http://observador.pt/especiais/estamos-a-criar-criancas-totos-de-uma-imaturidade-inacreditavel/
25 Julho 20157
Rita Ferreira
Quanto mais recreio, mais atenção nas aulas. Quanto menos liberdade
para brincar, maior o risco de acidentes. Carlos Neto, professor da
FMH, explica por que tem de ser travado o "terrorismo do não".
Carlos Neto é professor e investigador na Faculdade de Motricidade
Humana (FMH), em Lisboa. Trabalha com crianças há mais de quarenta
anos e há uma coisa que o preocupa: o sedentarismo, a falta de
autonomia dada pelos pais às crianças e a ausência de tempo para elas
brincarem livremente, correndo riscos e tendo aventuras. É um problema
que tem de ser combatido, diz. Porque a ausência de risco na infância
e o facto de se dar "tudo pronto" aos filhos, cada vez mais
superprotegidos pelos pais, acaba por colocá-los em perigo. Soluções?
Uma delas passa por "deixar de usar a linguagem terrorista de dizer
não a tudo: não subas, olha que cais, não vás por aí…".
Carlos Neto trabalha com crianças há 48 anos
Há dez anos já se falava no sedentarismo das crianças portuguesas.
Lembro-me que dizia que uma criança saudável é aquela que traz os
joelhos esfolados. Como estamos hoje?
Há dez anos nós falávamos que as crianças tinham agendas, hoje digo
que têm super-agendas! Há dez anos eu dizia que as crianças saudáveis
eram as que tinham os joelhos esfolados. Hoje, acho que os joelhos já
não estão esfolados, mas a cabeça destas crianças já começa a estar
esfolada, por não terem tempo nem condições para brincar livremente.
Brincar não é só jogar com brinquedos, brincar é o corpo estar em
confronto com a natureza, em confronto com o risco e com o
imprevisível, com a aventura.
Os joelhos já não estão esfolados, mas a cabeça destas crianças já
começa a estar esfolada, por não terem tempo nem condições para
brincar livremente
As crianças brincam porque procuram aquilo que é difícil, a superação,
a imprevisibilidade, aquilo que é o gozo, o prazer. E, portanto, as
crianças que eu apelido de crianças "totós", são hoje definidas como
crianças superprotegidas, crianças que não têm tempo suficiente para
brincar e crianças que não têm tempo nem espaço para exprimir o que
são os seus desejos. E o primeiro desejo de uma criança é o dispêndio
de energia, é brincar livre e com os outros, mesmo que muitas vezes em
confronto. Porque o confronto é uma forma preciosa de aprendizagem na
vida humana. E nós estamos a retirá-los de tudo isso. Estamos a dar
tudo pronto e não estamos a confrontá-los com nada. E isso terá muitas
consequências.
Estamos a falar de que idades?
Estamos a falar de crianças entre os 3 e os 12 anos. Significa que
aumentou de facto esta taxa de sedentarismo, eu diria mesmo de
analfabetismo motor, estamos a falar de iliteracia motora. Trabalho há
48 anos com crianças e sei avaliar o que se passou. As crianças têm
menos capacidade de coordenação, menos capacidade de perceção
espacial, têm de facto menor prazer de utilizar o corpo em esforço,
têm uma dificuldade de jogo em grupo, de ter possibilidades de ter
aqueles jogos que fazem parte da idade. Ao mesmo tempo,
institucionalizou-se muito a escola. Nós hoje temos as crianças
sentadas durante muito tempo, não há uma política efetiva adequada de
recreios escolares. Os recreios são organizados muitas vezes em função
de um modelo de trabalho, ou de um modelo de funcionamento pedagógico,
que tem a ver mais com as aprendizagens pedagógicas obrigatórias ou
consideradas úteis, e muito menos com as atividades do corpo em
movimento. E, por isso, há alguns trabalhos de investigação que temos
vindo a fazer, onde tentamos mostrar a correlação entre o tempo que as
crianças têm de recreio, a qualidade de atividade que fazem no recreio
e a capacidade de aprendizagem na sala de aula.
