De que falam os não crentes a uma plateia de católicos? De crise e de
muita solidão
MARIA JOÃO LOPES
19/01/2015 - 08:39
http://www.publico.pt/sociedade/noticia/de-que-falam-os-nao-crentes-a-uma-plateia-de-catolicos-de-crise-e-de-muita-solidao-1682640?page=-1
Idosos que morrem em casa sem que ninguém se aperceba. O
"totalitarismo" da economia. O futuro como "dimensão cancelada do
tempo". O "silêncio dos sensatos". Os não crentes inquietaram os
católicos – que querem ser desafiados, porque "a fé não é um refúgio
apaziguador".
"Se é mulher e não procura a felicidade, nem amorosa, sexo ou
esperança, se apenas deseja morrer, mas não em solidão, ligue-me." O
anúncio vinha num jornal e saltou à vista do sociólogo José Machado
Pais. O professor universitário levou um dos seus temas de eleição, a
solidão, à iniciativa Escutar a Cidade, que arrancou na quinta-feira
em Lisboa e se prolonga até Junho. A ideia é que não crentes digam o
que esperam da comunidade cristã. José Machado Pais falou da sua
solidão, da dos outros e recuperou a história da amizade que fez com
um sem-abrigo. "Não se deixa um amigo na rua", contou.
A música Jesus' Blood Never Failed Me Yet, no começo, enche a sala, a
pedido do antropólogo, teólogo e compositor Alfredo Teixeira. Uma peça
musical criada pelo contrabaixista Gavin Bryars, que fez um arranjo a
partir da voz de um sem-abrigo. Na versão que se ouve no encontro
junta-se a de Tom Waits.
"A voz não vem de um concurso de talentos, não corresponde aos
estereótipos comerciais nem aos padrões de beleza mais reconhecidos. O
paradoxo de uma voz banal, frágil, que transporta uma narrativa cristã
de confiança", diz Alfredo Teixeira acerca deste "canto que vem da
rua, mantido na sua crueza". Uma voz anónima que não chegou a ouvir a
música criada. Quando Gavin Bryars procurou aquele homem, já tinha
morrido.
Acto simbólico: uma voz anónima começa a dar espessura à conferência.
Esta termina com a história da amizade entre um sem-abrigo e José
Machado Pais, autor, entre outras obras, do livro Nos Rastos da
Solidão. Deambulações Sociológicas (2006), que já fez correr muita
tinta. Nem sempre os oradores, entre os quais o crítico literário
António Guerreiro e a psicóloga social Benedita Monteiro, deixam
mensagens directas à Igreja. Alguns levantam questões, desafios,
reflexões relacionadas com a sua área de trabalho.
José Machado Pais, por exemplo, recorda os idosos que vivem sozinhos.
"Sabiam que uma boa parte dos cadáveres que ficam nas morgues sem que
ninguém os reclame são de idosos? Dá que pensar." Lembra as páginas
que a imprensa escreve, volta e meia, sobre quem morre em casa e, em
alguns casos, só se descobre muito depois pelo "cheiro da morte".
Inês, conta, esteve morta numa banheira mais de três anos. Nenhum dos
cinco filhos a procurou, nem os vizinhos. As cartas e a publicidade
amontoaram-se na caixa do correio. Os sinos decorativos continuaram
pendurados à porta, como se fosse Natal há três anos.
Numa outra história, de que não se esqueceu, as contas da água e da
luz deixaram de ser pagas, o Estado penhorou a casa. Foi assim que se
descobriu que uma pessoa "jazia na cozinha, com dois pássaros mortos
na gaiola e o esqueleto do seu cão" ao lado. Durante nove anos.
Nenhum livro ensinou tanto a Machado Pais o que é a solidão como a
resposta que um sem-abrigo lhe deu. Passou as mãos pelas "longas
barbas" e disse-lhe: "A solidão é um sentimento que as pessoas têm no
coração. Normalmente, parte de um sentimento, está em nós. O que
interessa é senti-la de facto, não é expressá-la por palavras. Mas
senti-la no nosso próprio ser, naquilo que somos." Machado Pais já
falou muitas vezes destas histórias, que recolheu nas ruas, e que o
fizeram escrever Nos Rastos da Solidão, mas fez questão de
recuperá-las neste encontro dirigido aos católicos.
