12 Junho 2016 Ana Cristina Marques
http://observador.pt/especiais/mario-cordeiro-sou-gestor-dos-meus-filhos-nao-dono/
É benfiquista ferrenho, escritor compulsivo e pai de cinco. Aos 60
anos, o pediatria Mário Cordeiro conta numa entrevista de vida como
foi crescer entre sete irmãos e numa família de médicos.
É o mais novo de oito irmãos. Cresceu no seio de uma família grande
numa moradia no Restelo, mas nem por isso se sentiu especialmente
protegido. A infância ficou marcada por picardias fraternais e por um
universo infantil que lhe traçou o rumo profissional. O pediatra Mário
Cordeiro foi tio pela primeira vez aos 10 anos — hoje conta 50
sobrinhos e sobrinhos-netos — e lembra-se dos telefonemas que o pai, o
também pediatra Mário Cordeiro, recebia à hora de jantar, com
pacientes do outro lado da linha a pedirem, desesperados, conselhos
médicos.
Os laços familiares estendem-se a Goa, na Índia, não que isso tenha
influenciado a forma como foi educado, nem tão pouco a forma como
educou os cinco filhos (foi pai pela primeira vez aos 23 anos e, pela
última vez, aos 46). Ainda não conhece Goa, mas a viagem está em
carteira. Debruçou-se antes na escrita, não fosse ele um "jornalista
falhado" que já escreveu mais de 30 livros. Da escrita à intervenção
política: Mário Cordeiro diz não ter filiação, mas trata o
primeiro-ministro António Costa por tu caso o encontre na rua — os
pais de ambos foram vizinhos na mesma aldeia e em tempos brincaram
juntos.
Um dos pediatras mais conhecidos no país — já habituado a dar
entrevistas longas –, começou por ser um rapaz tímido, incapaz de se
rir de si próprio, além de ser existencialista. Com dez anos
determinou que ia morrer aos 54. Hoje com 60, diz que os pais não
devem ser escravos dos filhos, tal como os avós não o devem ser dos
netos. Reclama tempo para si, para a escrita, para o violino que está
a aprender a domar e para o Benfica, a sua derradeira paixão.
Um bom pediatra tem de ser sempre um bom pai?
É uma boa pergunta. Acho que a definição de um bom pai tem muito que
se lhe diga. Houve um psicólogo infantil inglês que, nos anos 1950,
descreveu o conceito de "mãe suficientemente boa" como sendo aquela
que fazia o seu serviço, não era perfeita e ninguém lhe devia exigir
que fosse. Acho que com os pais é a mesma coisa. A maioria dos pais
são bons no sentido em que tentam fazer das tripas coração para prover
às necessidades das crianças. Cada vez mais os pais estão envolvidos a
todos os níveis, não apenas em brincar, mas também no cuidar e no
mimar. Isso foi uma das boas coisas que a entrada das mulheres no
mercado de trabalho trouxe — os pais recuperarem uma coisa que era
deles e que durante milénios esteve ausente. Ser bom pediatra… acho
que nos obriga a estar atentos. E tendo-se passado por agruras
enquanto pai entende-se mais [os pacientes]. Passei por noites em
claro, birras para comer ou para dormir… Tive uma coisa completamente
ocasional em que um dos meus filhos só não teve uma morte súbita
porque, por acaso, se apagou quando estava ao meu colo. É daquelas
coisas… ele não estava 24 horas ao meu colo. Com tanta sorte para ele
e para todos nós, reanimei-o logo ali. Foi um susto de todo o tamanho.
Ele tinha quatro ou cinco meses e, de repente, deixou de respirar e o
coração deixou de bater. Por sorte estava ao meu colo. Se tivesse sido
cinco minutos antes ou cinco minutos depois, podia estar no berço,
como estava praticamente o dia todo.
Mas considera-se um bom pai?
Acho que tentei e que tento ser um bom pai no seguinte aspeto: educar,
dar mimo e afeto, estabelecer limites. Falo em educar para a
autonomia, de dar liberdade progressiva e, a certa altura, deixá-los
conduzir o seu próprio percurso de vida. Com os mais velhos, posso
comentar isto ou aquilo, mas nunca interfiro na vida deles. Com os
mais novos também tento fazer o mesmo, progressivamente claro. Mas
dar-lhes não só autonomia no pensar, como também no estudo, no ir a pé
para a escola… Tudo para que um dia eles sejam donos da sua própria
vida. Claro que terei cometido erros, terei gritado quando não devia,
terei sido injusto em pensar que eles fizeram uma coisa quando na
verdade não o fizeram. De certeza que a minha reação já foi, por
vezes, desproporcionada. Eles farão um juízo melhor. Mas pelo menos
fiz o que pude.
Tem cinco filhos e cinco netos, 50 sobrinhos e sobrinhos-netos.
Considera-se um homem de família?
Gosto do conceito de família e do de lar. Mas gosto ainda mais do
conceito de tribo. Na idade adulta temos de ter à nossa volta, em
saídas, programas ou relações, várias pessoas. Não é preciso ser uma
multidão, acho que a vida não é uma página de Facebook. A vida é feita
de alguns amigos. Essas pessoas podem ser familiares, amigos, primos,
conhecidos… Estou a lembrar-me da senhora de 90 anos a quem compro o
jornal todos os dias ali na esquina. Há 70 anos, incluindo domingos,
que ela está no seu posto a vender jornais. Estabeleci com ela uma
relação afetuosa. Falamos sempre. Para mim é inconcebível sair de casa
sem dizer adeus à dona Arlete. No outro dia, quando vi que ela não
estava, deu-me um baque. Estava lá o filho que viu a minha cara e
disse "a minha mãe foi só fazer uns exames". São afetos e pouco mais
sei sobre a vida dela. É uma pessoa que faz parte da minha tribo.