"Temos hoje crianças de 3 anos que, ao fim de dez minutos de
brincadeira livre, dizem que estão cansadas, temos crianças de 5 e 6
anos que não sabem saltar ao pé-coxinho. Temos crianças com 7 anos que
não sabem saltar à corda, temos crianças de 8 anos que não sabem atar
os sapatos."
A que conclusões já chegaram?
Uma delas é que as crianças que são mais ativas no recreio, e que têm
mais socialização, têm na sala de aula mais capacidade de atenção e de
concentração. Isto tem a ver com uma tendência que está a acontecer em
quase todo o mundo, de restringir o tempo de recreio para ter mais
tempo na sala de aula. O que nós concluímos é que o tempo de recreio é
absolutamente fundamental para a saúde mental e para a saúde física da
criança. O recreio escolar é o último reduto que a criança tem durante
a semana para brincar livremente. E, de facto, verificamos esta
relação muito clara entre ser ativo no recreio e estar concentrado
dentro da sala de aula.
As crianças mais ativas têm mais capacidade de aprendizagem e mais
capacidade de concentração. E têm, a médio e a longo prazo, mais
capacidade de terem sucesso.
Isto vem ao encontro de algumas investigações que têm sido feitas nos
Estados Unidos, que relacionam o ser ativo com o desenvolvimento do
cérebro e com o desenvolvimento neurológico. E, de facto, demonstra-se
claramente que as crianças mais ativas têm mais capacidade de
aprendizagem e mais capacidade de concentração. E têm, a médio e a
longo prazo, mais capacidade de terem sucesso, mais autoestima e maior
capacidade de autoregulação.
Esta questão dos recreios e do tempo que as crianças têm de passar
sentadas na sala de aula está de alguma forma relacionada com o
aumento dos diagnósticos de casos de hiperatividade? Muitos destes
casos podem ocorrer porque as crianças não despendem a energia física
que é suposto despenderem?
Os currículos hoje estão a ser demasiado exigentes quanto ao número de
horas em que as crianças têm de estar sentadas. Devemos ter um plano
para tornar a sala de aula mais ativa. Acabamos de fazer um programa
com o Ministério da Educação, o Fit Escola, que é uma plataforma que
tem como objetivo ajudar os pais, os alunos e os professores a
tornarem as crianças um pouco mais ativas. E uma das ideias base é
esta: se mudássemos a configuração das mesas e das cadeiras da sala de
aula — estando as crianças a adquirir conhecimentos fundamentais, mas
estando a fazê-lo de forma ativa –, não aprenderiam melhor?
É inaceitável que 220 mil crianças estejam medicadas em Portugal. Isto
não pode acontecer.
Há aqui um fator muito importante que tem a ver com a maneira como os
adultos, professores ou pais, estão neste momento a controlar as
energias das crianças. Numa grande parte dos casos essa energia é
natural, mas é considerada hoje como doença ou inapropriada. É
inaceitável que 220 mil crianças estejam medicadas em Portugal. Isto
não pode acontecer. Tem de haver um maior esclarecimento para
verificar efetivamente se aquelas crianças merecem ser medicadas
porque são de facto hiperativas ou têm défice de atenção. Mas acredito
que uma grande parte dessas crianças não necessita de ser medicada.
Há crianças de 11 anos que entram às 8h15 e saem as 13h15 com apenas
dois recreios de 15 minutos neste espaço de tempo, em que as aulas são
sempre de 90 minutos. Nem um adulto trabalha tanto tempo seguido…
Pois não. Isso é contra natura, não tem a ver com as culturas de
infância. Temos de ter um maior equilíbrio entre o que é uma
estimulação organizada e uma estimulação ocasional, ou seja, entre o
que é tempo livre, tempo de jogo livre, e o que é tempo de organização
académica.
Brincar não é perder tempo, no seu entender…
Não. E por uma razão. Todos os estudos têm vindo a demonstrar que na
infância, até aos 10/12 anos de idade, é absolutamente essencial
brincar para desenvolver a capacidade adaptativa, quer do ponto de
vista biológico quer do ponto de vista social. E hoje não é isso que
estamos a fazer. Estamos a dar tudo pronto, tudo feito, e não estamos
a confrontar as crianças com problemas que elas têm de resolver. Sejam
eles confrontos com a natureza – que deixaram de existir – sejam eles
confrontos com os outros.
