Público 2012-04-09 Paula Torres de Carvalho
Aos consultórios médicos chegam cada vez mais "pequenos ditadores" que
os adultos já não conseguem controlar. São filhos de pais que têm medo
de ser tiranos. Mas as crianças sem limites não são livres, defendem
especialistas
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"Não vou". "Não quero". "Só faço se quiser". O problema não é uma
criança dizer isto. O problema é quando ela faz precisamente o que diz
e os adultos já não têm o poder de a contrariar. Não é uma questão
portuguesa mas da generalidade das sociedades ditas desenvolvidas. Os
consultórios dos pedopsiquiatras e dos psicólogos estão a encher-se de
meninos-rei, pequenos ditadores, crianças sem limites, algumas a
caminho da delinquência apresentadas por pais aflitos e referenciadas
por professores fartos.
Mais do que um problema, a omnipotência destas crianças é um sinal.
Tem a ver com a falta de limites que resulta de uma organização social
desregrada, sem tempo para o investimento emocional na criança.
A perspectiva da necessidade de construir "uma cultura da diferença de
tempos" defendida pelo filósofo e psicanalista francês Raymond
Bénévenque, para quem "é no mundo dos adultos que se deve lutar por um
outro futuro das crianças", encontra-se nos discursos do médico
pedopsiquiatra Pedro Strecht e das psicanalistas Carmo Sousa Lima e
Maria Teresa Sá. Por trás do problema das crianças sem limites,
identificam a falta de tempo, a velocidade que muitas vezes não deixa
pensar. E a incapacidade de pensar dá lugar à depressão que tem como
uma das manifestações a chamada omnipotência infantil.
Em educação tem de haver tempo. "Para haver qualidade, tem que haver
quantidade e disponibilidade", considera Pedro Strecht. "Os pais
passam muitas horas a trabalhar, muitas crianças chegam a estar 10, 11
horas em jardins de infância e na escola. O reencontro no final do dia
acontece numa situação de grande vulnerabilidade emocional com
crianças cansadas, com birras, com pouco tempo para cumprir as rotinas
e com pais extremamente cansados do trabalho, portanto num ponto de
desencontro, de choque e de conflito. Pela falta de tempo e pela
culpabilidade dos pais em relação a isso, a permissividade aumentou e
aumentou aquilo que vários autores chamam os objectos compensatórios,
no que respeita tanto a objectos como à própria relação". A
delimitação de regras fica para trás e o que se observa muito hoje -
diz Pedro Strecht - é que "temos cada vez mais miúdos que num registo
familiar não têm estas balizas e que depois transportam para outros
registos, a escola, a sociedade" toda a sua inquietação.
A dificuldade de impor e de aceitar limites paga-se "caro vida fora",
adverte Maria Teresa Sá. "Os pais têm medo do poder. Como que sofrem
de um excesso de democracia [entre aspas]. Há uma perversão, como na
democracia. Muitos pais têm dificuldades com os limites porque têm
medo de ser tirânicos. Têm medo de ser como os pais, como os avós ou
como o modelo que eles intuíram da sociedade antes deles", diz Carmo
Sousa Lima.
E os exemplos sucedem-se: na escola, António, dez anos. A professora
anuncia: "Hoje é teste". Ele cruza os braços: "Não faço". E não faz.
Em casa: Rita, nove anos, filha única. A mãe diz-lhe para desligar o
computador e ir para a mesa jantar. Ela continua imóvel à frente do
ecrã. A mãe repete a ordem. A miúda não se mexe. Já irritada, a mãe
aproxima-se e desliga o computador. Rita protesta, grita e volta a
ligar o computador. Empurra a mãe, não vai jantar.
No consultório médico, Pedro, oito anos, para o pedopsiquiatra: "Olha,
já parti portas, um dia se tu quiseres, também posso partir esta do
teu consultório... Se quiseres ver..."
O número de casos "é muito significativo e, sobretudo em relação a
anos atrás, é muito mais intenso", diz Pedro Strecht.
A importância da autoridade
O que faltou ou o que tiveram a mais estas crianças para se tornarem
assim? Strecht recua até aos primeiros tempos da vida da criança e da
relação precoce com os pais. Refere o médico psicanalista inglês
Donald Winicott e a sua ideia de "holding" para explicar a necessidade
do envolvimento da criança "num círculo de amor e de força" juntando o
afecto e o investimento emocional à fixação de limites. "Na própria
relação com o bebé, é isso que se faz", explica o pedopsiquiatra.
"Quando um bebé está inquieto, a pessoa pega-o ao colo, envolve-o
fisicamente. A modelação emocional é feita também à custa de um
"holding físico". O que acontece depois é que os miúdos vão integrando
progressivamente e de forma cada vez mais autónoma o holding emocional
sem ser preciso tanto o holding físico, de uma forma cada vez mais
auto-regulada". Quando isso não sucede pode querer dizer "que não
houve esse holding físico de delimitação, de força, no "sentido de
contenção emocional e verbal."