Considerando os irmãos, que tenho muitos, na infância e na
adolescência é normal eles andarem todos juntos, com picardias, com
competições ou com uma grande união. Acho que na idade adulta a pessoa
vai-se definindo em termos de autonomia, em termos de identidade, e os
pontos comuns podem permanecer ou não. Eu não acredito que os chamados
laços de sangue sejam uma união suficientemente forte para, se tudo o
resto não existir, se manter esse conceito de família. O que tenho é
um conceito de lar: é bom chegar a casa para alguém. Creio que a morte
dos pais é muito simbólica. É a libertação dos filhos, digamos, de uns
em relação aos outros. Muitas vezes ainda se mantém alguma unidade
porque ainda há a mãe ou o pai. Quando ambos desaparecem creio que aí
é que se vê em que planeta cada um está. Manter esse modelo um bocado
obrigatório leva, às vezes, a alguma intromissão entre irmãos,
sobretudo em famílias muito grandes — todas as crianças da família
tentam chegar-se à frente perante os pais, porque há sempre o medo de
que os pais não gostem delas; é o chamado medo do abandono.
Teve filhos em momentos muito diferentes da sua vida. Ser pai aos 23
não é certamente o mesmo que ser pai aos 46. O que mudou? Houve
educações muito diferentes?
É óbvio que sim, ser pai aos 23 e aos 46 é muito diferente, não só
porque passados 23 anos os tempos são outros, mas também porque eu não
era a mesma pessoa aos 23 que era aos 46, seja em termos profissionais
ou pessoais e, por isso, há uma parentalidade diferente. Mas é
engraçado que às vezes falo com pais que não tiveram uma diferença
muito grande e eles próprios dizem que sentem que há uma diferença do
primeiro para o segundo. Se no primeiro um espirro é motivo para uma
ida ao hospital, no segundo filho é mais um "eu acho que ele
espirrou"; no terceiro nem se ouve o espirro. Há uma habituação e a
experiência ajuda. É como andar num avião: da primeira vez pensa-se
que o aparelho vai cair, depois percebemos que os tremeliques fazem
parte da viagem. Acho que também ganhei essa maturidade. Os próprios
filhos também ensinam os pais a serem pais, a perceber os erros que se
cometeram. Eu sou gestor, não sou dono destas crianças. Sou
orientador, vá lá, no sentido da sua autonomia. Obviamente que há
sempre uma palavra a dizer, mas as escolhas dos filhos, sobretudo
quando pensadas e já numa idade mais avançada, são as escolhas deles.
Sempre tive presente a ideia de que tipo de pessoas e cidadãos é que
eles iam ser.
Quando foi a primeira e a última vez que mudou fraldas?
A primeira vez foi em 1979, quando nasceu o meu filho mais velho. A
última deve ter sido com os filhos mais novos — os gémeos nasceram em
2003.
Rejeita a expressão de pai-avô. Porquê?
Não há pais-avôs. Há pais que podem, talvez e a dada altura, fazer
todos os fretes às crianças, mas nem por isso deixam de ser pais —
quanto muito são pais permissivos, que não educam, que se deixam
manipular, que já inverteram o triângulo pai-mãe-filho, no sentido em
que passa o filho a estar na mó de cima. Aquele desprezo de chamar
pai-avô é passar um atestado de incompetência aos pais porque, embora
não seja sempre assim, há o arquétipo de que o pai educa e o avô
estraga. Não são os avôs que têm de educar os netos, pelo menos não
são os principais responsáveis e podem, de vez em quando, transgredir
um bocadinho. Acho que um pai não; um pai tem a obrigação de ser um
farol, um guia, alguém que as crianças vejam como um modelo, mesmo que
depois possam crescer e renegar algumas coisas. Uma vez disse num
congresso que odiaria ter os valores dos meus pais. Eu quero ter os
meus valores: agarrei nos valores dos meus pais e nos de outras
pessoas com as quais contactei, pus tudo no caldeirão e misturei.
Moldei os meus valores, alguns são iguais aos dos meus pais, outros já
não são tão importantes para mim.
Que regras já transgrediu com os seus netos?
Pelo facto de ter filhos pequenos — os gémeos, os mais novos, são
adolescentes, têm 12 — e de ter uma vida muito sobrecarregada de
crianças, não tenho muito tempo e espaço para ser como aqueles avôs
reformados que se dedicam mais aos netos. Eu vejo é que os meus filhos
têm uma postura muito semelhante àquela que eu tive com eles em
relação à educação. Um exemplo: se um deles entrar numa sala e não
disser bom dia, vejo os meus filhos a dizer exatamente o mesmo que eu
lhes dizia. Não tenho muito tempo [para estar] com os meus netos, eles
têm a sua vida e eu a minha. E também faço questão de ter algum tempo
para mim, para a minha vida familiar, para escrever livros. Acho que
não devemos ser escravos dos filhos nem escravos dos netos. Tem de se
ir gerindo as coisas.
É um pai diferente daquele que o seu pai foi para si?
Acho que não. Numa coisa sim, sou mais presente no quotidiano,
presente em horas, vá lá. Muito mais, nem tem comparação. E talvez
seja menos cerimonioso, mas isso também vem com o tempo — há 50 anos
os conceitos, as cerimónias e as relações pai e filho eram diferentes
do que são hoje. O meu pai era uma pessoa extremamente tímida, como
eu, aliás. A timidez é uma coisa que às vezes faz com que a pessoa não
se exponha muito. Só mais tarde, só nos últimos anos [de vida do pai]
entendi que, no fundo, ele era uma porta encostada à qual bastava dar
um jeito com o dedo para a abrir. Não era uma porta fechada à chave.