Brincar à luta é saudável. É um indicador de vida saudável das
crianças. Como correr atrás de alguém, ou ser perseguido. Brincar é
civilizar o corpo.
Por exemplo, a luta, a corrida e perseguição, são comportamentos
ancestrais que as crianças têm de viver na infância e que são
essenciais para o crescimento. A apropriação do território, a noção de
lugar, o medir forças de uma forma saudável, o brincar a lutar. Hoje
observamos comportamentos na escola, quer por parte dos pais quer por
parte dos educadores, que não são corretos. Porque quando veem duas
crianças agarradas vão logo separá-las — e elas muitas vezes estão a
brincar à luta, e brincar à luta é saudável. É um indicador de vida
saudável das crianças. Como correr atrás de alguém, ou ser perseguido.
Brincar é civilizar o corpo.
Eu não tenho nada contra os exames, nem contra as metas escolares.
Agora, os exames e as metas curriculares não podem impedir que não se
faça uma reflexão daquilo que a criança necessita para crescer de
forma saudável. E, de facto, esta relação entre tempo sentado e tempo
ativo precisa de uma maior reflexão no sistema educativo, sob pena de
termos gravíssimos problemas de saúde pública a curto e a médio prazo.
Nós vamos pagar muito caro o facto de não termos esse equilíbrio entre
estimulação organizada e informal. E quanto mais descemos na infância
pior.
"As crianças brincam porque procuram aquilo que é difícil, a
superação, a imprevisibilidade, aquilo que é o gozo, o prazer. E,
portanto, aquilo a que eu chamo crianças "totós", são hoje definidas
como crianças superprotegidas, crianças que não têm tempo suficiente
para brincar e crianças que não têm tempo nem espaço para exprimir o
que são os seus desejos."
Os adultos, tanto pais como educadores, têm também "culpa" nesta matéria?
Não pode haver uma linguagem terrorista, que é própria dos adultos,
que impede as crianças de viverem certo tipo de situações de risco.
Quer isto dizer que a linguagem e as proibições que vêm das bocas dos
adultos, o não sistemático e persecutório, não permitir que as
crianças tenham certo tipo de experiências que incluem níveis de risco
maiores, só estão a conduzir a um analfabetismo motor e social.
Que tipo de "nãos"?
O "não subas", o "olha que cais", "não vás para ali", "tem cuidado",
"não trepes à árvore". Impedem as crianças de terem estas
experiências, que são próprias da idade. Instalaram-se medos nas
cabeças dos adultos. Medos das crianças serem autónomas. Nós nascemos
para sermos autónomos e para termos, ao longo do processo de
desenvolvimento, maior autonomia e maior independência. Basta ver como
é que as crianças hoje vivem a cidade, como as cidades estão
preparadas para as crianças. Nós estamos a cometer o erro de querer
obter sucessos rapidamente, de querer que as crianças cresçam
rapidamente, de que estejam todos incluídos nos rankings, mas estamos
pouco preocupados com as suas culturas próprias. Não se está a ver o
ator, não se está a ver o aluno. Na escola o que deveria emergir era o
aluno e a criança, o que emerge é o professor e a burocracia.
As crianças andam pouco na rua? Têm pouca autonomia?
Dou um exemplo, os percursos escola-casa. Hoje, a maioria das crianças
faz estes trajetos de carro, quando há 30 anos o faziam a pé. Hoje, as
crianças têm uma vivência do território de forma visual e não de forma
corporal. Quer dizer que as aventuras e as brincadeiras, em contacto
com a natureza, desapareceram.
As novas tecnologias passaram a ter um lugar privilegiado no
quotidiano da criança. Eu não tenho nada contra as novas tecnologias,
mas tem de haver bom senso e um critério de saber gerir bem o tempo e
o espaço destas novas tecnologias, em relação àquilo que são as
necessidades biológicas do corpo.
