Numa altura em que ter trabalho é mais do que uma bênção, diversos
estudos comprovam que o grau de insatisfação com o mesmo nunca esteve
tão elevado. Para o filósofo Roman Krznaric, "entrámos numa nova era
de realização pessoal, na qual o grande sonho é trocar o dinheiro pelo
significado". E esse é o tema de um livro apaixonante e que nos obriga
a repensar muitos dos dilemas que enfrentamos todos os dias
HELENA OLIVEIRA Ver, 2013-05-02
"O trabalho é um mal necessário a ser evitado" – Mark Twain
Nos tempos que correm, e sempre que alguém se queixa do trabalho em
excesso, de chefes insuportáveis, de horários abusivos ou se pronuncia
a popular frase "não aguento mais o meu emprego", há sempre alguém que
nos olha com um ar furibundo e que diz: "dá é graças por ter
trabalho". O que, face ao flagelo que assistimos no mercado laboral, é
uma verdade indiscutível.
Todavia, esqueçamos por alguns instantes a falta de emprego e
concentremo-nos na falta de vontade para nos erguermos todos os dias
da cama para ir trabalhar. Ao longo de séculos, o trabalho sempre foi
encarado como uma necessidade feia e não como uma fonte de identidade.
Todavia, e como argumenta o filósofo Roman Krznaric, "entrámos numa
nova era de realização pessoal, na qual o grande sonho é trocar o
dinheiro pelo significado". Apesar de serem decerto muitos os leitores
que discordam desta nova máxima filosófica, a verdade é que, de acordo
com vários estudos, o grau de insatisfação das pessoas relativamente
ao trabalho que têm, está a crescer significativamente. A maioria das
pesquisas feitas no Ocidente revela que, pelo menos metade dos
entrevistados é infeliz no seu local de trabalho. Num estudo feito
somente na Europa, a percentagem dos insatisfeitos cresce para os 60%.
Nos Estados Unidos, a satisfação com o trabalho atingiu, desde que há
registos, o nível mais baixo de sempre: 45%.
Dados os números, não parece de todo má ideia dedicar um livro à
procura do significado para o trabalho e foi o que fez Roman Krznaric,
no seguimento das obras que têm a chancela da The School of Life, o
empreendimento cultural fundado pelo famoso Alain de Botton, escritor
de ensaios que têm sido descritos como "filosofia para a vida de todos
os dias". How to Find Fullfiling Work não é um livro grande, mas tem
todos os ingredientes para ser um grande livro. Escrito com base numa
agradável e inteligente mistura de factos históricos, psicologia e
entrevistas enriquecedoras, desconstrói muitos dos mais comuns dilemas
relacionados com o trabalho e com a carreira, tal como a
sobre-abundância (ou escassez) de opções de emprego, os compromissos
prematuros que somos obrigados a fazer em tenra idade sobre as nossas
opções de carreira, a "psicologia do medo" que nos mantém aprisionados
a um trabalho que odiamos, como avaliar se determinado trabalho tem ou
não significado ou sobre o tipo de recompensas que dele retiramos. Mas
se está à espera de mais um livrinho de auto-ajuda, de consumo rápido
e dicas mágicas, este não é o caso. Mais do que dar respostas, a obra
de Krznaric faz perguntas. Mas também nos força a tentarmos
respondê-las.
Especialização versus tocar sete instrumentos
A insatisfação vocacional que parece estar a aumentar em todo o mundo
pode ter as suas raízes no culto da especialização iniciado de forma
substancial com a Revolução Industrial. Ao longo dos dois últimos
séculos, ser-se especializado em alguma coisa consistia na melhor
forma de utilizarmos os nossos talentos e ganharmos, em simultâneo, um
status social reconhecido que derivava directamente da nossa área de
especialização. "Ser-se especialista em…" sempre constituiu o orgulho
de muitos, mesmo que, para tal, existissem custos, pois o que parece
sobressair na natureza humana são "eus múltiplos" e parecem ser mais
felizes aqueles que apostam na multiplicidade de talentos.