Descobri isso quando eu próprio era mais velho. Os bocados que me
recordo de passar com ele, que são muitos, eram momentos de
ensinamento e de grande ternura, mesmo que não fosse durante um dia
inteiro, eram momentos para ensinar coisas, dar um passeio ou
conversar. Lembro-me de levar uns carrinhos e de ir brincar para
debaixo da secretária do meu pai enquanto ele trabalhava, enquanto
preparava aulas — não havia computadores, era tudo feito à mão e as
coisas eram mais morosas. Ele adorava ensinar e eu gostava de ouvir.
Coisas que eu agora ensino aos meus filhos, é um passar
transgeracional de mimo, de afeto, através da cultura.
O seu pai era cerimonioso em que aspeto?
Não era nada austero, do género de pai tirano. Nada disso, mas havia
alguma cerimónia implícita na nossa relação. Lembro-me desde sempre
que não me passaria pela cabeça ir chateá-lo quando ele estava a
trabalhar, do género de arranjar birras. Não sei se isto é cerimónia
ou respeito, mas existia naturalmente. Eu sabia que podia conversar
com ele sobre o que quisesse, mas também sabia que ele tinha direito
ao seu tempo. Eu tinha seis irmãs e o único irmão que tinha era da
ponta de cima, casou e saiu de casa tinha eu nove anos [foi tio aos
10], pelo que habituei-me sempre a brincar sozinho, a estar em casa
sozinho, sem ser aquela coisa que eu às vezes vejo de as crianças
estarem sempre a pedir a atenção dos pais. Acho que deve haver sempre
alguma noção de que filhos são filhos, pais são pais, que são gerações
diferentes, o que não quer dizer que haja um conflito geracional.
O seu pai, Mário Cordeiro, foi um pediatra de referência. Também o seu
avô e o bisavô eram médicos. Esta realidade influenciou o seu percurso
profissional?
Não, por acaso não, com muita pena minha porque o meu pai morreu
quando eu ainda não tinha entrado em pediatria, tinha eu 25 anos.
Acabei o curso e fiz o estágio geral de dois anos em Santa Maria. Foi
aí que, por acaso, fiz dois meses de pediatria, sendo que ele era o
diretor de serviço e, confesso, era muito bom vê-lo a passar na
enfermaria e nas reuniões, sentia um certo orgulho porque ele era
realmente muito bom. Na altura não havia tanta tecnologia e as pessoas
tinham de fazer o diagnóstico mais à base da observação, da história
clínica. Hoje em dia nem se pergunta quase nada ao doente, avança-se
logo para os exames, na altura a clínica era feita à base de trabalho
de Sherlock Holmes. Depois disso, fui fazer o serviço médico à
periferia, que na altura era obrigatório (as pessoas iam para fora
durante cerca de oito meses, fazer saúde pública e, depois, havia mais
um ano de medicina geral). Fui para Óbidos. O meu pai morreu quando eu
estava em Óbidos.
Fez-lhe confusão estar longe de Lisboa quando isso aconteceu?
Fez um bocado, ele esteve doente durante algum tempo — teve um
acidente vascular cerebral. Eu morava na Lourinhã, vinha quando vinha,
não havia autoestradas.
Então, o que o fez escolher pediatria?
Acho que foram muitas coisas. Por um lado, vivi sempre rodeado de
crianças e até tive sobrinhos muito cedo [com 10 anos]. Por outro
lado, o meu pai era médico de crianças e, embora não contactasse com
os doentes dele, o universo infantil era muito presente lá em casa.
Não havendo e-mails e não havendo telemóveis, bem como bancos de
urgências, as pessoas telefonavam lá para casa às horas das refeições,
que era quando apanhavam o meu pai em casa. Então, à hora da refeição
assistia a isso. Às vezes os jantares e os almoços eram interrompidos
com esses telefonemas e até nos púnhamos a adivinhar o diagnóstico.
"Acho que o pai vai dizer para dar não sei o quê" — quase que fazíamos
apostas. Vivemos muito esse universo da pediatria. O facto de o meu
pai ser um pediatra não biomédico, e de ser um dos fundadores da
Pediatria Social, fazia com que a saúde estivesse acima da doença. Foi
uma coisa que me fascinou: percebi que esta ciência podia ser vasta e
exigia uma pessoa com uma dimensão completa. Aí comecei a ver a
diferença entre médicos que realmente tinham uma amplitude de
pensamento e de interesses, e outros que só falavam de medicina em
jantares e almoços, deste ou daquele caso.
Foi difícil crescer enquanto profissional na sombra do Mário Cordeiro pai?
Por acaso nunca senti uma coisa nem outra [pressão ou vantagens].
Nunca me senti beneficiado e sei que não o fui — tudo o que fiz foi
por concursos públicos. Mas também nunca senti nenhuma limitação, nem
nunca ouvi "Ou és igual a ele ou és um falhado". Ele nunca me pôs essa
pressão. Lembro-me de na véspera do primeiro exame, que era de Química
ou Física, estar aflito, ter medo de chegar lá e bloquear. O meu pai
percebeu isso e disse-me: "Não pode ter medo de ninguém. Não há razão
nenhuma para ter medo dos professores, pense que tem cá um em casa e
que é com esse professor que vai a jogos de futebol." Isso ajudou-me
imenso a relativizar as coisas.
É o mais novo de oito irmãos. Sentia-se protegido ou esquecido entre
tantos irmãos?
