http://www.ionline.pt/artigos/portugal/cada-vez-mais-condenados-fazem-trabalho-comunitario/pag/-1
Homens e mulheres apanhados em flagrante delito a quem os tribunais
substituíram multas e penas de prisão porajuda ao próximo. Só no ano
passado a Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais registou
mais de 3 mil casos
Uma operação Stop no sítio do costume na Av. Dom Carlos I, em Santos,
depois de um jantar de curso oferecido por um laboratório
farmacêutico. Um polícia, o sopro no balão e o veredicto: demasiado
álcool para guiar. A vergonha, o tribunal às 9h da manhã, uma senha
para esperar vez. A culpa. "Estar naquela sala horrível, ninguém fala
com ninguém, sente-se o ambiente de crime, apesar de não ser muito
diferente da sala de espera de uma Loja do Cidadão". Marta Ribeiro,
dentista, que acabou condenada a 80 horas de trabalho em favor da
comunidade, lembra-se de tudo como se fosse hoje.
Todos os condenados se lembram de tudo como se fosse hoje. E todos,
são alguns. Todos são cada vez mais. Cadeias sobrelotadas, falta de
dinheiro e juízes cada vez mais sensibilizados para as questões
sociais e para poupar recursos ao Estado optam por substituir penas de
multa ou de prisão por trabalho comunitário. As instituições que os
acolhem, quase sempre, agradecem. Os voluntários à força nunca mais
esquecem.
Dados fornecidos pelo Ministério da Justiça ao i e actualizados pela
Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais à data de 13 de
Outubro de 2013, mostram mais de três mil condenações, contra menos de
900 em 2008. A maioria vem substituir pequenas penas de prisão e o
restante resulta da conversão de euros em horas de dedicação ao
próximo.
O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado em câmaras
municipais, juntas de freguesia, na Cruz Vermelha, na Santa Casa da
Misericórdia, no Instituto Português da Juventude, em associações de
bombeiros, no Jardim Zoológico, em escolas, hospitais e num sem número
de IPSS Instituições Particulares de Solidariedade Social.
Augusto Coutinho e Manuel Ramos estão ambos no Banco Alimentar, em
Alcântara, Lisboa. Bem perto do local que, durante anos, lhes
alimentou o problema: o Casal Ventoso. Foram ambos condenados a penas
de prisão, que o tribunal acabou por substituir pelo cumprimento de
horas de trabalho comunitário. Mas hoje já não cumprem pena, é ali, no
armazém da Avenida de Ceuta, o seu local de trabalho. Recebem perto de
730 euros mensais, incluindo subsídio de almoço.
"Fui a julgamento por roubo", conta Augusto Coutinho. "Tive problemas
de toxicodependência e era uma maneira de arranjar dinheiro". Roubava
em supermercados, sobretudo lâminas de barbear e perfumes caros, que
depois vendia na Feira da Ladra a metade do preço "ou naquelas
mercearias mais pequenas que, desde que nos conheçam, também compram".
"Isto [roubar] é um hábito. Só que a ganância... É fácil de mais e uma
pessoa tantas vezes vai lá que alguma vez é apanhado". E foi. Com mais
de 200 euros de mercadoria. Um dia um segurança barrou-lhe a saída e
acabou na esquadra da PSP de Carnaxide. "Deram-me a hipótese de pagar
tudo, mas era impossível, não tinha dinheiro". Ficou retido apenas
algumas horas. "Assinei um compromisso em como no dia seguinte iria ao
Tribunal de Oeiras, uma coisa um bocado ridícula. Não compareci, o que
também é crime, mas um advogado acabou por me livrar desse processo.
Uma pessoa com dependência assina qualquer papel para sair da
esquadra, como é evidente".
Veio o mandado de captura e acabou a fazer trabalho comunitário,
"qualquer coisa entre 45 a 50 horas". O Banco Alimentar não foi a
primeira instituição para onde foi, antes tinha estado nos Bombeiros
de Algés. Não resultou. "Talvez eles também não soubessem muito bem
como se processam as coisas", admite Augusto. "Eu chegava lá, assinava
a folha de presença e andava por ali... Acabei por me desinteressar".