Remorsos
Há tempos, o docente doou um casaco usado a um sem-abrigo: "Agora,
sempre que passo pelo meu velho casaco, invejo-o pela relação de
intimidade que tem com o sem-abrigo. Lamento não poder fazer a
biografia da nova vida do meu velho casaco para lhe descobrir a nova
identidade e, sobretudo, a identidade de quem o veste."
Entre os sem-abrigo que já conheceu, lembra-se particularmente de
José, que frequentava a Igreja São João de Deus, em Lisboa, e a quem
dedicou Nos Rastos da Solidão. Andava sempre com a Bíblia no bolso do
casaco, não tinha relógio, mas era bastante pontual na hora das
missas. Teve alguns internamentos no hospital Júlio de Matos e, numa
dessas vezes, Machado Pais soube quando iria ter alta hospitalar. O
professor quis garantir-lhe um sítio para dormir, informou-se e
disseram-lhe que José poderia ir para o Centro de Acolhimento de
Xabregas.
Agora que tinha saído do hospital, queria dar-lhe um abraço. Foi
procurá-lo, sabia que o encontraria na igreja. O hospital tinha-lhe
dado um fato, até tinha um lenço "aristocrático" na camisa.
Perguntou-lhe: "José, onde vais dormir?" "Por aí", respondeu-lhe. O
sociólogo falou-lhe do centro de acolhimento. José aceitou. Apanharam
um táxi e foram para Xabregas. "Lá chegados, o olhar vivo do José
começou a olhar à volta, tudo tentando captar. Nisto, dois homens
começaram a discutir e logo depois agrediram-se a soco. José ficou
nervoso e em silêncio. Vira-se para mim e diz-me 'Como é que eu vou
daqui à igreja? Fica muito longe.'"
Não quis ficar. Chamaram novamente um táxi. "Onde queres ficar, José?"
"Ao pé da minha igreja." Eram já quase nove da noite e Machado Pais
tinha de regressar a casa para terminar um trabalho. Deixou José lá,
como ele tinha pedido, em frente à igreja. Abraçaram-se e o professor
afastou-se. "Ele ficou imóvel, em silêncio e, de vez em quando,
dizia-me adeus. Começou a cair uma chuva miudinha. Cada vez mais
persistente. Acelerei o passo como se fugisse de mim mesmo. E cheguei
a casa, como dizer? Com a alma cheia de remorsos. Tinha deixado um
amigo na rua. E não se deixa um amigo na rua. Nessa noite fui
invadido, eu próprio, por um sentimento de solidão. Dei voltas na cama
e não consegui dormir. Com José, descobri que solidão é um desencontro
com outros ou com nós mesmos."
No início do encontro, o jornalista Jorge Wemans, que faz parte do
grupo de organizadores católicos, diz que estão ali para ouvir os não
crentes e para serem desassossegados por eles. "Na profundíssima
desestruturação social, cultural e societária em que nós, os
católicos, participamos e de que também somos autores, a fé não é um
refúgio apaziguador, um abrigo confortável de auto-ajuda, mas sim uma
companheira sempre inquieta e insatisfeita, capaz de apontar o
intolerável, firmar valores e inspirar comportamentos e atitudes, de
gerar respostas em contracorrente e de manifestar o repúdio do
inaceitável."
A iniciativa Escutar a Cidade inclui um conjunto de encontros mensais,
até Junho, sempre a uma quinta-feira, entre as 19h e as 21h, no Forum
Lisboa. Organizado por um pequeno grupo de católicos, entre os quais
se encontram António Marujo, autor do blogue Religionline, Jorge
Wemans, e a professora aposentada da Escola Superior de Educação de
Lisboa Conceição Moita, conta com o apoio de mais de vinte
associações, movimentos e congregações religiosas. "Neste processo
cabe aos católicos ouvirem, acolherem e meditarem no que lhes é
comunicado", lê-se no texto de apresentação da iniciativa, que se
insere no Sínodo da Diocese de Lisboa. As sínteses de cada encontro
serão entregues ao secretariado do Sínodo e "poderão ser pontos de
partida para reflexões posteriores de grupos e comunidades".
O próximo é a 12 de Fevereiro. Será sobre Política, participação e
democracia e tem confirmados os nomes do jornalista João Pacheco, do
docente universitário Viriato Soromenho-Marques, da ex-deputada e
socióloga Ana Drago e da deputada socialista e presidente da Junta de
Benfica Inês Drummond. Nos meses seguintes, os temas serão Dinâmicas
Sociais (Nascer, ser jovem, envelhecer), com o geógrafo João Serrão, a
filósofa Olga Pomba, a psicóloga Maria Saldanha Ribeiro e a demógrafa
Teresa Rodrigues; Pobreza, emprego e crise financeira; Ciência e
conhecimento; e Linguagem, espiritualidade(s), sexualidades e
convicções.