Fomos crescendo. Éramos oito. Tenho 14 anos de diferença do meu irmão
mais velho, ele é o meu padrinho. Os nossos ciclos de vida eram
diferentes. Quando eu nasci ele já estava no liceu, aos nove anos, na
altura em que eu ia entrar no primeiro ano [correspondente ao quinto],
estava ele a sair de casa e, passado um ano, a ter filhos. Lembro-me
de momentos muito engraçados, de quando íamos de férias para o
Algarve. Mas também das noites quentes, de ficarmos até tarde numa
varanda com vista sobre o Tejo, com o meu irmão, de barba comprida, a
tocar guitarra e uma das minhas irmãs, que tinha uma voz magnífica, a
cantar o fado. Mas, se fosse preciso, no dia seguinte andava tudo ali
a picar. Não me senti especialmente protegido, acho que as famílias
grandes às vezes têm isso. Há uma certa picardia. As pessoas às vezes
tornam-se muito críticas e apontam os defeitos uns dos outros. E
quando se é tímido, como é o meu caso, não dá muito para responder e
tem de se "amochar" um pouco. Isso senti um bocadinho.
A timidez acompanhou-o até mais tarde?
A timidez acompanhou-me toda a infância e toda a adolescência, pelo
menos até ao dia em que disse "não pode ser". Comecei a ver alguns
efeitos da timidez no liceu e na faculdade. Estava a ser um handicap
na relação com os outros, com os colegas. Se ninguém falasse comigo eu
não falava também. Aí pensei que não podia continuar assim, caso
contrário prejudicar-me-ia, e aos outros também. E fiz um esforço:
arranjei uma maneira de fingir que não era eu, ou seja, fingia que
estava numa peça de teatro e que era apenas um ator a interpretar um
papel — é aliás um conselho que dou às crianças que vejo que são
tímidas. Recomendo imenso o teatro, o que no fundo implica uma pessoa
a expor-se sem se expor.
Mas a timidez está muito relacionada com a baixa autoestima…
Sim. É um certo medo da avaliação externa, do que é que os outros
possam pensar de mim. É o assumir que, à partida, vão ser muito
críticos e vão ver a parte negativa, os erros — o que aliás é o que
faz o sistema educativo, avaliam-se os erros e não a performance. É
ficar com medo de que isto vai acontecer e que se acontecer eu vou
ficar ainda mais abaixo de cão. Por outro lado, tendo eu sete irmãos e
ainda assim viver um pouco isolado fez com que cultivasse amizades com
vizinhos e aprendesse a rir. Na altura não se falava da autoestima das
crianças nem de sentimentos.
O Mário ria-se, e ri-se, de si próprio?
Sim, também. Primeiro não. No início era um bocado urso. Lembro-me de
ser pequeno e de ser um bocado urso quando me criticavam — também eram
logo sete a criticar-me, era logo uma dose reforçada. Mas às vezes
rosnava. Depois fui aprendendo que é bom uma pessoa rir-se e
reconhecer os próprios erros.
Viveu numa moradia no Restelo. Qual é a primeira recordação que tem dessa casa?
Por acaso, as primeiras recordações que tenho não são dessa casa, mas
sim de uma casa onde fomos passar férias em São Pedro de Sintra, em
julho e agosto. É engraçado que as duas recordações que tenho são duas
traumáticas — na altura tinha três anos, ia fazer quatro, e era muito
miúdo. Uma delas foi de os meus irmãos estarem a jogar num campo de
ténis e de eu vir a correr, cair e esfolar os joelhos. Além de doer,
vi sangue, fiquei um pouco aflito e não tinha ninguém à volta.
Lembro-me, depois, de a minha mãe estar ali a cuidar e a limpar a
ferida. A outra foi num dia em que a minha família, que era católica,
foi à igreja em dia de feira. Estava imensa gente e lembro-me
perfeitamente de sair da igreja e de perder a mão da minha mãe.
Lembro-me de olhar e de não ver ninguém e de ficar um bocado aflito.
Daí a pouco uma senhora veio dizer-me "você é o filho do Mário
Cordeiro, não é? Perdeu-se? Então, vou levá-lo ao pai". Entretanto, o
meu pai estava com os meus irmãos na feira a tentar contar cabeças e a
ver que faltava uma. Só quando vi os meus pais é que… deu-me um pranto
de todo o tamanho. Não contente com isso, o meu pai muito compreensivo
disse "coitado, escolha lá um brinquedo para brincar". Escolhi um
carrinho, uma ambulância, que na altura não era de plástico e sim de
folha. Pego naquilo e faço um corte no dedo.
Foi para o Restelo com que idade?
Eu nasci lá. Nasci na Clínica de São Miguel, que já não existe, e
depois fui logo viver para lá.
Como era a vida nessa moradia? Viviam bem?
Era uma casa grande. Sim, vivíamos bem, mas éramos muito frugais. Tudo
o que fosse desperdício, excesso, show off, sinais exteriores de
riqueza… era zero. Os filhos só tinham aquilo que era necessário. O
meu pai disse sempre: "Tudo o que seja para vocês serem melhores
pessoas, sim senhora." Cursos de línguas, viagens de InterRail com
mochila às costas e a dormir em albergues de juventude… mais do que
isso, nada. Era uma filosofia de vida. Ele próprio tinha tido uma
filosofia de vida jesuíta, com um padre jesuíta que era tio dele e,
por isso, considerava que tudo o que fosse ter por ter era idiota e
que nos faria mal no futuro.
Tinham muitos ou poucos brinquedos?
Havia uns brinquedos na casa, mas como tínhamos um jardim, as
brincadeiras eram ali.
Há algum tempo que diz, em jeito de brincadeira, que é um jornalista
falhado. E chegou a criar o seu próprio pasquim quando tinha apenas 10
anos. Arrepende-se de não ter seguido essa carreira?
