21 Maio 2016987
Hugo Gonçalves
http://observador.pt/especiais/nao-quero-ser-viral/
Uma velhinha no jardim que ofereceu comida ao cão, uma fotografia
tirada com o telemóvel, um post "inocente" no facebook. Até que tudo
ficou fora de controlo, como conta aqui o Hugo Gonçalves.
Primeiro ato: partir a Internet
Devia ser apenas um desabafo e um pedido de ajuda no Facebook. O texto
que publiquei no meu perfil dizia: "Era para ser uma foto divertida: a
velhinha simpática que ofereceu sopa à minha cadela. Mas depois
sentei-me e perguntei-lhe o nome. (Ela disse:) 'Chamo-me Otília, tenho
81 anos, a minha filha pôs-me na rua e roubou-me 16 mil euros, era o
dinheiro que poupei ao longo de toda a vida. Vou buscar comida à Santa
Casa e durmo num quarto, mas o dono do apartamento trata-me mal. Tenho
de estar o dia todo na rua, só lá vou dormir. Trabalhei 40 anos numa
clínica veterinária em Campo de Ourique, gosto muito de animais. Agora
não tenho nada'. As lágrimas caíam e caíam. Não me pediu nada, dei-lhe
a mão durante toda a conversa, algum dinheiro no fim, talvez para
mitigar a súbita impotência, e perguntei se ela podia arranjar outro
quarto. 'Só posso gastar 150 euros por mês'. Estou a pedir ajuda no
meu bairro e combinei encontrar-me amanhã com ela, se souberem de
algum sítio onde ela possa ficar, um abrigo, um quarto, por favor
avisem".
Em poucas horas este encontro disseminou-se pelas redes sociais. Meio
milhão de visualizações do post com a fotografia da dona Otília,
dezenas de milhares de partilhas, centenas de mensagens, de pedidos de
amizade e de comentários – uma torrente de informação que chegava até
do estrangeiro e que, apesar das boas intenções, transformava um
encontro entre duas pessoas, num jardim, em algo hiperbolizado, fora
de controlo, tão diferente da minha experiência desse dia. Nos
comentários havia já quem desconfiasse da história, assegurando uma
burla, ou quem desejasse a punição da filha na praça pública –
enforcamento foi uma das sugestões. As mensagens não paravam de
chegar, ofertas de dinheiro, mobília, roupa, números de telefone de
instituições. A confusão e desinformação era tal que várias pessoas se
ofereceram para adotar a minha cadela julgando que estava abandonada.
Tudo porque eu cedera ao impulso contemporâneo de documentar mais um
momento no meu dia e colocá-lo na rede, invertendo assim as
prioridades do real e do virtual – primeiro puxara do telefone para
fazer uma foto da dona Otília a dar sopa à cadela, só depois é que me
sentei a seu lado e lhe perguntei o nome.
A dona Otília não chorava um choro transtornado. Era antes como se o
desfecho da sua história fosse a ordem natural das coisas que já não
têm conserto. Fiz-lhe várias perguntas: onde estava a dormir, se tinha
ido à polícia, como a poderia ajudar? Depois de combinarmos um
encontro para o dia seguinte, fui falar com algumas pessoas do bairro,
donas de estabelecimentos comerciais, de forma a conseguir refeições e
um quarto. Chegado a casa, foi difícil concentrar-me. Para resolver o
mal-estar, coloquei o tal post no Facebook como quem toma um
comprimido para a dor de cabeça. Depois, voltei ao trabalho e estive
várias horas desligado. Quando regressei, tornara-me viral.
As inúmeras solicitações via Internet levaram-me a ler e a responder a
centenas de mensagens, procurando ali informação que pudesse ser útil,
mas começaram também a causar-me uma sensação de asfixia, ansiedade e
invasão, que se agravou ao ser contactado para aparecer em programas
de TV e artigos de jornal ao lado da dona Otília – uma dessas
jornalistas dizia, como se preparasse um safari: "Onde é que ela está,
para irmos lá filmá-la?" A determinada altura, nos comentários, alguém
tinha oferecido uma casa e dezenas de pessoas celebravam, como um dado
adquirido, que a dona Otília já teria onde ficar, ainda que eu não
soubesse sequer se, no dia seguinte, iria encontrá-la.
Só por volta da meia-noite larguei as mensagens e os comentários,
apaguei todos os aparelhos de casa, tentei desconectar o cérebro. Sem
grande efeito. O fluxo da minha consciência parecia uma máquina de
pipocas, rebentando balões de ideias e imagens e tarefas a executar.