Mas a verdade é que a veneração dos "especialistas" tem vindo a ser
uma norma no mercado laboral desde há 200 anos. E, tal como advertia o
arquitecto e inventor futurista Richard Buckminster Fuller –
presidente da MENSA, a famosa e mais antiga associação de génios – e
famoso também por exortar contra a especialização, Krznaric também o
faz, argumentando que este culto "rouba" uma parte essencial do ser
humano: a fluidez da personalidade e a sua multiplicidade.
Num excerto do livro republicado na BrainPickings, o autor escreve:
"A especialização pode ser óptima caso se possua competências
particularmente indicadas para determinada área ou se existir uma
paixão por um determinado nicho, sendo que, e obviamente, possui
também o benefício de a pessoa em causa se sentir orgulhosa por ser um
especialista. Mas existe também o perigo de o especialista se tornar
insatisfeito, dada a repetição inerente a muitas profissões
especializadas. Adicionalmente, a nossa cultura de especialização
entra em conflito com algo que muitos de nós reconhecemos
intuitivamente, mas que os conselheiros de carreira só agora estão a
começar a perceber… O facto de termos talentos, valores, interesses e
experiências multifacetadas e complexas, o que também significa que
nos podemos sentir completamente realizados enquanto web designers, ou
como polícias ou a gerir uma mercearia de produtos naturais".
A vocação não é algo que encontramos, mas que cultivamos
"Sem trabalho, toda a vida começa a apodrecer, mas quando o trabalho é
feito sem alma, a vida asfixia e morre", escreveu Albert Camus, citado
por Krznaric. E encontrar um trabalho com alma transformou-se em uma
das grandes aspirações da nossa era. E, como escreve o autor, temos de
reconhecer que "uma vocação não é algo que descobrimos, mas que
cultivamos".
Krznaric afirma que, geralmente, as pessoas encaram a vocação como
algo "para o qual nascemos". Mas o autor prefere uma definição
diferente, algo mais próximo às origens históricas do conceito: "uma
vocação é uma carreira que não só nos oferece um sentimento de
realização – com significado, que nos 'faz correr' e sentirmo-nos
livres – mas que possui igualmente um objectivo conclusivo ou um
propósito claro pelo qual lutamos, o qual conduz as nossas vidas e nos
motiva a sairmos da cama pela manhã".
Em termos históricos, este desejo por um trabalho que nos preencha,
que ofereça um sentimento profundo de propósito e que reflicta os
nossos valores, paixões e personalidade, é uma invenção moderna. Como
relembra o autor, ao longo de muitos séculos, a maioria dos habitantes
do mundo ocidental esteve demasiado ocupada a lutar para ir ao
encontro das suas necessidades de sobrevivência, não tendo sequer
tempo para se preocupar em encontrar uma carreira na qual pudesse dar
uso aos seus talentos ou que contribuísse para o seu bem-estar
interior. Mas na actualidade, e "com a disseminação da prosperidade
material, as nossas mentes ficaram mais libertas para esperar muito
mais daquilo que é a aventura da vida", escreve.
Nesta "troca" do dinheiro pelo significado, Krznaric sublinha as duas
principais aflições do local de trabalho moderno – "a praga da
insatisfação laboral" e a "incerteza sobre como escolher a carreira
certa".
E enquadra a problemática a partir de duas abordagens possíveis. A
primeira, que intitula de "sorri e aguenta" representa a noção de que
devemos controlar as nossas expectativas e reconhecer que o trabalho,
para a vasta maioria das pessoas, é uma rotina pesada e que sempre o
será. Voltando às raízes históricas, o autor recorda que a palavra
"labor" vem do latim e significa fadiga ou labuta, sendo que a palavra
francesa "travail"deriva de tripalium, um antigo instrumento romano de
tortura, feito com três paus. E esta é mensagem subjacente à abordagem
do "sorri e aguenta", que significa que há que aceitar o inevitável,
fazer qualquer que seja o tipo de trabalho que encontremos desde que
este satisfaça as nossas necessidades financeiras e, na melhor das
hipóteses, nos deixe tempo livre suficiente para gozar a nossa "vida
real" fora dos constrangimentos dos horários laborais. A melhor forma
de vivermos com esta realidade, diz Krznaric, é a partir da filosofia
da aceitação e da resignação.