Já lá vai um tempo, mas há duas frases que ouviu da assistente social
Ana Vara e nunca mais esqueceu. "Uma delas foi que 'tudo o que está
aqui no banco são pedras'. O significado disto é que são coisas em que
não se podem tocar - explica -, são coisas que não estão aqui para
nós, são para ser distribuídas. Pode parecer chavão, mas foi uma coisa
que me marcou. A outra foi quando me disse para não encarar este
trabalho como uma pena. Se calhar foi por causa disso que eu fiz as
horas e nem notei".
Manuel Ramos tem mais ou menos a mesma idade, 47 anos, e a sua
história não é muito diferente. "Fui parar a tribunal por causa de
furtos. Tinha de ganhar a vida..." Pois tinha, "para o vício". "Houve
um julgamento, o juiz deu-me ordem de prisão e eu falei com ele a ver
se me dava antes trabalho comunitário. Perguntou-me onde morava, eu
disse Alcântara, e sugeriu-me o Banco Alimentar. Respondi 'vou já
hoje!'" Começou a "trabalhar" no dia seguinte.
Antes disso foi apanhado muitas vezes. Roubava tinteiros para
impressoras que "vendia na candonga" por metade do valor de mercado,
porque "o vício custa muito dinheiro a alimentar". Manuel chegou estar
preso e até a ser julgado à revelia. "Um dia foram-me buscar", conta.
"O juiz deu-me perto de 400 horas horas de trabalho, sei que andei
dois meses das 9h às 18h. Fora os processos que foram aparecendo,
ainda paguei três multas, uma de 400, outra de 600, outra de 700
euros. Mas tive de pagar aos bochechos, não havia outra solução".
Chegou cheio de vontade de trabalhar. É ladrilheiro de profissão e de
vez em quando ainda faz "uns biscatezinhos". "Fui gostando das
pessoas, as pessoas foram gostando de mim, e acabei por cá ficar".
Quando chegou ninguém disse que espécie e voluntário era o Manuel. Era
um como outro qualquer. "Mas as pessoas não são parvas, vêem", diz com
ar malandro. E reconhece os que chegam na mesma situação?
"Reconheço-os logo. E pergunto: então, portaste-te mal?... (risos).
Eles contam a história deles, não sei se é verdade se é mentira. Tenho
especial simpatia por eles e eles também têm por mim. Estão sempre a
perguntar-me se preciso de ajuda e muitos deles só vêm aqui para
estorvar, mas não faz mal nenhum. Dá ânimo ajudar as pessoas".
Teria sido diferente se tivesse ficado preso? "Ai tinha, tinha. Das
vezes que estive preso sentia revolta, porque uma pessoa estava
habituada a uma vida e, de repente, sente-se enjaulado. Eu nesta
altura já estava a querer mudar de vida". Mas a vida nem sempre ajuda.
Estive no EPL - Estabelecimento Prisional de Lisboa, na Marquês da
Fronteira, e em Tires. "A EPL não tem condições, é percevejos e
baratas. Tires é mais requintada (risos), tem casa de banho dentro da
cela - camarata". Aconteceu porque deixou processos pendurados uns
atrás dos outros. Uma manhã, "estava a tomar o pequeno-almoço num café
e chega a carrinha com uns paisanas a dizer que tenho uns processos lá
em baixo para assinar. Eu disse logo à minha ex-mulher: é um mandado
de captura, vêm quatro, cercam um gajo, que é para o gajo não fugir.
Nesse dia nem tomei a metadona. Uma pessoa, logo de manhã, habituada a
tomar aquilo, começa a sentir-se mal, não é mal, mal, mas sente a
falta daquilo".
Agora, aquilo, tirando uns charritos de vez em quando, é passado. A
mãe, que é de Idanha-a-Nova, mandou os mil euros para pagar a multa,
saiu da prisão, cumpriu outras penas a fazer trabalho em favor da
comunidade e está feliz. Ainda assim, às vezes sente "uma frustração e
ainda é pior quando me lembro do dinheiro que gastei. É horrível".