Criei um jornal. Fui diretor, chefe de redação e proprietário. Olhe
que nem todos se podem gabar disso. Era O Trapalhadas. Eu gostava
muito de escrever porque também lia muito. Não havia muitas coisas
para fazer para lá disso, só tivemos televisão quando eu tinha 15
anos. O meu pai dizia que a televisão era uma coisa boa, mas sabia que
íamos ficar agarrados a ela. Não o preocupava nada a televisão no
sentido dos estudos porque ele sabia que nós não deixávamos de
estudar. Ele achava era que o tempo livre ia ser passado a olhar para
a televisão e isso é que lhe dava pena. Um dia apareceu com a
televisão porque tinha aberto o segundo canal, tinha começado o Zip
Zip e o homem ia à Lua. Foram as três coisas. Portanto, foi em 1969
que tivemos televisão.
Mas gostava de ter sido jornalista? Porque criou o jornal?
Gostava de escrever e desde cedo que o meu pai me entusiasmou a ler
jornais. Lia muito o Diário de Notícias e o Diário de Lisboa. Achei
sempre muita piada ao jornal, ao facto de reportar notícias, de ter
reportagens, de ter palavras cruzadas, a organização por secções… O
facto de conseguir narrar a realidade — mas também a ficção — e de
estar orientado por espaços de interesse… Era um bocado de papel que
resumia uma série de coisas interessantes, mas que dava para toda a
gente. Era um formato em papel A4, tinha 16 páginas e tinha desde
notícias a novelas — de um número para o outro iam passando histórias
muito épicas –, mas também palavras cruzadas. Era eu que o fazia.
Tinha alguma periodicidade?
Saía quando saía, para aí de três em três meses. Não havia
computadores ou impressoras, escrevia à máquina e depois o meu irmão
fazia fotocópias, então conseguia produzir para aí seis, sete
exemplares. Era uma tiragem enormíssima. Sabe que aprendi a escrever à
máquina de uma forma curiosa. No Liceu Pedro Nunes, onde andei, quando
havia furos as pessoas podiam inscrever-se numa atividade. Como eu e
desporto é uma relação complicada, resolvi aprender a escrever à
máquina numa salinha minúscula, com duas bancadas com três máquinas de
escrever de cada lado. Os alunos podiam ir para lá, meter a folha e
aprender. Não foi útil apenas para o jornal, deu-me imenso jeito
porque muito cedo comecei a passar documentos do meu pai à máquina e
ele pagava. Para um miúdo em férias começar a receber dinheiro era uma
coisa maravilhosa. Mais tarde comecei a passar traduções para um
gabinete de traduções. E escrever tornou-se uma obsessão.
Por falar nisso, é autor de vários livros, não só de pediatria. Há
também obras de romance e poesia. Quantos livros já escreveu?
Devem ter sido para aí uns 30 e tal. Agora vai sair o quinto romance,
em setembro. Mas tenho mais dois praticamente prontos e um terceiro a
meio gás. De poesia já escrevi quatro, um deles uma antologia sobre
"nascer", é a única que existe a nível mundial. Há um tempo comecei
também a escrever peças de teatro e contos.
Escreve todos os dias? Com que frequência?
Todos os dias não sei, às vezes é por surtos. Mas escrevo muito.
Comecei a escrever por gostar de jornalismo. Comecei depois a escrever
para jornais — escrevo para a [evista] Pais & Filhos há mais de 20
anos. Acho o jornalismo uma profissão absolutamente fantástica.
Como é que acha que é um jornal?
Eu já visitei redações. Tenho um filho jornalista, começa por aí. Mas
por acaso visitei-o quando ele estava na escola de jornalismo do El
País e gostei imenso. Na escola dos meus filhos, nas atividades do ATL
onde os pais também participam, dei um curso de jornalismo aos miúdos
do segundo ciclo porque na faculdade davam, durante anos, aulas sobre
jornalismo e saúde para explicar um pouco aos futuros médicos o que
era o jornalismo.
O bichinho ficou sempre?
Sim, sempre.
Considerando um registo mais pessoal, teve três casamentos, sendo que
os seus pais estiveram juntos até morrer. Como acha que são as
relações hoje em dia?
Acho que [hoje] as relações são mais transparentes. Acho que os
conceitos de felicidade talvez tenham mudado um pouco. Não vou dizer
isto em relação aos meus pais porque eles, de facto, amaram-se até ao
fim, mas há realmente a noção de que as pessoas têm de estar juntas
por causa dos filhos, acho que isso vai desaparecendo, porque é uma
falsidade. As pessoas têm de ser pais, mas a sua vida conjugal não
passa pelos filhos. Foi um dado adquirido que talvez tenha feito com
que durante não sei quanto tempo as pessoas não se separassem. Isso ou
então as dependências económicas, as mulheres estavam mais dependentes
dos homens. Ser filho de pais separados era uma coisa esquisitíssima,
era como não ser batizado — lembro-me de um professor dizer que os não
batizados eram como os cães, não tinham alma. Hoje se um professor
dissesse isto tinha um processo e era expulso da escola. Acho que
sendo as relações mais transparentes, duram o que duram. Como dizia o
Vinicius [de Moraes], "o amor é eterno enquanto dura".
Acha que hoje em dia é mais fácil desistir de uma relação do que no
tempo dos seus pais?
Acho que hoje as pessoas são menos tolerantes, no bom e no mau
sentido. Tolerantes no bom sentido por não tolerarem certas coisas,
como humilhações; num mau sentido porque a vida é tão trituradora que,
às vezes, pode-se fazer uma tempestade num copo de água. Às vezes é
realmente complicado descomplicar. Sempre fui adepto de que as
relações, sejam elas de que tipo forem, devem durar o que devem durar.