Todavia, o filósofo afirma que é possível enveredar por uma segunda
abordagem e aspirar a algo mais do que um "trabalho normal" cuja
função principal é a de pagar as nossas contas.
Olhando para a história recente, o autor identifica dois momentos
cruciais que contribuíram substancialmente para a conceptualização da
cultura laboral moderna: a emancipação feminina a qual, a seu ver,
consistiu numa vitória acompanhada por diversos dilemas tanto para as
mulheres como para os homens, na sua tentativa de encontrarem um
equilíbrio para as exigências da vida familiar e das carreiras que
ambicionam e, uma hipótese menos explorada, a (in)capacidade de
encontrarmos um verdadeiro "chamamento" no modelo industrial da
educação:
"A forma como a educação nos pode aprisionar em determinadas carreiras
ou, pelo menos condicionar substancialmente o caminho que percorremos,
não seria tão problemática se fossemos excelentes juízes dos nossos
futuros interesses e singularidades". Ou seja, Krznaric interroga, não
sendo de todo pioneiro na questão, que aos 16 anos ou até na casa dos
vinte, o que é que sabemos sobre que tipo de carreira irá estimular a
nossa mente ou oferecer uma vocação com significado? Para o filósofo,
a ausência de experiência de vida – e de nós mesmos – não nos permite
tomar uma decisão inteligente, mesmo com a ajuda dos melhores
conselheiros de carreira.
Significado e propósito ou o que idealmente deveria definir o trabalho
Krznaric identifica cinco chaves cruciais que oferecem significado ao
trabalho ou à carreira: ganhar dinheiro, atingir um determinado
status, fazer a diferença, seguir as nossas paixões e utilizar os
nossos talentos. Mas demonstra também que nem todos estes elementos
são criados de forma igualitária.
Concordando com os movimentos zen que surgiram na década de 1970 e
tendo em conta a proliferação de estudos sobre a relação directa entre
dinheiro e felicidade das últimas décadas – que defendem que o
primeiro, por si só, é um motivador pobre para atingir a segunda –
Krznaric cita também o trabalho do filósofo alemão Arthur Schopenhauer
(1788-1860), cujo livro mais conhecido "The World as Will and
Representation", defendia que o mundo em que vivemos era conduzido por
uma contínua insatisfação. Krznaric dá razão a Schoppenhauer quando
este afirmava que o desejo pelo dinheiro estava disseminado, mas
discorda da premissa em que este o relacionava directamente com a
felicidade. A ausência de uma relação clara e positiva entre o aumento
de rendimentos e o aumento de felicidade tem sido um tema sobremaneira
explorado pelas ciências sociais modernas. E as evidências
provenientes destes estudos comprovam, assim, que o dinheiro como
motivador constitui "o primeiro profeta falso da realização pessoal".
O segundo é, para o autor, o prestígio: "podemos facilmente vermo-nos
a seguir uma carreira que a sociedade considera prestigiante, mas na
qual não nos devotamos intrinsecamente a nós mesmos". E Krznaric
adiciona à expressão 'prestígio + status', o "respeito", o qual define
como "ser-se apreciado por aquilo que pessoalmente imprimimos ao
trabalho e sermos valorizados por esse contributo" – exortando para
que "na nossa cruzada para encontrarmos um trabalho que nos realize,
devermos procurar um que nos ofereça não só boas perspectivas de
status, mas também boas perspectivas de respeito".
"Em vez de termos a esperança de criar uma união harmoniosa entre a
procura do dinheiro e dos valores, talvez fossemos mais afortunados se
procurássemos antes uma combinação de valores com talentos", escreve.
E, tal como Aristóteles afirmava, "é no ponto onde as necessidades do
mundo e os seus talentos se cruzam que se encontra a vocação".
Ou tal, como o ditado atribuído a Confúcio nos ensina, "escolha um
trabalhe que ame e nunca terá que trabalhar um único dia da sua vida".
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