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29 Março 2016
Nuno Garoupa
Portugal vive entre quatro sentimentos: euforia, nostalgia, vencidos
da vida e sebastianismo. O primeiro passo para resolver isto, diz Nuno
Garoupa, seria reconhecer que temos um problema sério.
Nuno Garoupa, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, foi
o convidado especial da cerimónia comemorativa do 34º aniversário da
Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, aí tendo
proferido a palestra "O Fracasso das Instituições Portuguesas como
Problema de Muito Longo Prazo" que aqui reproduzimos no dia em que o
Governo português apresenta o seu Plano Nacional de Reformas.
Os quatro sentimentos da sociedade portuguesa
A sociedade vive ciclicamente entre quatro sentimentos distintos, a
saber, a euforia, a nostalgia, os vencidos da vida e o sebastianismo.
A euforia corresponde a um período de otimismo normalmente resultante
de um recomeço. Por exemplo, com a nossa entrada, primeiro, na União
Europeia e, depois, na zona euro, tornámo-nos um país novo, rico,
pujante, com novos horizontes. Tudo confirmado pelas muitas
autoestradas, pelos novos padrões de consumo, pela aquisição de casa
própria, pela proliferação das piscinas e do parque automóvel.
Portugal cumpria, assim, o seu destino de país europeu próspero.
Esta euforia não é um produto menor do cavaquismo ou do socialismo de
Guterres. Tem paralelos com o quinto império sonhado pelo Estado Novo
(e glosado por Fernando Pessoa), ou com o sonho republicano de 1911 ou
com o Portugal liberal e constitucional do século XIX. Há sempre um
momento em que Portugal se vai finalmente realizar.
Como quase sempre aconteceu nos últimos duzentos anos, a euforia acaba
sempre na ressaca. O país percebe, sempre tardiamente, que o novo
Portugal não tem correspondência com a realidade dos fundamentos
medíocres da sua economia. Não admira, pois, que a fase eufórica
esteja associada a endividamento excessivo e à consequente (quase)
bancarrota.
Com a nostalgia, instala-se o pessimismo: "isto não tem solução",
"mais vale emigrar", "são sempre os mesmos". Chegam os vencidos da
vida. Infelizmente, sabemos que na história predomina este sentimento,
principalmente nas suas fases mais democráticas.
Segue-se a nostalgia. Fomos a grande potência disto e daquilo, o maior
império, a primeira globalização, temos uma cultura importantíssima, o
país com as fronteiras mais antigas da Europa. Com ela, vivemos uma
certa bipolaridade de um passado glorioso (que não o foi mais do que o
de qualquer outro país europeu) e um sentimento de culpa, por termos
perdido essa maravilhosa glória. Não temos ainda uma relação saudável
com o passado. Por exemplo, muitas vezes avaliamo-lo com os nossos
olhos, procurando culpa nos nossos avós, que evidentemente julgaram
pelos seus olhos e não pelos nossos (pensemos nas nossas aventuras
coloniais). Mas, por outro lado, ignoramos a prevalência de corrupção
e do enriquecimento ilícito em muitos dos nossos heróis, naquilo que
já era uma conduta contemporaneamente criticada (veja-se o caso
sintomático do Marquês de Pombal).
Com a nostalgia, instala-se o pessimismo: "isto não tem solução",
"mais vale emigrar", "são sempre os mesmos". Chegam os vencidos da
vida. Infelizmente, sabemos que na história predomina este sentimento,
principalmente nas suas fases mais democráticas (final do século XIX,
Primeira República, agora) porque estamos constantemente confrontados
com a insuficiência da nossa sociedade e da nossa economia, com o
fracasso das expectativas criadas.
A nostalgia e os vencidos da vida desembocam no sempre presente sebastianismo
Diz-se que o país vive hoje a sensação de não ter um projeto comum.
Mas isso evidentemente é apenas um sintoma de pobreza. Um país rico
não questiona a existência de um projeto comum. O país pobre sim.
Porque a sua pobreza seria o sacrifício a suportar por um grande
projeto. Sem projeto, o país não consegue perceber a razão metafísica
da sua pobreza.
A nostalgia e os vencidos da vida desembocam no sempre presente
sebastianismo. Sabemos que aparecerá um redentor que, fora das
instituições e mesmo contra as instituições, salvará o país. Temos
fundamentalmente uma cultura política e intelectual de personalidades
(os "ismos" abundam na nossa política em detrimento de ideologias ou
filosofias), e não de instituições ou correntes de opinião. Como
sabemos que as instituições são sempre parte do problema, procuramos a
resposta num salvador que nos resolverá tudo, queremos um caudilho que
nos liberte do peso das instituições. E sempre que o anunciado
caudilho começa a falhar, a culpa não é dele, mas dos que o rodeiam:
cultivamos a irresponsabilidade do salvador. É por isso, aliás, que as
nossas fases democráticas se assemelham muito mais a consulados
bonapartistas que a uma democracia anglo-saxónica.