"Como é que queremos que as nossas crianças sejam empreendedoras se
estamos a retirar-lhes todas as possibilidades de elas aprenderem a
fazer isso? A construção de uma cultura empreendedora faz-se quando se
dão possibilidades para que a criança possa brincar. Se nós retiramos
aquilo que é a identidade da criança, que é brincar de forma livre,
com um nível de margem de risco muito superior àquela que os adultos
têm, elas com certeza que não vão ter condições de serem
verdadeiramente autónomas."
Mas eventualmente elas vão andar sozinhas na rua… Quando chegar esse
dia vão estar menos preparadas?
São crianças menos preparadas, mais imaturas, com maior dificuldade de
resolução de problemas, porque têm menos autonomia, têm menos
capacidade de resolução de problemas. Num país como este, que passou
uma austeridade tão violenta, onde se fala tanto em empreendedorismo,
como é que queremos que as nossas crianças sejam empreendedoras se
estamos a retirar-lhes todas as possibilidades de elas aprenderem a
fazer isso?
A construção de uma cultura empreendedora faz-se quando se dão
possibilidades para que a criança possa brincar. Se nós retiramos
aquilo que é a identidade da criança, que é brincar de forma livre,
com um nível de margem de risco muito superior àquela que os adultos
têm, elas com certeza que não vão ter condições de serem
verdadeiramente autónomas nem de terem uma socialização
suficientemente matura. Há uma relação muito grande entre a qualidade
e a quantidade do brincar na infância e na adolescência e a passagem
para a vida adulta.
Como assim?
Digamos que um corpo que não é feliz na infância é um um corpo que vai
pagar muito caro no futuro. Se olharmos para outras culturas de
infância — nos países que estão em desenvolvimento e nos países pobres
— podemos ver que pode haver fome e problemas de sobrevivência
extrema, pode haver até violência extrema, mas as crianças têm alguma
liberdade de ação e têm muitas vezes uma capacidade de resolução de
problemas, de resiliência, muito interessantes. Coisa que não acontece
nos países muito desenvolvidos, onde há uma superproteção às crianças.
Temos um bom clima, um nível de segurança que é dos melhores da
Europa, temos uma natureza e uma cultura interessantíssimas e estamos
a desperdiçar essa possibilidade
Fizemos um estudo recente aqui na Faculdade de Motricidade Humana
sobre a independência e a mobilidade da criança. Em 16 países Portugal
aparece em décimo lugar. Temos um índice de mobilidade muito abaixo
dos países do norte da Europa. Quer isto dizer que o nível de
autonomia e de independência de mobilidade está a ser um problema
muito sério nas culturas de infância do nosso país. Um país que tem um
território muito apropriado para que as crianças possam viver o espaço
exterior. Temos um bom clima, um nível de segurança que é dos melhores
da Europa, temos uma natureza e uma cultura interessantíssimas e
estamos a desperdiçar essa possibilidade. As crianças já não contactam
com a natureza, já não saem à rua, desapareceram e muitas vezes, o
tempo que restava à criança para poder fazer isto tudo está
restringido.
[Gráfico]
Falando agora dos mais pequeninos, das crianças a partir dos 3 anos. O
que tem observado em relação à motricidade destas crianças?
Temos hoje crianças de 3 anos que ao fim de dez minutos de brincadeira
livre dizem que estão cansadas, temos crianças de 5 e 6 anos que não
sabem saltar ao pé-coxinho. Temos crianças com 7 anos que não sabem
saltar à corda, temos crianças de 8 anos que não sabem atar os
sapatos. As coisas mais elementares, quer do ponto de vista motor,
quer do ponto de vista de motricidade grosseira, quer da motricidade
fina, tiveram um atraso significativo. Claro que há exceções, claro
que há crianças notáveis na sua apreensão e na sua coordenação motora
global, mas se observarmos estatisticamente crianças do nosso tempo e
crianças de há 30 anos, há uma diferença muito substancial.
Mas o que se pode fazer concretamente?
Se as crianças não brincam é porque os pais também não têm tempo para
elas. Temos de fazer um grande plano de salvação nacional no que
respeita à formação parental. Os pais têm que ter mais informações e
mais formação sobre a importância de a criança ser fisicamente ativa.
E livre.
