# Precisamos é de bicicletas
para tomar uma decisão de vida sempre adiada. E queixamo-nos de falta
de meios para, então sim, levar a cabo aquela transformação necessária
ou aquela viragem desejada ou, mais adiante ainda, aquela
concretização que indefinidamente protelamos. Contudo, as verdadeiras
transformações inventam os meios próprios para se expressarem, e
estes, regra geral, começam por ser espantosamente modestos. Fernando
Pessoa, com a caricatura dos que "conquistam o mundo sem levantar-se
da cama", refere, no fundo, uma doença interior infelizmente muito
comum: idealizamos de tal maneira o que pode ser a vida que ela perde,
depois, o jogo por falta de comparência, sequestrada num plano cada
vez mais mental e abstrato. Se a vida não decorre como imaginamos,
baixamos as persianas e preferimos não vivê-la. Ora, se não estamos
dispostos a aprender com a sabedoria dos pequenos passos e com a
dinâmica do provisório dificilmente alcançaremos o segredo da alegria.
Penso em dois grandes pulmões espirituais na Europa que nos está mais
próxima: Taizé e Bose. Taizé é uma minúscula povoação que fica a 390
Kms a sudeste de Paris. Em 1940, era uma espécie de zona de demarcação
entre a França ocupada pelas tropas alemãs e a França livre.
Precisamente nesse ano chega a esse lugar um jovem teólogo suíço,
Roger Schutz. Ele vinha buscando, dentro de si, qual seria a sua
missão. E não tinha encontrado ainda respostas. O que é engraçado é
que a primeira vez que ele chegou a Taizé, fê-lo de bicicleta (veio a
pedalar desde Genebra). Poderia ser só um passeio ou uma fuga para
lugar nenhum. Taizé não tinha nada, mas ele entendeu esse nada como
uma oportunidade para "reparar" as feridas da humanidade. Dois anos
depois é expulso dali, porque os alemães perceberam que ele auxiliava
os judeus perseguidos. Mas em 1944 ele regressa, e traz já consigo um
pequenino grupo de jovens da sua idade, movidos pelo ideal de
construir e viver uma experiência monástica, na frugalidade, no
silêncio, no louvor e no acolhimento. Hoje largos milhares de jovens
caminham para Taizé como se buscassem uma fonte refrescante. E o
testemunho do Irmão Roger tornou-se uma inspiração de que não
precisamos de aviões a jato ou de veículos sofisticados para descobrir
o mapa do coração. Basta-nos uma bicicleta, ou menos ainda.
Bose, por sua vez, fica no Norte da Itália, entre Turim e Milão, no
território montanhoso de Biella. No ano de 1968, época de tantas
mutações e reivindicações, há um jovem estudante de economia que
decide começar uma experiência monástica num pequeno monte periférico.
Àquela época não tinha eletricidade, nem água canalizada. Por mais de
dez anos ele viveu nessa solidão, fiel à oração e ao trabalho manual.
Ele conta, por exemplo, que durante o inverno uma das suas tarefas era
não deixar apagar a lareira, que lhe servia para tudo: cozinha,
iluminação, aquecimento. Hoje, com graça, ele conta que tudo o que
sabe sobre Deus e sobre o amor ao mundo, o deve ao fogo (ou melhor, a
essa vigilância ativa para não deixar se apagar o fogo). Muitas vezes
achamos que precisamos de mais isto e aquilo, quando, no fundo,
precisamos é de aprender a tornar fecundo o nosso ponto de partida
(seja ele qual for).
José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira)
14.08.11
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