Também nunca mais roubou. "Não voltei a roubar nunca mais, até parece
que me dá uma coisa. Às vezes vou ao supermercado, oiço as barreiras a
apitar e começo logo a tremer. E eu fazia aquilo na boa. Precisava...
Sabe como é, o vício é lixado".
Mas tem recebido muita ajuda das pessoas do Banco Alimentar, que sente
como a sua família. "Passados uns meses de aqui estar perguntaram-me
onde morava. Eu não queria dizer, que é mesmo assim, estava a morar
num sítio que não era meu, estava a ocupar um espaço, ao pé das bombas
da Repsol, numa fábrica de pólvora. Estive aí a morar seis anos, eu e
outros. Ocupei aquilo e para o fim foi lá uma companhia de rua mais a
polícia, bater à porta. Eu tinha feito um avançado, com uma vidraça,
parecia que estava num palácio. Quando entraram até disseram: 'eh,
senhor Manel, você tem lareira, tem um quadro para a luz... De onde
vem a electricidade?' Vem do poste, disse eu. Tinha feito uma puxada e
tinha água dentro do quintal, um poço de quinze metros de fundo...
Contei metade da história, só metade, e acabaram por me arranjar uma
casa, pagaram-me os materiais e eu fiz as obras. Está toda
arranjadinha, com as cores da moda, o amarelo alperche e o rosa
morango".
O Manuel diz que tem confiança em si próprio e não mexe em nada. "Se
vejo alguma coisa entrego, muitas vezes acho aqui carteiras ou
telemóveis e vou entregar. A má vida era a má vida, agora isto é outra
vida e gosto mais desta".
Mas não é preciso ser-se toxicodependente ou ladrão para ser condenado
a fazer trabalho em favor da comunidade. Também há miúdos que apanham
pifos e destroem propriedade pública ou privada, incendeiam caixotes
do lixo ou espicham paredes. Ou histórias como a de Marta Ribeiro,
agora já dentista. Nunca tinha sido apanhada a fazer nada, não tinha
cadastro e era responsável, "não sou propriamente delinquente. Fui
condenada a 120 dias de multa a 5 euros. Para mim não fez sentido o
país estar no estado em que está e eu pagar em dinheiro. Isso
incomodou-me. Eu estava arrependida mas não me apetecia pagar e pedi
para converter a multa em trabalho comunitário. Foi aceite e
converteram a multa em 80 horas de trabalho comunitário. Quando me
enviaram a carta, que ainda demorou, fui ao Dafundo, à Direcção-Geral
da Reinserção e Serviço Prisionais. Deram-me a escolher entre várias
instituições perto de casa, porque sabiam que ia ficar sem carta,
embora não se soubesse quando. Acabei na Entrajuda a fazer rastreio
dentário em diversas instituições de solidariedade social e comecei a
gostar do projecto".
O Luís, 53 anos, gestor de uma multinacional, também foi apanhado a
conduzir com excesso de álcool e integrou um programa semelhante, mas
na sua área de actividade. Ainda hoje as instituições por onde passou
- e continua a passar como verdadeiro voluntário - utilizam os
procedimentos que implementou a nível contabilístico, serviços
prestados e organização e métodos.
Mas também há juízes que propõem trabalho em favor da comunidade e vêm
a sua sugestão rejeitada. João Libério está entre os raríssimos casos
que considerou uma ofensa o Estado dispor assim dos seus conhecimentos
para "obter mão-de-obra barata" e recusou liminarmente qualquer
hipótese de trabalho comunitário. Pagou a taxa.
--
---
Recebeu esta mensagem porque está inscrito no grupo "Pensantes" dos Grupos do Google.
Para anular a subscrição deste grupo e parar de receber emails deste grupo, envie um email para
pensantes1+unsubscribe@googlegroups.com.
Para mais opções, consulte
https://groups.google.com/groups/opt_out.