Mas os pais podem pensar: o meu filho anda no ténis, e no futebol e na
natação, pratica muito desporto…
Isso não resolve nada. Nem uma boa alimentação, nem exercício físico
apenas resolvem o problema da iliteracia motora ou do excesso de
gordura. A questão é multifactorial.
Tem de se olhar para a alimentação, com certeza, temos de olhar para a
atividade motora e física e lúdica, mas temos de encontrar soluções no
espaço construído que facilitem a possibilidade de as crianças virem
para o exterior e terem contacto com a natureza e terem tempo para
brincar. E por isso tem de haver flexibilidade de horários de
trabalho, tem que haver políticas de maior acordo entre o tempo de
trabalho da família e da escola, de modo a que haja mais qualidade de
vida.
Por isso é importante saber que é tão importante a criança estar no
recreio a brincar, como estar dentro da sala de aula. E isto não foi
cuidado. Ainda para mais numa altura em que a criança em casa não
brinca. E a criança ao pé de casa também não brinca. E não tem
condições nem de acessibilidade, nem tempo, para frequentar os espaços
de jardins públicos e os espaços de jogo.
"Se tivesse de ter uma estratégia para os espaços de jogo para
crianças em Portugal, começava por desequipar tudo. E montava tudo de
novo."
Chegámos aos parques infantis. O que existe em Portugal é adequado às crianças?
Noventa por cento dos nossos parques infantis são equipados com
sintéticos. Essas empresas, que vendem esses materiais para Portugal,
são oriundas de países onde esse material não é vendido. Só vendem em
Portugal. Porque os parques infantis em Portugal são escolhidos por
catálogo, não são feitos com os atores, que são as crianças, não há
projetos educativos para fazer o espaço de jogo, não há participação.
Há um dispêndio financeiro enormíssimo do erário público, que não
serve para nada. Eu, se tivesse de ter uma estratégia para os espaços
de jogo para crianças em Portugal, começava por desequipar tudo. E
montava tudo de novo.
Como é que deviam ser esses parques infantis?
Deviam ter uma lógica participativa da comunidade e dar mais soluções
"selvagens" do que dinâmicas pré-formatadas, quer nos equipamentos
quer nos espaços. O tartan é mais perigoso do que as aparas de
madeira, ou a brita ou a relva. A qualidade do envolvimento tem sempre
a ver com as possibilidades de ação das crianças. E quanto melhor essa
qualidade, em termos de risco e de valor lúdico, melhor será a
capacidade de resposta das crianças a uma estimulação que as faz
crescer, que as torna mais autónomas.
"Um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento motor, ao
desenvolvimento percetivo, ao desenvolvimento da atividade lúdica é o
comportamento dos pais."
Mas se calhar os pais quando ouvem falar de risco ficam assustados…
As crianças têm uma grande capacidade de autocontrolo.
Os pais têm de perder o medo?
É claro que esse é um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento motor,
ao desenvolvimento percetivo, ao desenvolvimento da atividade lúdica:
o comportamento dos pais. A Academia Norte-Americana de Pediatria fez
um apelo a todos os pediatras para que, nas consultas com os pais, os
convidassem a brincar mais com os filhos e a saírem mais à rua. Isto
é, brincar mais em casa e "go out and play".
Se a Organização Mundial de Saúde considerar que o sedentarismo é uma
doença, temos um problema mais sério que a obesidade. Temos de ter um
plano de emergência para que as crianças tenham o que merecem em
determinada idade. E a maneira como se está a fazer este controlo das
energias, a falta de tempo que os pais têm, os medos que se instalaram
na cabeça dos pais e a forma como o planeamento urbano é feito,
significa que temos aqui todos os condimentos para termos uma infância
que está a crescer com problemas muito complicados, do ponto de vista
do conhecimento e do uso do seu corpo.
[Gráfico]
As crianças que vivem nos meios menos urbanos ainda são privilegiadas
no que diz respeito à independência e à autonomia?