Nem mais, nem menos. Também há agora uma diferença muito grande face à
esperança média de vida quando comparada com a de há 50 anos.
Provavelmente se hoje fosse dada a casais desses anos o contexto de
hoje, o número de divórcios seria o mesmo de hoje.
Como pediatra fala na boa relação dos pais como contributo para a
estabilidade dos filhos. Que influência é que os três casamentos
tiveram na educação dos filhos?
Acho que os divórcios podem afetar a conceção que as crianças têm de
que o desfazer da relação conjugal implica o desfazer da relação
parental. Às vezes até para nós, adultos, é difícil perceber que o
homem e a mulher são uma coisa e que o pai e a mãe são outra, quanto
mais para uma criança… Isto era pior quando a criança ficava, como a
lei diz, de visita ao pai — não se visita um pai, visitam-se amigos.
Era um termo completamente obsceno, ainda existe, mas desde 2008 a lei
já está muito mais virada para o default ser a guarda conjunta e para
a vivência repartida, o que acho ser mais justo para as crianças. Isso
afeta, mas há estudos que mostram que filhos de pais divorciados não
têm nenhuma diferença em termos académicos ou cognitivos do que os
filhos de pais não separados. A questão é se são objetos de guerra.
Os seus filhos também tiveram medo de perder o pai e a mãe?
Não sei, terá de lhes perguntar a eles. É evidente que há uma
instabilidade, mas é como quando se muda de escola, quando se muda de
cidade. Hoje felizmente as pessoas estão muito mais vocacionadas para
a mudança.
Encarou os divórcios como um fracasso?
Acho que são decisões que se tomam. Creio que nunca são decisões
levianas, são processos, são desgastes.
Voltando à carreira, que contributos acha que já deu à medicina portuguesa?
Colaborei em muita coisa porque também me foi dada a oportunidade. O
que fiz foi sempre um bocado em trabalho de equipa. Trabalhar para a
Direção Geral de Saúde foi realmente uma escola porque tive uma chefe
que me ensinou muitíssimo. Não tinha bom feitio, mas era uma pessoa de
uma correção, de uma ética e de uma exigência enorme. Existia um
boletim de saúde que tinha a parte dos pesos e depois só tinha folhas
em branco. Em relação ao atual — apesar de já ter sofrido algumas
modificações plásticas — eu fui um bocado o seu cérebro.
Que retrato traça da pediatria em Portugal? O que não precisa de ser
mudado e o que ainda faz falta?
Uma das coisas que acho boa é a entrada no mundo pediátrico de uma
data de profissionais, nomeadamente dos jornalistas. Depois, já há a
constatação de que os problemas grandes são mais vastos e não se
resolvem apenas a prescrever antibióticos. Essa é uma das grandes
vantagens, o facto de haver cada vez mais intervenientes que têm
conhecimentos mais vastos — e isto inclui as chamadas medicinas
complementares. Entretanto, acho que o que falta fazer é libertar
algumas mentalidades do espírito profundamente biomédico e
hospitalocêntrico — não é só o hospital que conta, a vida faz-se cá
fora. Há largos anos que não vou aos congressos de pediatria. Não
tenho nada contra os meus colegas, sou amigo de vários, mas
simplesmente acho que estes conclaves não deviam ser só à volta de
doenças e de casos raros. Acho que se devia discutir mais a saúde das
crianças no geral.
Está-se a referir à falta de componente humana?
Sim. É normal [isso acontecer] num hospital, onde há a pressão da
urgência, acrescida da pressão financeira e de produzir números. A
entrada dos gestores na medicina teve efeitos positivos e efeitos
negativos. Era raro nos anos 1980 um médico saber o preço de uma
análise ou de uma radiografia.
Hoje em dia é fácil opinar sobre parentalidade e parece que é preciso
tirar um curso para se ser pai. Opina-se demasiado?
Às vezes exagera-se. É bom que se fale, não tenho nada contra. Não
gosto de visões redutoras e acho bem que se fale das coisas, mas tem
de haver limites. Às vezes sobrecarrega-se o sentimento de culpa dos
pais, a responsabilização, a ideia de ser o pai ou a mãe perfeita.
Depois, há manuais de instrução uns atrás dos outros, tal como nas
dietas. "Deixe de comer açúcar em sete dias", "Perca peso em seis
dias"… Agora também os há para a parentalidade. "Ponha o seu filho a
dormir em seis dias"… Encontrei muitos livros com esta fórmula na
Feira do Livro. Não era sequer "X dicas para o seu filho dormir
melhor". Não, era "em seis dias". Essas coisas são tão complexas, pode
haver "n" motivos para uma criança dormir mal, pelo que isso pode dar
um complexo de culpa brutal aos pais. Primeiro porque geralmente
[esses livros] têm regras tão rígidas que nenhum ser humano consegue
aguentar aquilo e, depois, se ao fim dos ditos dias a crianças
continuar aos berros à noite, os pais vão sentir-se ainda mais
incapazes.
Mas há muitas teorias dentro da parentalidade. Isso pode, de alguma
forma, prejudicar os pais?
Acho que sim. No fundo, é como aquilo que a saúde pública fez nos anos
1960, e que depois provou-se ser totalmente errado. Era o doente
chegar e o médico olhar para análises e dizer "não fume, ande a pé
meia hora por dia, perca peso e adeus". E não dizia como. Dali a um
mês o paciente voltava com o mesmo peso e com o stress acrescido de
não ter cumprido nada do que o médico tinha mandado. Não é assim. É
preciso discutir, negociar com a pessoa. Isto é mau, é armarmo-nos em
deuses. Eu acho que os médicos não são deuses. Dão-se dicas que são
falíveis.
Por falar em deuses, li há pouco tempo que não gosta de dizer que há
pessoas que o seguem. Tem muitos fãs?