"Crise é forma de governo"
O primeiro orador deste encontro foi o crítico literário António
Guerreiro. Partem dele as interpelações mais directas à Igreja: "A
experiência deste tempo, do nosso tempo, não é qualquer coisa que a
Igreja se possa dar ao luxo de escolher, escolher comprometer-se com
ele ou escolher não se comprometer com ele."
Guerreiro usou o vocabulário dos "lugares-comuns": crise, economia,
futuro, modo de vida, política, precariedade e trabalho. "A crise, tal
como ela nos é apregoada hoje, tornou-se uma forma de governo, pura e
simplesmente. Uma forma de dominação e uma forma de governar. É um
método, uma questão metodológica para governar. Através desta espécie
de palavra de ordem que é a crise, o que nos é dito é que o estado de
excepção se tornou regra." Sobre a economia, considerou que esta
"estendeu o seu poder a todos os domínios" da vida social e política:
"Não há nada hoje que se escape à economização integral das relações
humanas. E este totalitarismo da economia tem tido um efeito
absolutamente nefasto que é o da despolitização generalizada da
sociedade. A hegemonia do económico faz com que a vida política e a
governação política se tenham tornado meramente gestionárias. Gerir
aquilo que existe e, portanto, anular todo o campo das
potencialidades." Citou O Capitalismo Como Religião, de Walter
Benjamin, recordando que o filósofo dizia que o capitalismo precisava
de ser visto e analisado como religião: "Era a mais feroz e a mais
fundamentalista das religiões, porque não conhecia pausas, dias
feriados e também não conhecia o princípio da redenção."
António Guerreiro não esquece o tempo futuro, por ser "aquilo de que,
de alguma maneira, fomos espoliados: hoje alguém na casa dos 20 ou dos
30 anos não projecta absolutamente nada no futuro. O futuro é uma
dimensão que foi cancelada do tempo." E "para se compreender o que
significa a palavra futuro é preciso antes saber o que significa uma
outra palavra que estamos habituados a usar apenas na esfera
religiosa, que é a palavra fé": "Sem fé ou crença, não é possível o
futuro, há futuro somente se podemos esperar ou crer em algo."
E recorda uma afirmação de Hannah Arendt, de 1958, que considera
espelhar o que se passa: "O que temos à nossa frente é a perspectiva
de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho. Isto é, privados da
única actividade que lhes resta. Não podemos imaginar nada de pior."
Como não pretende, porém, "fazer o elogio do trabalho", António
Guerreiro defende que é necessário "pensar para além da sociedade de
trabalho". Reclama que a Igreja o faça. Que tente "pensar para além
deste totalitarismo que é o da sociedade do trabalho": "A Igreja sabe
muito bem o que é ócio, o lazer, a contemplação, sabe muito bem o que
significa o trabalho como servilismo."
Entre os não crentes convidados, está ainda Maria Benedita Monteiro,
professora do ISCTE, hoje agnóstica, apesar de ter tido "uma educação
cristã conservadora" e "uma adolescência e juventude católica
militante" em várias instituições e movimentos. Mas depois entrou na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, envolveu-se na
associação académica, fez leituras, teve discussões com colegas,
ganhou "consciência de que havia uma situação política em Portugal nos
anos 1960, a guerra colonial, a revolta estudantil de 1962, a passagem
curta pela prisão", a assinatura de manifestos de católicos e não
católicos contra a ditadura. Demasiadas inquietações e interrogações
que lhe valeram "avisos" da Igreja Católica.
O primeiro foi em 1959: "Dado o seu envolvimento em actividades de
natureza política naturalmente prejudiciais à sua função de boa
catequista desta paróquia fica dispensada desse serviço". O segundo
foi em 1962: "Dado o seu envolvimento em actividades de natureza
política condenadas pela Igreja, deve fazer a sua opção. Ou continua
na Juventude Universitária Católica Feminina e se desliga da
Associação Académica desta faculdade ou devolve o seu emblema e
considera-se fora deste movimento católico".
Benedita Monteiro devolveu o emblema. E continua com inquietações até
hoje. Di-lo, no início da sua intervenção, sobre temas como o futuro
da juventude, o que pensam os jovens, imigração, discriminação. No
fim, repete: preocupa-a "o silêncio dos sensatos".
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