Ainda estávamos convencidos de que haveria alguma diferença, quando
analisávamos a questão entre estrato socioeconómico ou relações entre
cidade, vila e aldeia. Já tudo mudou. Formatou-se o estilo de vida,
independentemente se é cidade ou é aldeia. O ecrã alterou muito
significativamente a vida das crianças e dos pais. Passou-se da
trotinete ao tablet de uma forma rapidíssima e não há equilíbrio. E o
que está em causa neste momento é que nem a atividade desportiva que
as crianças fazem em clubes, nem a educação física escolar, nem o
desporto escolar — que são muito importantes — são suficientes para
acabar com o sedentarismo que existe.
Parece que é um crime brincar à luta, parece que é um crime brincar
aos polícias e ladrões, parece que é um crime fazer uma descoberta, ou
saltar um muro
As crianças têm de voltar a ter a possibilidade de terem amigos e de
serem mais ativas. E para isso tem de haver políticas muito corajosas
para a infância. Os adultos andam de bicicleta, os idosos passeiam na
rua, os jovens adolescentes vão tendo soluções, agora as crianças têm
de brincar porque é a única alternativa que elas têm. Têm de brincar
em casa e os pais têm de brincar com elas, brincar ao pé de casa e os
pais têm de dar autonomia, brincar na cidade e tem que haver políticas
de planeamento urbano capazes de também oferecerem condições
apropriadas aos bebés, às crianças que estão a aprender a andar, às
crianças que têm 5, 6, 7, 8 anos. Tem de haver equipamentos e espaços
adequados que permitam mais margem de risco, mais margem de perigo. Há
uma relação muito direta entre risco e segurança. Quanto mais risco,
mais segurança e quanto mais risco, menos acidentes. Enquanto isto não
for visto nesta perspetiva, vamos ter mais acidentes, porque há menos
risco e por isso há menos segurança.
Pode exemplificar?
O exemplo é simples, eu costumo dá-lo de uma forma muito regular. As
crianças têm de subir mais às árvores e os pais não têm de ter medo
por isso. Porque hoje as crianças sobem, mas já não descem. O medo que
se instalou na cabeça dos pais transmite-se muito facilmente para as
crianças. Um pai inseguro faz do seu próprio filho uma criança
insegura, vulnerável, que tem medo de arriscar.
Há 30, 40 anos, era perfeitamente natural vermos duas crianças a
brincar à luta. Hoje, parece que é um crime brincar à luta, parece que
é um crime brincar aos polícias e ladrões, parece que é um crime fazer
uma descoberta, ou saltar um muro, ou fazer equilíbrio em cima de um
muro. Instalou-se um medo quase que sobrenatural, de haver perigos de
morte de rapto de violação. Há um exagero na maneira como se
instalaram essas dinâmicas psicológicas nos adultos. Temos de combater
isso.
Se um dia houver esse confronto com o risco as crianças vão estar
menos preparadas para reagir?
Exatamente. E para se prepararem e para se adaptarem e para serem
empreendedoras. Ouvimos todos os políticos a falarem que Portugal
precisa de empreendedores. A nossa cultura foi desde sempre uma
cultura lúdica, de procurar o desconhecido, de procurar o incerto, o
imprevisível. A cultura portuguesa, na sua história, é sinónimo de
aventura. E esse bem precioso que tínhamos na nossa cultura está em
desaparecimento, o que eu lamento muito. E se esse erro trágico se faz
na infância, ele é um duplo erro. Não só para o empreendedorismo, mas
para a saúde pública, para a capacidade de aprendizagem escolar, para
a capacidade de harmonia familiar, no fundo para ter uma vida feliz e
com qualidade.
"Um pai inseguro faz do seu próprio filho uma criança insegura,
vulnerável, que tem medo de arriscar. Hoje, parece que é um crime
brincar à luta, parece que é um crime brincar aos polícias e ladrões,
parece que é um crime fazer uma descoberta, ou saltar um muro, ou
fazer equilíbrio em cima de um muro."
Que conselho dá aos pais das crianças em Portugal?
Os pais têm de abrir as suas cabeças, libertar os seus medos, darem
mais oportunidades às crianças para elas terem uma vida mais saudável,
mais ativa, com uma exploração do espaço natural e do espaço
construído que faça mais sentido.