Estes quatro sentimentos (euforia, nostalgia, vencidos da vida,
sebastianismo) repetem-se ciclicamente, em fusão com as instituições
que regem a sociedade portuguesa em diferentes épocas da sua vida.
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O que são as nossas instituições?
As instituições nascem, consolidam-se e morrem. A primeira nota
importante é que até hoje as nossas instituições nasceram em
revoluções e em revoluções morreram. Ao contrário de outras culturas,
fomos incapazes de ter uma regeneração negociada até hoje. Por
exemplo, desde o século XVIII que os anglo-saxónicos regeneram as suas
instituições de forma pactuada, isto é, os diferentes atores assumem
perdas de curto prazo com vista a ganhos de longo prazo. Os
norte-americanos desde a guerra civil. Na Europa foi mais tarde,
apenas desde a Segunda Guerra Mundial: a transição da IV para a V
República em França deu-se em 1958, a mudança em Itália em 1992, a
transição espanhola em 1975, as transições na Europa de Leste nos anos
90. Em Portugal, ainda não temos essa experiência de evolução pactuada
das nossas instituições. Este é o grande desafio que temos pela frente
na geração presente.
Mas, para além da ausência de evolução pactuada, a consolidação das
instituições em Portugal faz-se pela substituição progressiva de
instituições inclusivas por instituições extrativas ao longo de um
determinado intervalo de tempo. Ou seja, de instituições que favorecem
consensos, negociações e equilíbrios e são, por isso, amigas do
crescimento económico sustentado e de uma sociedade mais igualitária
por outras dominadas pelos interesses privados ou corporativos com o
objetivo de beneficiar certos grupos, desfavorecendo, assim, o
crescimento económico e induzindo mais desigualdade.
Já Fernão Lopes dizia cinicamente que uma nova geração de homens se
levantou para descrever que, depois da revolução, ficavam os mesmos de
sempre, o que documenta a incapacidade das corporações se regenerarem
pacificamente.
Precisamente porque as nossas instituições nascem de uma revolução,
elas são naturalmente inclusivas (prevalece a euforia). Mas com o
tempo, tendo em conta os benefícios concentrados e os custos
disseminados, transformam-se em extrativas ou são apropriadas por
corporações até ao culminar de outra revolução (este processo de
apropriação é acompanhado pelos vencidos da vida e pelo
sebastianismo). Até hoje os grupos instalados que dominam as
instituições foram incapazes de aceitar ceder ou perder no curto prazo
para favorecer uma regeneração tranquila. Temos, pois, um exemplo de
"dry politics" constante, que inevitavelmente leva ao corte radical
entre regimes políticos.
Já Fernão Lopes dizia cinicamente que uma nova geração de homens se
levantou para descrever que, depois da revolução, ficavam os mesmos de
sempre, o que documenta a incapacidade das corporações se regenerarem
pacificamente e por via de pactos, mas a habilidade de se
reorganizarem num novo regime político, transformando as instituições
inclusivas em extrativas de forma eficaz.
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Exemplos históricos
Portugal enquanto tal nunca inventou instituições suas. Elas são
sempre copiadas de outros modelos (francês, alemão, italiano) ou
completamente impostas (por exemplo, recentemente, as autoridades
reguladoras impostas pela União Europeia). Portanto, a nossa
criatividade institucional é absolutamente mínima. Desde os romanos e
dos árabes que somos uma sociedade de transplantes e não de origens
institucionais.
Somos um país que chegou historicamente tarde a quase tudo: ao
feudalismo, à centralização do poder real, ao renascimento, à
contra-reforma, às luzes e ao iluminismo despótico, à revolução
liberal, à monarquia constitucional, ao autoritarismo corporativo e à
democracia. Fingir que a nossa periferia geográfica, politica e
económica não nos condiciona muitíssimo é ignorar a lição da história.
Somos assumidamente periféricos às grandes mudanças políticas do
globo.
Somos um país que chegou historicamente tarde a quase tudo, do
feudalismo à democracia
A isso se junta a sempre alegada especificidade portuguesa. O combate
ao estrangeirado como forma de limitar as instituições transplantadas
e fechar as elites, cartelizar os grupos dirigentes, é também uma
constante das instituições. O próprio conceito de estrangeirado
confirma a perceção da nossa periferia geográfica e cultural.
Bem sei que, mais recentemente, há uma tendência para culpar a cultura
católica. Pressinto, contudo, que esta apenas acicata elementos
antropológicos e inerentes à nossa organização social. Temos uma
sociedade hierárquica e hierarquizada, com uma enorme cultura
centralista e de poder majestático que evidentemente não se desfaz
numa geração, com ou sem catolicismo à mistura. A cultura católica
prevalece noutros quadrantes culturais e antropológicos sem induzir
exatamente o mesmo desenho institucional que temos na sociedade
portuguesa (pensemos na Irlanda, na Bélgica, na Áustria ou na
Polónia).