Tenho uma página no Facebook que não tem lá nada, portanto… Não sei
quem é que me segue ou deixa de seguir. Não gosto de ter coisas no
Facebook, de estar a anunciar o que faço. Para mim não faz sentido.
Já o acusaram de ser mau no que faz?
Já recebi uma ou outra crítica de pacientes que achei justas, faço
pediatria há muitos anos. Outras que achei injustas. Lembro-me de uma
vez se ter escrito sobre mim num blogue de mães e de alguém comentar:
"Não vão a esse tipo, no outro dia adiaram a consulta por duas horas
porque o fulano tinha de ir para a Assembleia da República". Realmente
era verdade, mas eu tinha ido à Assembleia da República porque ia ser
discutida a questão de transformar o abuso sexual em crime público —
isto já foi há uma data de anos –, e chamaram-me para ir dar a minha
opinião. Eu achei que era mais importante discutir se isso era crime
público do que adiar duas horas uma consulta que era de rotina. Não me
magoou, mas alertou-me para os riscos [da Internet]. Não gosto de
coisas sociais, não gosto de eventos sociais, nem de tendas VIPs —
confesso que fujo delas como o diabo da cruz.
Houve algum caso que o tivesse marcado muito?
Houve dois casos que me marcaram muito ainda no tempo em que eu era
interno de pediatria, em 1985. Um deles em que fiquei felicíssimo foi
um caso de uma miúda que tinha uma leucemia, embora não tivesse muitos
sinais. Houve um sexto sentido entre mim e os pais de que aquela
criança não estava bem. Na altura não havia a forma de diagnosticar
que há agora, mas os pais disseram: "Doutor, a nossa menina não parece
a mesma" e eu olhei para ela e houve qualquer coisa que senti. Ela
curou-se. Outro miúdo que também deu entrada, olhei para ele e vi
sinais de meningite. Um colega meu, que era meu chefe, disse-me "ele
não tem nada, vai para casa". Mas eu escondi a criança na copa, ele
até se chateou comigo. Passado um bocado fui ver e ela tinha mesmo
meningite. Mas tive outro caso em que senti uma solidão enorme, ao ter
de tomar uma decisão às três da manhã sobre uma criança de sete anos
que tinha uma paralisia cerebral gravíssima, daquelas de último grau.
Naquela altura ela entrou e estava a ter uma paragem respiratória e eu
pensei que aquilo não podia continuar assim, era querer enganar a mãe,
que até então tinha vivido para ela, era enganar toda a gente. Fui
falar com a mãe, que estava sozinha, e ela disse-me: "Faça o que deve
fazer". Não foi fácil. Escrevi um poema depois sobre isso. Foi uma
coisa que me marcou muito, ter de dar a ordem. Hoje em dia já não é
assim, hoje há um grupo, está tudo muito protocolado.
Falemos de política. É amigo de Maria de Belém.
Sim, trabalhei com ela no ministério [da saúde].
Qual é a sua filiação política?
Não sou filiado em nenhum partido, mas tenho opções políticas. Nunca
me manifestei muito, mas as pessoas sabem a que área pertenço, nunca
escondi. No nosso país continuam-se a fazer-se telenovelas de que as
pessoas não pertencem a partidos políticos. Veja-se nos EUA onde fazem
filmes e séries políticas que metem um ou outro partido. Se fosse
cá…acho que isto mostra um bocado a nossa imaturidade democrática.
Apesar de ser conservador, politicamente, e de ser católico, o meu pai
era muito progressista no sentido social. A minha mãe era um pouco
mais à esquerda, mas não muito. Tive uma vida de menino burguês, sabia
que ia para a faculdade se quisesse, só não sabia para qual. Nunca
tive essas angústias e não vou andar aqui a esconder. Não digo que
tenha sido uma autoestrada, foi antes um percurso normal com as suas
limitações. Na faculdade tive uma consciência social maior. Tive
episódios curiosos com o Marcelo [Rebelo de Sousa], de quem era amigo.
Eu era colega do irmão dele. Ele, aliás, uma vez fez um filme que se
chamava "Um Dia no Liceu", em que eu, o irmão e um outro colega fomos
os jovens atores de 10 anos. Passado muitos anos, o Marcelo
convidou-nos a ver o filme. Ainda era um filme de fita, em que se
tinha de pôr a bobine.
Aos 15, 16 anos, li Os Miseráveis e aí ganhei claramente consciência
do que eram justiças e injustiças. O livro marcou-me claramente. Na
faculdade deu-se o 25 de abril e eu fiz parte da associação de
estudantes, embora não tivesse filiação partidária, mas foi para
manter a escola a funcionar — muitas delas pararam, foram tomadas pelo
MRPP. A Faculdade de Medicina de Lisboa continuou a funcionar. Houve
uma dada altura, nos anos 1974, 1975, em que fiquei muito próximo do
PS, conhecia algumas pessoas de lá. Só tive uma intervenção política
que foi mais visível, que foi fazer parte da comissão de honra do
António Costa na candidatura à câmara de Lisboa.
Fez parte da comissão de honra de António Costa por se conhecerem?
Não, foi uma opção política. Não somos amigos. Se o vir na rua
falamos, damos um abraço, mas [não somos amigos] no sentido de ser
visita de casa.
O primeiro-ministro António Costa tem origem goesa católica do lado
paterno. O seu pai e avô eram goeses. Há alguma ligação entre as
famílias?
Por coincidência, o meu pai e o pai do António Costa eram amigos e
foram vizinhos em Goa, duas casas abaixo. O que tem muita graça é que
eram vizinhos numa aldeia no distrito de Bardez, em Goa. Por
coincidência eram os dois de lá. Depois o meu pai veio para cá e ele
também veio. Em criança brincavam e conheciam-se.
