Na maior parte dos países europeus, o uso da ferrovia cresce
02.02.2011 - 07:25 Por Carlos Cipriano
http://economia.publico.pt/Noticia/portugal-perdeu-43-dos-passageiros-de-comboio-em-20-anos_1478215Duas décadas de aposta em auto-estradas e de fechos sucessivos de
linhas de comboio fizeram com que Portugal perdesse, durante este
período, 99 milhões de passageiros de caminhos-de-ferro.
Dos 231 milhões de viagens de comboio realizadas em 1988, passou-se
para 131 milhões em 2009, uma redução de 43 por cento.
Este número ilustra, de forma clara, o que tem sido a evolução do uso
da ferrovia em Portugal, em contraponto claro com aquilo que se passa
na maior parte dos outros países europeus. E faz com que se questione
o impacto das políticas seguidas neste sector no passado e no
presente.
Ontem, foi retirado o serviço ferroviário regional em mais 138
quilómetros de vias-férreas, depois de, no ano passado, se terem
encerrado 144 quilómetros de linhas (com a promessa de reabilitação
que não aconteceu).
Este acto de gestão é defendido como uma forma de reduzir o défice da
CP, permitindo à empresa melhor concentrar a sua oferta nos grandes
eixos onde o caminho-de-ferro cumpre a sua função de transporte de
grandes massas.
No entanto, o que as estatísticas dos últimos 20 anos provam é que
sempre que se cortaram linhas férreas, o número de passageiros
diminuiu. Em 1990, quando Cavaco Silva era primeiro-ministro,
reduziram-se abruptamente 700 quilómetros de vias-férreas, sobretudo
em Trás-os-Montes e no Alentejo. O resultado foi que as linhas
principais, vendo-se amputadas dos ramais que as alimentavam, ficaram
com menos gente.
Mas poder-se-ia ainda argumentar que com os ramais fechados,
desapareceram os clientes que só faziam distâncias curtas (nada
apropriadas a um sistema pesado como é o ferroviário e, logo, mais
adaptados ao autocarro), aumentando o número de passageiros que viajam
de comboio em percursos superiores. Errado mais uma vez: a prática
demonstra o contrário. O número de passageiros por quilómetro
percorrido) era de 6 milhões em 1988, baixou para 5,6 em 1991 e é
agora de 3,7 milhões.
Dito de outra maneira, enquanto em 1989 cada português fazia uma média
de 22 viagens de comboio por ano (em termos absolutos), hoje só faz
dez.
E será que os resultados da CP melhoram, com a redução de linha?
Também aqui as tendências pesadas do passado provam exactamente o
oposto. E mostram mais: que quem ganha com o negócio são sempre os
autocarros e, claro, o transporte individual.
Caso único na Europa
A quota de mercado do caminho-de-ferro no transporte de passageiros
afundou-se em cerca de 66 por cento entre 1990 e 2008. Essa quota face
à rodovia não passa hoje dos 4,4.
É claro que para isto muito contribuiu a forte aposta na
infra-estruturação rodoviária do país. Os números do Portugal do betão
e do alcatrão são significativos: o pequeno país periférico tem 20
metros de auto-estrada por Km2 contra 16 metros que é a média
europeia. Mas na rede ferroviária só possui 31 metros por Km2 contra
47 metros da média da União Europeia.
Não surpreende, assim, que nos países da Europa Ocidental Portugal
seja o único que, em 20 anos, perdeu passageiros na ferrovia. É certo
que a França, a Holanda e a Suíça tiveram crescimentos modestos - "só"
conseguiram transportar cerca de 30 por cento mais de passageiros -,
mas isso resulta de serem mercados maduros onde a tradição de andar de
comboio é quase ancestral. A Grã-Bretanha, país que foi o berço do
caminho-de-ferro, cresceu 53 por cento em 20 anos, a sua vizinha
Irlanda 57 por cento, a Bélgica 55,2 por cento e a Alemanha 83 por
cento, em parte graças à aposta em comboios de alta velocidade que são
um verdadeiro luxo.
