# A vida como culto, como cultura e como cultivo
fez; queixamo-nos de doenças de que não padecemos; aspiramos a ideais
alheios e sonhamos os sonhos dos outros. Não há exagero, é mesmo
assim: quase todos os nossos projetos de felicidade são quiméricos. As
ideias que afirmamos acariciar não são nossas; as nossas aspirações
são as dos nossos pais e até nos apaixonamos por pessoas de quem, na
verdade, não gostamos. O que nos terá acontecido para sucumbirmos
diante desta impostura? Ando atrás de alguma coisa que, no fundo, não
desejo. Luto por algo que me é indiferente. Possuo uma casa que é
permutável com a do vizinho. Faço uma viagem e não vejo nada. Vou para
férias e não descanso. Leio um livro e de nada me inteiro. Ouço uma
frase e sou incapaz de repeti-la. Como é possível que não me comova
diante de um necessitado, que não responda quando me perguntam, que
olhe sempre para o outro lado e não esteja onde de facto estou?
Diante desta situação absurda, vou deter-me, vou pensar, respirar e,
se possível, nascer uma segunda vez. Não estou disposto a não dançar
quando ouvir a flauta, ou a não comer quando me oferecem um manjar, ou
a armazenar para amanhã quando há quem não tenha para hoje. Também não
estou disposto a pensar que sou o centro do mundo, nem a supor que o
meu é o melhor, nem a martirizar-me com problemas diminutos ou dores
imaginárias. É lamentável ter chegado a este ponto de inconsciência,
de idiotice, a este ponto de insensibilidade, a este extremo de
avareza, de soberba, de preguiça... O mundo não é um pastel que eu
tenha de comer. O outro não é um objeto que eu posso utilizar. A Terra
não é um planeta preparado para que eu o expluda. Eu não sou um
monstro de predador.
Por isso, decidi pôr-me de pé e abrir os olhos. Decidi comer e beber
com moderação, dormir o necessário, escrever unicamente o que possa
contribuir para tornar melhor quem o ler; abster-me da cobiça e nunca
me comparar com os meus semelhantes. Também decidi regar as minhas
plantas e cuidar de um animal. Visitarei os doentes, conversarei com
os solitários e não deixarei passar muito tempo sem brincar com uma
criança. De igual modo, decidi rezar as minhas orações todos os dias,
prostrar-me algumas vezes diante do que considero sagrado, celebrar a
Eucaristia: escutar a Palavra, partir o pão, repartir o vinho e dar a
paz. Cantar em uníssono. E passear, o que para mim é fundamental. E
acender a lareira, o que também é fundamental. E fazer as compras sem
pressa; saudar os vizinhos, mesmo que não goste da sua cara; fazer um
diário; telefonar regularmente aos meus amigos e irmãos. E fazer
excursões e tomar banho no mar pelo menos uma vez por ano, e só ler
bons livros ou reler aqueles de que gostei.
O que verdadeiramente conta é a pergunta sobre a virgindade
espiritual, sobre a pureza de coração ou sobre a inocência primordial;
todas as outras perguntas são falsas, são falsos problemas.
A meditação – ou deveria dizer, simplesmente, a maturidade? –
ensinou-me a apreciar o comum, o elementar. Por isso, viverei a ética
da atenção e do cuidado. E, assim, chegarei a uma velhice feliz, de
onde contemplarei, simultaneamente humilde e orgulhoso, o pequeno e
grande horto que cultivei. A vida como culto, como cultura e como
cultivo.
Pablo D'Ors
In "A biografia do silêncio", ed. Paulinas
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