2010 - 16:04 Por João Pedro Pereira
http://www.publico.pt/Tecnologia/se-fosse-possivel-desligava-todas-as-televisoes-do-mundo_1416044