Se era tudo por uma boa causa, afinal, porque me sentia eu tão
desconfortável no olho do furacão viral?
Segundo ato: o cão de Pavlov
Tento ter uma relação parcimoniosa e higiénica com as redes sociais e
o uso da tecnologia – nem sempre consigo. Já escrevi coisas que não
devia no Facebook, já me desejaram morrer de cancro por causa de uma
crónica sobre Fátima, já me apeteceu desligar tudo e ficar numa bolha
de silêncio, imune a polémicas, trocas de argumentos e fotografias de
pratos de comida.
Para alguém que se diz libertário, tenho de reconhecer que me incomodo
demasiado se almoço numa mesa em que os comensais estão agarrados aos
telefones ou se vejo alguém a fotografar um cappuccinocomo se fosse
uma flor julgada extinta. Desespero com os zumbis nos passeios e a
atravessar a rua, de cabeça baixa e com os olhos vidrados nos seus
telefones. A lista de pequenos distúrbios é longa. Mas o que mais me
impressiona é ver os condutores de carros em andamento a enviar
mensagens de texto – por ser algo tão contraintuitivo à nossa
programação genética para a sobrevivência. Somos mamíferos cujo
cérebro está constantemente a produzir correlações e inferências sobre
o mundo em função de nos mantermos intactos – não vás para aquele lado
da savana que há leões –, mas hoje parece que não conseguimos perceber
que podemos matar-nos e matar alguém, desviando o olhar da estrada, só
para informar os amigos no Whatsapp de que vamos comer um temaki.
Não sou um Velho do Restelo relativamente à tecnologia da comunicação,
mas sei que, tal como o anel da trilogia de Tolkien, ela pode ser
usada para o bem e para o mal, exatamente como as drogas, que ajudaram
os Beatles a fazer o White Album, mas que mataram o meu tio.
Cada vez mais acredito que a necessidade de saber tudo, a toda a hora,
sobre qualquer assunto, ou de estar contactável em qualquer momento, é
uma forma de subjugação, uma urgência que, tantas vezes, não passa de
ansiedade de status e do permanente tagarelar do cérebro sempre
insatisfeito: responde ao email, atualiza o perfil, isto dá um bom
post, manda a foto, vê quantas estrelas tem o restaurante, abre o
Tinder, dispara um super like. Uma cabeça permanentemente ocupada com
informação é apenas um processador de dados – é preciso parar, não
fazer nada, para que as experiências se possam costurar no tecido
emocional, para que haja clarividência em vez de uma enxurrada de
factoides, fotografias ou notícias. O tempo que precisamos para
entender aquilo que vivemos não está em sintonia com a velocidade do
tempo em que vivemos. Há demasiadas coisas – uma amizade, um
casamento, escrever um bom livro – que não se compadecem com o
imediatismo e a tirania da satisfação imediata que tomou conta de nós
com o mesmo poder com que a campainha de Pavlov fazia salivar o cão da
experiência.
Foi um comediante que me ajudou a perceber algo mais, que me
incomodava, na história viral da dona Otília. Num dos seus
espetáculos, Anthony Jeselnik disse que aqueles que, em momentos de
catástrofe, escrevem no seu perfil "os meus pensamentos e orações
estão com as vítimas", não estão, de facto, a fazer nada. "Fucking
nothing. Less then nothing." E prossegue: "Não dão o seu tempo, a sua
compaixão, o seu dinheiro. Tudo o que estão a dizer é 'não se esqueçam
de mim hoje'".
A verdade é que, por causa do meu post, me senti um pouco como essas
pessoas – uma fraude. Mais ainda quando gente desconhecida começou a
escrever-me mensagens e a deixar comentários do género "beijos no
coração", "és um herói", "devia haver mais gente como tu". Dei-me
conta da distância que, em tão pouco tempo, se criara entre aquilo que
realmente estava a acontecer e o que sucedia no universo distorcido e
exagerado da Internet. A experiência já não era minha, nem autêntica,
passara a ser algo com vida própria. Eu apenas tinha falado com uma
mulher no jardim, uns quantos minutos, dizendo-lhe que voltaria no dia
seguinte. No entanto, para muitos que não me conheciam nem do
elétrico, eu estava a um passo da beatificação.