O Estado é ele mesmo extrativo e corporativo e a sociedade
genericamente desconfia dele. Por isso, não há um respeito intrínseco
pela lei, porque é sabido que a lei foi feita para beneficiar os
grupos que dominam o Estado e não o bem comum.
Juntam-se às instituições extrativas a presença forte do Estado em
Portugal. Nos descobrimentos, na atividade económica do iluminismo, ao
longo do século XIX, no Estado Novo, nas aventuras ultramarinas e,
claro, na democracia. Mas não é a presença forte do Estado que explica
a cultura antiliberal portuguesa que nos é confirmada reiteradamente
por todos os estudos de opinião recentes. É antes a cultura
antiliberal portuguesa de muitos séculos, apoiada e suportada pelas
instituições extrativas, que explica a presença forte do Estado.
Ao mesmo tempo, porque o Estado é ele mesmo extrativo e corporativo, a
sociedade genericamente desconfia dele. Por isso, não há um respeito
intrínseco pela lei (por exemplo, nem existe a palavra "enforcement"
em português), porque é sabido que a lei foi feita para beneficiar os
grupos que dominam o Estado e não o bem comum. Existe, assim, um jogo
de soma nula entre os diferentes grupos para capturar o Estado que
justifica uma inveja antropológica e um permanente "nós vs. eles",
numa distinção em que a sociedade se desresponsabiliza de quem
governa, algo tanto mais chocante em épocas democráticas porque o
"eles" foi eleito por "nós".
Como somos um país relativamente homogéneo e pequeno, não temos
movimentos regionais ou locais que limitem o Estado central, o que
explica porque muitas das características que observamos, sendo comuns
a Espanha, França ou Itália, parecem ter em Portugal mais força e mais
dinamismo.
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Problema do muito longo prazo
A questão que decorre é clara – porquê a prevalência das instituições
extrativas? Não sendo evidentemente uma especificidade portuguesa, é
um problema nosso.
Comecemos por aceitar que preenchemos os requisitos teóricos para ser
dominados por instituições extrativas: periferia geográfica e
cultural, país pobre (relativamente ao espaço em que estamos
inseridos), homogeneidade das classes dirigentes (que a massificação
do ensino universitário não alterou), hierarquização e estratificação
das relações sociais e laborais (que apesar de tudo se mantém),
concentração de riqueza (que a democracia não resolveu), dimensão
reduzida do país, com ausência de centros de decisão concorrentes
(apesar das autarquias e dos governos regionais nas ilhas, a
centralização persistiu). Todas estas características facilitam uma
fraca expressão da sociedade civil e uma cultura contrária à
avaliação, ao mérito e à "accountability" (mais uma palavra sem
tradução em português). Tudo isto explica a persistência e resistência
das instituições extrativas.
A questão seguinte – temos capacidade de superar este problema? Não
tivemos nos últimos duzentos anos, apesar de cada revolução (1820,
1834, 1910, 1926, 1974) impulsionar um recomeço que tinha esse mesmo
objetivo. Por outro lado, depende da nossa sociedade atual superar a
nostalgia, sebastianismo ou vencidos da vida e reorganizar as suas
instituições inclusivas de uma forma sustentável.
A União Europeia vai continuar a impor instituições que nos são
estrangeiras e portanto falham na sua missão (volto ao exemplo das
entidades reguladoras que são notória e globalmente irrelevantes em
Portugal)?
Neste momento, conseguiremos fazer a regeneração pactuada que nunca
foi possível antes? E como se faz ela? Com novos partidos (temos o
sistema mais estável do Sul da Europa)? Teremos uma evolução à húngara
ou à polaca (com um caudilhismo estilo século XXI)? A União Europeia
vai continuar a impor instituições que nos são estrangeiras e portanto
falham na sua missão (volto ao exemplo das entidades reguladoras que
são notória e globalmente irrelevantes em Portugal)?
Talvez a nota mais preocupante seja que vivemos um tempo de crise das
instituições extrativas, mas a sociedade portuguesa não tem tempo para
discutir as suas próprias instituições. O primeiro passo seria
reconhecer que temos um problema sério, de muito longo prazo, com a
nossa forma de nos organizarmos. Diz-se e repete-se à exaustão que os
diagnósticos estão todos feitos. Estarão provavelmente; todos sabemos
que as instituições extrativas são um cancro que nos ocupa há mais de
200 anos. Mas raramente o debate público consegue sair das
preocupações do dia-a-dia. A reforma das nossas instituições não é
tema ou proposta de qualquer ator político atual. Isso é sintomático
do nosso estado de coisas.
Diz-se que D. Pedro IV, ao desembarcar no Mindelo, terá dito qualquer
coisa do estilo "vamos libertar estes malfadados, quer eles queiram,
quer não". Claramente as nossas instituições ainda aguardam o
histórico desembarque…
Nuno Garoupa é presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos
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