Com que idade uma criança deveria ou poderia estar habilitada a ir de
casa para a escola a pé?
A partir da segunda fase do primeiro ciclo, do terceiro ano, as
crianças já têm condições psicológicas, físicas e sociais para poderem
ir a pé para a escola. Há crianças que vivem a cem metros da escola e
vão de carro. Há pais que vão levar a criança com 8 anos, muitas
vezes, ao colo, ao professor na sala de aula. Não há praticamente
autonomia.
Como se pode admitir que haja crianças que durante um dia não fazem um
esforço correspondente a uma hora de trabalho? Esse sedentarismo tem
consequências nefastas a todos os níveis. A verdadeira troika que
precisa de ser reabilitada é a relação entre a qualidade de vida da
família, a qualidade de vida da criança e o território. Estas três
componentes têm de ser articuladas. Porque não flexibilizamos os
horários de trabalho?
Nos países nórdicos, que têm um clima muito mais austero, as crianças
andam na rua faça chuva faça sol, faça neve. Em Portugal, cai um pingo
e a criança é posta numa estrutura interior
Eu, na Austrália, vejo pais que começam a trabalhar às oito da manhã e
saem às quatro da tarde, em jornada contínua. E depois vai tudo para
os parques, tudo vai brincar e jogar, com uma cultura recreativa
fantástica. Mas não é só a Austrália. Nos países nórdicos, que têm um
clima muito mais austero, as crianças andam na rua faça chuva faça
sol, faça neve. Em Portugal, cai um pingo e a criança é posta numa
estrutura interior. Vou repetir: temos de aprender e ensinar as nossas
crianças a serem capazes de lutar contra a adversidade e nós temos uma
cultura ultra protetora, superprotetora.
E essa cultura vai colocá-los em risco.
Em risco. A cultura superprotetora põe as crianças em risco. O nível
de maturidade cognitiva vai evoluindo, e à medida que vai evoluindo –
e por isso a criança aos 7 anos tem capacidade de aprender a ler, a
escrever e a contar, que são linguagens abstratas – ela tem de brincar
muito.
A ciência demonstra que, no ciclo da vida humana, o pico maior, onde
há mais dispêndio de energia, é entre os cinco e os oito anos. Temos
de ter muito respeito por isso. Não podemos confundir tudo e achar que
essas energias são anormais. São naturais e por isso temos de olhar
para as energias das crianças como energias naturais e não
patológicas. Há cinco, seis anos, falava num crescimento atroz de
crianças "totós" e eu acho que hoje em dia esse grau de imaturidade
está a atingir níveis com proporções inacreditáveis. Porque as
crianças estão mesmo vulneráveis e imaturas, porque nunca foram
colocadas perante nenhum risco que as fizesse crescer.
Podemos ter muito amor aos nossos filhos, muita amizade pelos nossos
filhos, mas o melhor amor que podemos ter por eles é dar-lhes
autonomia.
Podemos ter muito amor aos nossos filhos, muita amizade pelos nossos
filhos, mas o melhor amor que podemos ter por eles é dar-lhes
autonomia. Eu aprendi isto com um grande mestre, João dos Santos, o
maior pedopsiquiatra português. E ele ensinou-me, há muitos anos, que
educar é um vai e vem entre dar proximidade para dar segurança e dar
distanciamento para dar autonomia. Quando eu tenho uma criança que tem
condições para ter autonomia, eu devo dar-lhe autonomia. Quando ela
tiver necessidade de ter proximidade, eu dou-lhe afeto. E o que está a
acontecer é que nós, adultos, estamos a criar uma patologia obsessiva
de querer proteger tanto os nossos filhos e ao mesmo tempo criar-lhes
uma exigência de que sejam génios. Isto é um paradoxo e é uma
contradição absoluta. Eu não consigo entender como é possível termos
chegado a isto.
--
---
Recebeu esta mensagem porque está inscrito no grupo "Pensantes" dos Grupos do Google.
Para anular a subscrição deste grupo e parar de receber emails do mesmo, envie um email para
pensantes1+unsubscribe@googlegroups.com.
Para mais opções, consulte
https://groups.google.com/d/optout.