Mas o mais curioso é que o único país dos três dígitos é precisamente
a Espanha, com um aumento de 157 por cento. Em 20 anos, nuestros
hermanos, que apostaram no TGV, passaram de 182 milhões de passageiros
dos seus velhos comboios dos anos oitenta (muitos deles, à época, bem
piores do que os portugueses) para 467 milhões de clientes da
ferrovia. Um aumento que contrasta com o envergonhado decréscimo de
passageiros de comboio de 43 por cento no cantinho luso.
O que falhou, então?
A resposta terá que ser dada mais pelo lado da rodovia do que da
ferrovia. Entre 1992 e 2008, por cada euro investido no
caminho-de-ferro eram aplicados 3,3 euros na rodovia. Durante este
período, a Refer investiu 5,9 mil milhões de euros e os contratos da
Estradas de Portugal para construção de novas vias rodoviárias atingia
19,8 mil milhões de euros.
E a divergência tem vindo a acentuar-se. Por exemplo, em 1995,
enquanto a Refer investia 250 milhões de euros nos carris, a Estradas
de Portugal avançava com um pacote de 12 novas concessões (três delas
vindas do Governo de Durão Barroso) no valor de 4,5 mil milhões de
euros relativos a 2500 quilómetros de estradas.
Álvaro Costa, especialista em Transportes na Faculdade de Engenharia
do Porto, diz que os 40 milhões de passageiros perdidos na ferrovia
não são mais do que o reflexo da política seguida em Portugal em
relação ao investimento público em infra-estruturas de transporte e a
sua forma de financiamento.
"Tem-se investido muito na construção de auto-estradas, algumas com
índices de utilização muito baixos, mas, como o financiamento está
contratualizado com o sector privado, não existe nenhuma vantagem em
encerrarem, porque daí não resultaria nenhuma vantagem para o Estado",
explica. Já com as linhas de caminho -de-ferro é muito diferente
porque o seu encerramento faz o Estado poupar custos e o sector
rodoviário ganhar passageiros e aumentar a procura. É por isto que
Álvaro Costa entende que o sector privado deveria ter sido mais
envolvido na exploração das linhas de caminho-de-ferro. "Se assim
fosse, talvez a situação fosse diferente da actual", diz.
Nelson Oliveira, presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos
Caminhos-de-Ferro (que congrega 1100 associados), chama a atenção para
o facto de não só se terem perdido passageiros, como os défices da CP
e da Refer terem vindo sempre a aumentar.
E questiona se os objectivos comerciais e técnicos estabelecidos pelos
decisores nas últimas décadas eram os mais adequados. Por exemplo:
"Será que o custo-benefício da modernização da Linha do Sul foi
vantajoso para ainda se demorar três horas na ligação mais rápida
entre Lisboa e Faro? Será este tempo concorrencial com o transporte
individual?"
Mas há mais perguntas: "Apesar dos encerramentos nos últimos 20 anos,
melhoraram os resultados? Há mais passageiros? Os prejuízos das
empresas são menores? Não. Por isso, o problema tem certamente outras
causas. Não são os serviços alegadamente deficitários os culpados".
O também engenheiro com uma pós-gradução em Caminhos-de-Ferro aponta
outras causas para este declínio: "Um Estado que não fiscaliza como é
prestado o serviço de transportes públicos, uma política que insiste
em duplicar auto-estradas em zonas já servidas pelo caminho-de-ferro,
uma política que encerra linhas férreas onde alegadamente há pouco
tráfego (sem questionar se o serviço comercial prestado é o mais
adequado), mas não constrói vias-férreas onde elas são necessárias,
como é o caso de Viseu, uma das maiores cidades da Europa que não são
servidas pelo comboio".
Nelson Oliveira critica também "o sucessivo espartilhar dos diversos
serviços, com uma artificial separação entre longo curso, regionais e
suburbanos que torna o comboio pouco atractivo para quem tenha
necessidades de usar mais do que um comboio". É por isso, explica, que
o encerramento de ramais e diminuição de serviços regionais afasta
cada vez mais o público. E conclui: "Os decisores parecem esquecer-se
de que estes serviços também alimentam os serviços principais com
passageiros. A prosseguir este caminho, mata-se o doente à procura da
cura".