André Barata, Renato Miguel do Carmo
In "O futuro nas mãos - De regresso à política do bem comum", ed. Tinta da China
Não se anda longe da verdade se se disser que «modernidade» e «utopia»
são contemporâneas. Enquanto "O Príncipe" de Maquiavel lançava em 1511
as fundações para que o fenómeno político pudesse ser compreendido por
si mesmo, e Lutero publicava em 1517 as suas "95 Teses" com que se
inaugurava o protestantismo – e que tanto influiria, como demonstrou
Max Weber, no firmar dos valores do capitalismo – Thomas Morus
publicava em 1516 a sua "Utopia" e, nesse mesmo ano, Erasmus de
Roterdão publicava a sua tradução latina do "Novo Testamento".
Política, ética e religiosamente, o espírito humano emancipava-se das
tutelas que a si mesmo tinha imposto no passado, trazendo a razão, a
vontade e até a fé humanas para o primeiro plano da existência
individual e social.
Quando, um século depois, Descartes traduz a modernidade em método
para a condução do espírito humano, surgem também as utopias de
Tommaso de Campanella ("A Cidade do Sol", 1602) e de Francis Bacon
("Nova Atlântida", 1627). Ao mesmo tempo, o pensamento
demonstrativo-político de Thomas Hobbes propunha-se aplicar Descartes
à organização política de um Estado Moderno ("Leviatã", 1668).
E um século mais tarde, com Immanuel Kant, a emancipação é finalmente
consagrada objetivo maior da era das Luzes. Havia que retirar
definitivamente a humanidade da sua menoridade auto-imposta. "Sapere
audé!"(Ousa saber!), reivindica Kant em 1785, contra os limites
impostos à inteligência humana. O final deste século das Luzes e o
seguinte assistiram à irrupção de grandes movimentos de mudança social
inspirados por valores utópicos. "Do Contrato Social"(1762), de
Jean-Jacques Rousseau, condensava logo nas suas primeiras frases o
sentido de uma mudança que se impunha como necessária – "L' homme est
né libre, et partout il est dans les fer"s(«O homem nasceu livre, mas
por toda a parte está a ferros»). As revoluções americana (1776) e
francesa (1789) fizeram vingar a emancipação, a primeira contra a
opressão de um colonizador, a segunda contra um regime absolutista em
estado de degeneração. A liberdade, a igualdade e a fraternidade
inspirariam nas primeiras décadas de 1800 as independências
libertadoras dos países sul-americanos enquanto a Europa se flagelava
em guerra. E, logo a seguir, vencido Napoleão Bonaparte, também o
movimento constitucionalista liberal poria termo à herança absolutista
entre os países europeus, Portugal incluído, apesar de uma dolorosa
guerra civil. Por fim, a efemeríssima comuna de Paris que em 1871 deu
corpo a um instante de realização utópica, logo travado por um brutal
morticínio de dezenas de milhares de cidadãos parisienses.
Se estes foram séculos de confirmação social de uma maioridade humana
que se desenhava em utopias lavradas desde os alvores da modernidade,
o século XX foi bem, com todos os riscos inerentes às simplificações
redutoras, o século das distopias. A inventividade utópica da razão
humana deu lugar à denúncia das monstruosidades que a mesma razão se
permitia elaborar. "1984" de George Orwell (1948), "O Admirável Mundo
Novo" de Aldous Huxley (1932), "Fahrenheit 451" de Ray Bradbury (1953)
não inventaram mundos sociais emancipadores, mas puseram a nu a
essência de mundos sociais totalitários já existentes, onde nenhum
aspeto da existência das pessoas, seja público ou privado, ficava fora
da alçada do poder da determinação política. O totalitarismo foi,
porém, muito além das suas representações ficcionais, mostrando bem
como a realidade pode surpreender e ultrapassar os limites do
imaginável.
Ainda assim, a redução do século XX, que a esmagadora maioria dos
leitores deste livro ainda conheceu, à distopia e ao totalitarismo, é
excessiva. O mesmo século XX que confirmava o receio que Goya
profetizara na gravura número 43 da série "Os Caprichos – El sueño de
la razón produce monstruos" (o sonho da razão produz monstros) –
também viria a ser depois, durante a sua segunda metade, o século da
democracia. Aliás, o aforismo de Goya, se bem que dado a múltiplas
interpretações, autoriza especialmente uma: atribui à razão o poder da
monstruosidade mas também o poder único de a conter pelo exercício de
uma atenção crítica. O sonho exige uma vigília atenta, que a
democracia é, melhor do que qualquer outro regime político, capaz de
exercer. E nisto jogava-se uma continuação da modernidade, não mais
dos passos grandes e desprevenidos de uma razão encantada com o seu
poder de fazer do tempo e do espaço e de quem neles habita a
plasticina do seu sonho ou do seu delírio, mas da responsabilização e
do cuidado, razões para passos bem medidos com precaução e
justificação suficientes. Por aqui explica-se em parte a construção de
uma unidade europeia sobre os escombros da guerra que deu origem à
nossa atual União Europeia, e também a expansão da democracia mundo
fora depois do colapso dos impérios coloniais na segunda metade do
século XX. A mesma transição de uma razão dominadora para uma razão
contida e, sobretudo, autodominada é também um traço central da nossa
consciência cada vez mais ecológica, menos dada ao empreendimento da
exploração da natureza e dos seus recursos, e cada vez mais empenhada
em formas de prosperidade e desenvolvimento que não se exprimam em
fórmulas de crescimento insustentável. Hoje, a ousadia do "Sapere
audé!" é outra: mais saber para menos poder e para mais saber estar,
com os outros e com o mundo. Contudo, o processo que as utopias
sofreram foi mais longe. As filosofias tornara-se filosofias da
suspeita, até sobre si mesmas. À história concebida como progresso
inexorável e que conduzia ao desastre opô-se não uma visão mais
crítica, mas a proclamação do seu óbito. As teses do fim da história,
do fim da política, do fim das ideologias, do fim da própria filosofia
foram impondo um regime de pensamento colado à realidade tal qual ela
é, sem suplemento de transformação utópica. O pensar ficou
circunscrito à eficiência lógica dos processos existentes, deixados
inquestionáveis nos seus princípios e escolhas mais fundamentais.