Há um risco em fazer das nossas vidas uma espécie de feed contínuo e
estilizadamente editado. Porque nessa projeção construímos um reality
show de nós mesmos e, confiantes de que somos pessoas informadas, cuja
opinião é indispensável e que temos de estar sempre presentes, criamos
a ilusão de uma relevância e de um envolvimento com o mundo e com os
outros que realmente não temos.
Também eu sou, tenho de admitir, parte fraca da realidade que crítico:
fiz a foto, escrevi o post no Facebook, partilhei um momento da minha
vida que poderia ser perfeitamente só meu. Mas, mesmo sendo parte
fraca, incomoda-me a ideia de ser condicionado e controlado por algo
exterior a mim. A tecnologia existe para nos servir e não o contrário.
Os smartphones não deveriam criar tantos stupid users. Além disso,
expus-me e, mais grave, expus uma pessoa sem autorização (a sua cara,
a sua história). Não me agradou receber pedidos de entrevistas e
ofertas de dinheiro para a dona Otília, em ser subitamente o porta-voz
oficial dos próximos capítulos da novela online. Mas as mensagens
continuavam a chegar, e todos queriam saber o que aconteceria depois.
E se, no dia seguinte, ela não aparecesse para o nosso encontro? Não
seria eu uma fraude ainda maior?
Terceiro ato: a vida como ela é
Desci a rua em direção ao jardim antes da hora combinada, tentando
perceber se alguma das silhuetas era a dona Otília. Passara parte da
manhã a fazer telefonemas, conversara com uma funcionária da Santa
Casa, convocara amigos para contribuírem para uma conta na farmácia e
outra no café que serve refeições. Tentava combater com pragmatismo a
suspeita de ser tão artificial como uma pastilha do gelado Epá. E,
para meu alívio, lá estava ela, noutro banco de jardim, comendo
novamente de uma caixa de plástico, pronta a oferecer fios de
esparguete à minha cadela.
No dia seguinte, a dona Otília, que tem um problema de equilíbrio e
usa uma bengala, caiu e fomos ao hospital. Como não tenho carro, falei
com a Sónia Buisel, da associação Bora Lá, que ajuda sem-abrigo, e que
nos levou ao São José. Além de uns hematomas e uma dor no pulso,
estava tudo bem. Almocei com a dona Otília no domingo de Páscoa e em
outras ocasiões. Contou-me dos seus tempos na Mouraria, quando
trabalhava na Sociedade Guilherme Cossoul e se dava com os artistas da
época, como o Raúl Solnado ou o Fernando Tordo. Mostrou-me fotos a
preto-e-branco de quando era nova, outras, a cores, das viagens a
Israel, onde gostou de tudo menos de ver os camelos ao sol, "que
tinham de carregar turistas o dia inteiro". Viajou com uma igreja
evangélica, que fazia pacotes turísticos baratos, e perguntei-lhe se
era religiosa. Suspendendo os talheres sobre o prato, respondeu:
"Quando tinha dezasseis anos fui confessar-me ao padre da aldeia, que
me perguntou se eu tinha namorado e se já fazia 'coisas'. Queria que
eu fosse com ele à sacristia para me explicar essas 'coisas'. Nunca
mais quis saber de padres".
Falei muitas vezes com ela ao telefone e encontrámo-nos no jardim com
frequência. Esse contacto e descoberta foram colmatando a falha
gigante que se criara entre a realidade e o mundo viral. Aquilo que eu
sentia era outra vez resultado de estar com uma pessoa frente a
frente, ouvindo as modulações na sua voz, abraçando-a na despedida.
Tristeza, compaixão, esperança, desalento, cansaço, riso, enfim, ir
reiterando a certeza de que a vida não se experimenta nem se resolve
com a mesma rapidez e facilidade com que se partilha um post nas redes
sociais.
Mas não havia maneira de arranjarmos um quarto, a mulher da Santa
Casa, que me ligara durante o furor da história na Internet, deixou de
atender e responder a mensagens, o dono do apartamento onde estava a
dona Otília revelava-se cada vez mais intolerante, gritava com ela,
não a deixava cozinhar ou ter comida no frigorífico, tinha estipulado
um só duche por semana. Houve momentos em que ela se mostrou
desesperada, que chorou, que fez birras ou se irritou comigo porque
não lhe atendi o telefone. Perdeu peso, dormia mal, os calmantes não
faziam efeito. Mais do que tudo sentia-se sem ninguém, uma solidão
denunciada nos telefonemas a meio do dia para saber como eu estava.