A explicação para as manifestações de tirania por parte destas
crianças passa então pela pergunta acerca do que tiveram elas a mais.
Como nota a psicanalista Carmo Sousa Lima, "o excesso de sim perturbou
a capacidade das crianças tolerarem o não", mas "é o não que faz
valorizar o sim e não o contrário". Depois do período de "maravilha" e
de "encantamento" que rodeia o bebé nos primeiros tempos, os pais
devem educar os filhos para a realidade, defende. "Há aspectos da
realidade de que os pais não podem proteger a criança sob pena de esta
enlouquecer ou cair nessa omnipotência que agora é tão corrente
aparecer nos consultórios". Há pais, mães que "são de uma ansiedade
tal que a criança não pode sair de dentro delas e continua a viver
numa espécie de uma bolha protectora, mas que a vai destruindo em
termos de autonomia e de identidade", diz, sublinhando que "são os
limites que protegem a criança".
Ao contrário do que muitos adultos ainda pensam, "uma criança sem
limites não é uma criança livre", diz Teresa Sá, psicanalista e
professora na Escola Superior de Educação de Santarém. Que se desfaça
a confusão: "Uma criança sem limites é escrava das suas pulsões e não
é feliz, vive angustiada". Entregue a si própria "não tem outro guia
senão a satisfação imediata". Se quer uma coisa, agarra-a, se não está
contente, bate. E se, a curto prazo, isto até pode ser agradável,
"paga-se caro, vida fora". Teresa Sá explica como. "Constitui-se como
um verdadeiro sofrimento psíquico, visto que o sujeito se encontra na
impossibilidade de se frustrar minimamente, de dizer não a si próprio,
e não somente de dizer não ao educador". O que correntemente se
designa por omnipotência, "não é unicamente a vontade de dominar os
outros e de não levar em conta senão o seu próprio desejo, mas, de
igual modo, a impotência e a impossibilidade de se dominar a si mesmo,
de se limitar", esclarece. "Parecendo dono do mundo, o sujeito está na
verdade desmunido, pois não se sente dono do seu próprio mundo
interno".
Daí, a importância da autoridade na educação. Carmo Sousa Lima fala
antes do exercício de um "bom poder". A capacidade de lidar com os
limites "é um poder muito bom, indispensável", diz. "Todos temos uma
margem de poder que está em tudo. Podemos falar, comer, amar, mas há
pessoas que não podem. Há patologias que não deixam. Por isso, a
palavra o poder em si própria é uma palavra muito boa, com um sentido
muito profundo". O bom poder "é o poder de dizer "não" na justa medida
das coisas que são razoáveis dizer que não. E de dizer que sim naquilo
que ajuda a criar uma melhor pessoa".
É a autoridade "exercida pelos educadores (pais, professores,
instituição) que permite à criança e ao jovem integrar os interditos
fundamentais ligados à socialização", salienta Maria Teresa Sá. "Um
adulto que permite tudo não é, para a criança, um adulto que lhe dê
segurança".As crianças reclamam, aliás, esses limites quando levam os
adultos ao limite (a "passarem-se da cabeça e agirem"). É "como se a
criança estivesse a levá-los a colocarem limites". E quando isso não
se verifica, "pode acontecer que seja a própria criança ou jovem a
colocar o limite, em escalada, geralmente com o corpo, caindo,
magoando-se, pondo-se em perigo". Sem autoridade "a criança
sentir-se-á insegura, deixada só nas perigosas marés da sua
impulsividade e destrutividade, abandonada, negligenciada", nota Maria
Teresa Sá.
Pedro Strecht alerta, contudo, para o facto paradoxal de, a par da
permissividade, existir um regresso ao autoritarismo" e para a
necessidade de isso não acontecer. Face às ideias de que, para
enfrentar os problemas da educação é preciso uma "educação espartana"
e que "antigamente é que era bom", Strecht diz que "não há nada mais
falso". "Sabemos que no campo da saúde mental e da infância, isso é
absolutamente mentira". E lembra: "Se hoje as escolas estão cheias de
problemas, em 1974 a escolaridade obrigatória limitava-se à quarta
classe. E se formos ver, há cem anos não havia meninas nas escolas e a
maioria da população escolar andava descalça e isso é que era um
problema".
Tem de haver autoridade, sim, mas uma autoridade "protectora", defende
o pedopsiquiatra. Que proteja as crianças "dos seus próprios
movimentos mais primitivos, mais agressivos", nota Carmo Sousa Lima.
Uma autoridade com afecto como defende o psiquiatra Daniel Sampaio.
Para promover o desenvolvimento e a autonomia. E "passar de uma
navegação à costa para uma navegação à distância", sem a perder de
vista, exemplifica Pedro Strecht, deixando claro que se não for feito
na infância, este trabalho se tornará muito mais difícil na
adolescência.