Nisto, não se procedeu apenas a uma limitação do pensamento, mas à sua
suspensão. Niels Bohr, um físico notável, disse-o de uma forma não
menos notável: «you're not thinking; you're just being logical» («tu
não estás a pensar; está apenas a ser lógico»).
A pergunta que se segue a este raciocínio é direta: até que ponto a
vontade utópica resiste à autocontenção incontornável da razão
consciente?
A realidade da nossa época é que a modernidade não pôde evitar entrar
num certo declínio e com ela arrastar a sua irmã gémea, a utopia, esse
suplemento de não-lugar que, contudo, orientou por séculos a história
com um sentido de progressismo nas relações humanas. Desta forma,
depois de um século de suspeita que corroeu a vontade de utopia e a
generosidade que lhe dá força, o século XXI começou sem o ânimo da
utopia. E o que descobrimos em seguida é que, neste contexto que
herdámos, um lugar sem utopia revela-se ele próprio um sem-lugar. O
que temos dado por perdido nestes tempos que vivemos é, pois, muito
mais do que o direito de inventar um lugar que realizasse uma visão da
felicidade ou do bem comum. O que temos perdido, perdendo a utopia, é
o próprio direito a um lugar qualquer. Por isso, ou fazemos alguma
coisa ou, depois de séculos de utopia e de um século de distopias,
apenas encontraremos como nossa possibilidade de convívio um século de
«atopias». A precariedade é a expressão social muito concreta deste
sem-lugar a que nos votámos num século que começou tão descrente de
si. Emigramos ao ritmo da centena de milhares por ano de um país sem
natalidade nem imigração e, desta forma, perdendo a população
residente. Mas, fundamentalmente, emigramos porque elidimos o valor do
direito ao lugar.
Por estas razões, e ironicamente, hoje a primeira e mais imediata
reivindicação utópica é devolver às pessoas o direito a terem um
lugar, e devolver às comunidades a possibilidade de comunitarizarem em
volta de um território. O que significa, em termos de ação política
concreta, combater-se a precariedade para não nos condenarmos ao
desenraizamento social.
A segunda reivindicação é mais ampla e inscreve-se naquilo a que Erik
Olin Wright chamou «utopia real». Sob o reconhecimento de que
instituições e estruturas sociais são efetivamente responsáveis por
sofrimento e obstáculos ao desenvolvimento humano, as utopias reais
desenham-se no sentido da transformação destas instituições e
estruturas sociais – na forma não de ficções, como tradicionalmente
foram apresentadas, mas sim de alternativas produzidas em contexto de
ciências sociais emancipatórias. Vencer a precariedade e não nos
deixarmos vencer por uma desigualdade e uma exclusão estruturais não
podem ser objetivos mais irrealistas para este nosso século do que
foram, décadas atrás, uma escola e uma saúde para todos, ou os
direitos sociais, a igualdade de género, os direitos humanos. E só
assim podemos devolver-nos o direito ao progressismo nas relações
humanas sem nos subjugarmos à tirania do progresso.
A terceira reivindicação é continuar o pensamento utópico mas com a
clarividência da realidade humana plural. John Rawls e Jürgen Habermas
chamaram bem a atenção para a importância de a filosofia política
articular «utopias realistas». Este sentido da realidade deve fazer-se
valer do cuidado pelos resultados das nossas ações sobre os outros e
sobre o lugar que com os outros compartilhamos. É essencial defender
um espaço público plural e democrático contrário ao dogmatismo e às
falsas certezas sobre o que terá de ser o futuro humano. Em política,
ao contrário das ciências, não há outra previsão de futuro além da que
autorizam as nossas convicções e inteligência partilhada. Isto
significa também uma compreensão de que nunca são puras as estratégias
com que conseguimos encontrar as melhores soluções num mundo complexo.
Daí a importância de desejarmos, e não apenas tolerarmos, o
pluralismo. Existir uma pluralidade de estratégias é o ingrediente
indispensável para uma construção partilhada, respeitosa e confiante
do futuro.
Importa-nos, em suma, retomar o "Sapere audé!"que esteve no coração da
modernidade. E, junto com ele, também a ousadia da utopia e da
transformação do mundo social que herdámos e queremos deixar, melhor
do que o recebemos, em herança às novas gerações.
A utopia realista e a utopia real são as verdadeiras reformulações
construtivas do aforismo de Goya: o sonho desperto da razão sabe
conduzir-nos a utopias realistas.
Publicado em 14.09.2015
http://www.snpcultura.org/o_futuro_nas_maos.html
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