O Mário já nasceu em Portugal, mas o seu pai só veio para cá com 14
anos, depois de uma travessia de barco que durou meses — ainda veio
pelo cabo da Boa Esperança. Que memórias tem de Goa?
Não tenho ligação a Goa, mea culpa, mea culpa. Já lá devia ter ido, é
indecente que ainda não tenha ido. É daquelas viagens que quero ir com
tempo e com tudo preparado que… ainda está à espera [de ser
concretizada]. As minhas irmãs já foram, os sobrinhos também. Mas nem
eu nem os meus filhos fomos ainda. Fiz aquele livro sobre o meu avô
[Júlio Gonçalves — de Goa a Lisboa], sobre as memórias dele — é
engraçado que, como ele descrevia tão bem a vida em Goa e a sociedade
goesa, quase sinto que estive lá.
Há alguma influência de Goa na forma como foi educado?
Não, por acaso não. Nem comemos muita comida indiana. De vez em quando
a minha avó lá mandava de barco umas latas redondas com caril já
feito, que aguentavam no porão do barco durante não sei quanto tempo,
mas era uma coisa muito rara. Depois quando abriu o restaurante Velha
Goa, em Campo de Ourique, começámos a lá ir e até fiquei muito amigo
do Sebastião, que na altura era o chefe dos empregados.
Come comida indiana por opção?
Sim, gosto muito de cozinhar, adoro culinária. Os meus filhos comem
picante, malaguetas à dentada.
Num registo completamente diferente, é a favor da adoção por casais do
mesmo sexo. Quais os seus argumentos e que tipo de respostas já
recebeu?
Não tive uma única reação nas chamadas redes sociais. Acho que não
"incendiei" nenhuma rede social. As reações que tive foram muito
positivas. Eu sou a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, da
adoção por casais do mesmo sexo e da lei da procriação que foi agora
implementada. Tenho enormíssimas reservas, que já expus há muitos
anos, sobre as chamadas barrigas de aluguer, seja de aluguer com ou
sem dinheiro envolvido. Tenho reservas porque não tenho conhecimento
científico sobre até que ponto é que isto afeta ou não as pessoas
intervenientes, mais do que as próprias crianças — estou mais
preocupado com as "mães de aluguer". Não sei se fica ali uma mulher a
sofrer. Se houver essa hipótese…não pode haver leis que põem como
hipótese alguém sofrer assim.
Quando fez 10 anos declarou que ia morrer aos 54 anos. Porquê?
Às vezes fico a pensar porque é que com 10 anos se reflete sobre a
morte, mas acho que isso era de ler e de pensar muito. Não defendo que
logo aos 10 anos se comecem a ler os clássicos russos, acho que uma
boa banda desenhada é ótimo, mas ler faz falta. É o tempo da leitura e
o tempo da reflexão. Não sou nada esquisito em relação ao que se lê,
agora o ler obriga a pensar. Lembro-me do dia em que fiz 10 anos,
lembro-me desse dia como se fosse hoje. Acordei e fiz as seguintes
contas: "Em 2000 vou ter 44 anos, como tenho agora 10, somo-lhe estes
dez". É a única explicação. O certo é que, tenha sido essa a equação
ou não, a partir daí construi a minha vida com base numa esperança
média de vida de 54 anos. Acho que isto tem que ver com a minha
angústia existencial, que é uma coisa muito forte e tem que ver com o
fazer — a necessidade de escrever, de fotografar, ouvir música, tocar
piano, fazer cursos de história, de devorar tudo.
Atualmente, qual é a sua relação com o tempo?
Sinto que perdi muito tempo na vida, como aliás toda a gente. Mas
sinto que gastei tempo demais com coisas e pessoas que não
interessavam e que eu já tinha notado. Agora a conclusão a que chego é
que a finitude do tempo angustia-me bastante e tento aldrabá-la mas,
de vez em quando, ainda sinto isso e o que tento fazer é não gastar
tempo com coisas que não interessam. E aprendi a dizer "não", que é
uma coisa que eu raramente dizia. Há peditórios para os quais já dei,
já prestei serviço. E às vezes digo que não. Comecei também a
desenvolver outras coisas que acho piada, como aprender a tocar
violino, que era um sonho de criança. Comecei em setembro e acho
imensa graça. Gosto de aprender.
Gosta de aprender e de ver futebol. Sempre foi do Benfica?
Cresci com o Benfica, o meu pai era do Benfica. Ia sempre ele, um
outro médico que era ferrenho do Sporting, e outro que era ferrenho do
Porto ver os jogos. Eu ia com eles — os outros não tinham filhos
pequenos. Habituei-me desde miúdo a ir ver os jogos ao Estádio da Luz,
sobretudo os jogos à noite, o que para mim era uma emoção — um miúdo
de sete ou oito anos a ver jogos à noite, então jogos internacionais.
Deixava-se o carro em "cascos de rolha", ia-se a pé, ia-se andando
cada vez mais depressa e a multidão a aumentar. Fiquei sempre
benfiquista, foi uma enormíssima paixão. E agora com os miúdos — dois
deles são do Benfica, o outro é do Sporting. Com os do Benfica… somos
sócios, vamos ao estádio, vemos jogos juntos, fazemos aquela mística
toda. Eu vibro no estádio, não consigo dizer palavrões de fazer parar
um carroceiro, mas dar pulos, berros, abraçar a pessoa que está ao
lado, isso sim, e sofrer quando se perde. E estas histórias como
benfiquista, a história do Jesus, malandro, isso faz parte. O Benfica
é talvez a minha maior paixão. O resto relativizo tudo.
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