Amor
João Miguel Tavares, jornalista (
jmtavares@cmjornal.pt)
Correio da Mnhã, 2013-01-06
"Vinicius [de Moraes] colecionou paixões e casamentos e eu sou um
monogâmico praticante"
Eu iniciei há umas semanas, juntamente com a excelentíssima esposa, um
blogue familiar chamado Pais de Quatro, e um dos primeiros posts que
escrevi foi a propósito de um filme chamado 'Amor', sobre um casal de
velhos em que um deles está a morrer. Em rigor, o post não era sobre o
filme, mas sobre a resposta do realizador Michael Haneke a um
jornalista que, numa entrevista, fez a seguinte observação: "Você
sugere que o amor é mais sobre as nossas ações do que sobre os nossos
sentimentos, que o verdadeiro amor é, na verdade, intensamente
prático."
Haneke respondeu como se tal coisa fosse a mais evidente do mundo:
"Sim, claro. Aquilo que fazemos por outra pessoa é mais importante do
que aquilo que sentimos por ela." Eu achei que aquela era uma resposta
muito sábia e muito bela, e escrevi que ela deveria ser proferida em
todos os casamentos, e estar pendurada nas paredes de todos os lares.
E acrescentava que, ao contrário de "todas as teses do romantismo
sentimentaloide e assolapado", me parecia ser "a perfeita definição de
amor".
Um amigo meu leu o post e disse-me que aquilo que eu tinha escrito era
horrível, na medida em que parecia que o que eu queria para a minha
vida não era uma mulher, mas uma enfermeira. De certa forma, ele
assumiu-se como o defensor do tal romantismo assolapado e da
intensidade apaixonada de todas as relações, na esteira do mais batido
verso de Vinicius de Moraes: "Que [o amor] não seja imortal, posto que
é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure." Um bonito verso, mas
tão certo do seu relativismo amoroso quanto alguns conservadores estão
certos do absolutismo do matrimónio.
Claro está que cada um fala a partir da sua biografia: Vinicius
colecionou paixões e casamentos e eu sou um monogâmico praticante. Mas
incomoda-me a forma como este olhar sobre as relações insiste em se
tornar monopolista, como se se tivesse tornado do domínio da evidência
que tudo acaba e que amar uma pessoa durante toda a vida é uma genuína
impossibilidade. Estes são os que não percebem Haneke: que amar é sair
de mim em direção ao outro, e que se eu nunca sobrepuser as suas
necessidades aos meus sentimentos essa pessoa será sempre menos
importante para mim do que eu próprio. Porque o romantismo assolapado
e sentimentaloide é, demasiadas vezes, apenas um egoísmo disfarçado,
que nada tem a ver com o verdadeiro amor.
Ainda o amor
Correio da Manhã, 13 Janeiro 2013
João Miguel Tavares. Jornalista (
jmtavares@cmjornal.pt )
"Só que o amor anda espantosamente acossado nos dias que correm. É
algo que tem vindo a cair a pique"
Posso voltar a falar de amor? Na semana passada dei-me conta de que
escrevo textos atrás de textos sobre a família e a loucura que é criar
quatro filhos, e me esqueço quase sempre de falar daquilo que está na
base de tudo isso, e sem a qual nada disto seria possível: o amor de
duas pessoas. Quem conhece esta página sabe que ela é uma coleção
impressionante de desabafos e frustrações, de queixas atrás de
queixas. Mas queixarmo-nos é soltar o vapor que nos consome sem
sairmos do mesmo sítio. Quer dizer: protestamos, gritamos, choramos –
mas permanecemos. E essa permanência só é possível se acharmos que é
aqui, no meio da loucura, dos gritos e até do sofrimento, que somos
mais felizes. A vida, a rotina mais cansativa, o quotidiano mais
furioso, até nos pode empurrar de escarpas e penhascos, mas nós não
nos afastamos, porque sabemos onde queremos cair de costas. À certeza
desse lugar eu chamo amor.
Só que o amor anda espantosamente acossado nos dias que correm. É algo
que tem vindo a cair a pique na bolsa de valores, perdendo terreno
para a paixão, esse poderosíssimo combustível que alimentou a mais
bela literatura, e onde arderam Anna Karénina, Emma Bovary ou Carlos
da Maia. A distinção entre amor e paixão é velha como o mundo, e já os
gregos associavam o primeiro à permanência (como no caso idealizado do
amor platónico) e o segundo à intensidade. Só que as coisas
complicam-se quando toda a gente passa a aspirar a uma intensidade
permanente. E menos do que isso é pouco. Pior: menos do que isso é
falso, como se o amor, para ser genuíno, tivesse de ser uma perpétua
paixão.
Ora, esta ideia de que a paixão é o pico e o amor fica uns metros
abaixo conduz a uma outra: a de que aquilo a que se chama uma relação
feliz exige um acomodamento por parte do casal, que se tenta convencer
de que aquilo continua a ser bom, embora já não consiga chegar ao
cume. Esta é uma ideia completamente dominante à minha volta, como se
o destino inevitável de todas as relações fosse a dissolução ou o
conformismo. Não é verdade. O amor até pode ser o sítio em que os
filmes acabam, mas a vida continua. E há gente que se continua a amar,
e a ser feliz, até ao fim dos seus dias. Deixar de acreditar na
sinceridade deste amor não é apenas triste. É perder a oportunidade
para fazer a única pergunta que realmente importa: como é que se
consegue chegar lá?
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