Nem sempre havia um botão de like. Nem tudo se alinhava com um emoji
sorridente. Houve vezes em que eu não podia atender, ou não me
apetecia. Senti a preguiça e o desconforto de ter uma pessoa a entrar
na minha vida, mais uma demanda, uma coisa a tratar. Houve vezes que
não sabia o lhe que dizer, não tinha uma solução, não me senti à
altura.
"Pode-se tirar aquilo da Internet?", disse-me ela, depois de uma amiga
lhe ter mostrado o post no Facebook.
Como é que eu lhe explicaria que, com dezenas de milhares de
partilhas, ela ficaria no ciberespaço para sempre?
"Mas quer que eu tire?"
"Não, quero que fique, porque me andam a ligar lá de cima (da parte da
filha) a ameaçar-me, querem que tire aquilo, mas eu quero que fique".
Por várias vezes dei-me conta de que, apesar da resiliência, ela tinha
vergonha de receber ajuda, tal como percebi que quem precisa de uma
mão não deixa de ter direito às suas vontades. A dona Otília não quis
ir para um lar porque perdia a liberdade de entrar e sair quando lhe
apetecesse. Não foi para uma casa no Ribatejo, com direito a empregada
e muitos cães – cortesia de uma senhora abastada e residente em Paris
–, porque há décadas que Lisboa é a sua morada e gosta de passear pela
cidade. Por causa dessas escolhas teve de continuar a viver num
esconso sem porta, no apartamento de um casal que gritava. Há, nessa
necessidade de manter vontades e princípios, mesmo em momentos em que
dependemos de outros, uma dignidade essencial para a preservação
daquilo que não se pode destruir em nós. E isso só me fez admirá-la.
Os fenómenos virais são breves e intensos, um desajustamento temporal,
uma histeria, uma sobredose de boas intenções ou de ódio, a emoção
reativa, uma espécie de praga de gafanhotos sempre em movimento, a
"Psicologia das multidões", de Gustave Le Bon, versão 4G, em que a
multidão nunca está junta, só precisa de um interface pessoal. Mas por
mais assombrosas que sejam milhares de partilhas de um post, suspeito
que nunca poderão substituir o que senti na primeira conversa que tive
com a dona Otília.
Um dos significados da palavra virtual? "Aquilo que não existe".
Tal como surgiu, o interesse pela dona Otília também desapareceu
depressa, não sem que várias pessoas (algumas através das redes
sociais) a tenham ajudado. Uma funcionária da Santa Casa procurou um
quarto. Um piloto da TAP pagou os medicamentos, uma escritora e uma
blogger a conta do café.
Em todos este tempo – quase dois meses – um ministro demitiu-se por
ameaçar bofetadas a cronistas no Facebook. Vi amigos brasileiros
bloquearem outros durante a polémica do impeachment presidencial. No
funeral do Nicolau Breyner havia quem fizesse selfies e as colocasse
nas redes sociais. E, entretanto, alheia a tudo isso, a dona Otília ia
tentando arranjar um quarto, passava as manhãs e as tardes na rua,
teve consultas médicas e experimentou feijoada brasileira pela
primeira vez – confessou-se desiludida, disse gostar mais da
transmontana. Tendo sido viral, a dona Otília não faz a mínima ideia
do que é ser viral.
Durante anos, seguramente armado em esperto, citei Tom Wolfe com o
propósito de exaltar a mística em redor dos escritores: "A realidade é
um bom sítio para visitar, mas eu não moraria lá". Hoje, no entanto,
entendo que se a ficção é um refúgio onde vamos para fazer sentido das
coisas, é na realidade que as vivemos. Não há volta a dar. Ter milhões
de seguidores no Twitter pode ser uma carreira ou até uma façanha. Mas
sei que não quero ser viral.
Esta manhã ligou-me a dona Otília. Eu não tinha respondido ainda à sua
chamada do dia anterior. Comecei a desculpar-me. Ela interrompeu-me.
"Era só para dizer que já estou no novo quarto, foi a doutora da Santa
Casa que me arranjou. Só posso ficar vinte dias, mas gostava muito que
viesse cá vê-lo, dar-me a sua opinião".
Não sou ingénuo para decretar um final feliz. A vida só permite
interlúdios. Mas esta, ao menos, é a vida real, insuficiente e plena.
A vida como ela é.
Hugo Gonçalves é escritor.
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