http://observador.pt/especiais/robos-que-fazer-com-toda-esta-gente-superflua/
José Carlos Fernandes
Desemprego maciço em quase todos os sectores de actividade: é o que a
automatização nos traz, avisa Martin Ford em "Robôs", um livro que
traça um cenário inquietante para o futuro próximo.
A ficção científica abunda em narrativas em que os robots se convertem
em ameaças para os humanos, desenvolvendo ideias próprias, passando a
trabalhar para os seus próprios interesses e procurando mesmo a
sujeição ou até o extermínio dos seus amos. Acontece que os problemas
que já estão a afectar-nos são causados por máquinas servis e
cumpridoras, que fazem precisamente aquilo para que foram concebidas –
é para essa insidiosa distopia robótica que nos alerta Martin Ford em
Robôs: A ameaça de um futuro sem emprego(Bertrand, tradução de José
Vale Roberto, 407 pg.).
Bowley estava errado
Em 1937, após análise de dados históricos da economia britânica, o
economista Arthur Bowley concluiu que a repartição do PIB entre
trabalho e capital tendia a manter-se constante no longo prazo. John
Maynard Keynes corroborou esta conclusão e, em 1964, Paul Samuelson,
outro economista de renome, cunharia, na 6.ª edição do seu influente
manual de economia, a expressão "Lei de Bowley", já que a relação
descoberta por Bowley fora amplamente confirmada no pós-II Guerra
Mundial, com o crescimento da remuneração do trabalho a acompanhar de
perto o espectacular aumento da produtividade.
O economista Arthur Bowley (1869-1957)
Porém, a partir do início da década de 1970, a remuneração do trabalho
começou a estagnar, embora a produtividade continuasse a subir. O
fosso entre a remuneração do trabalho e do capital não tem parado de
aumentar desde então, com nítida aceleração a partir do ano 2000. Ford
chama a atenção para o facto de a quota-parte do trabalho incluir "os
enormes salários dos presidentes das comissões executivas, dos
executivos de Wall Street, dos super-atletas e estrelas de cinema",
que, em vez de descer, "dispararam que nem foguetões" – nos EUA, o
rácio entre o salário médio dos executivos e o salário médio dos
trabalhadores passou de 30:1 em 1950 para 343:1 no século XXI. Isto
significa que a remuneração do trabalhador comum registou uma queda
proporcional ainda maior do que os dados englobados da remuneração do
trabalho dão a entender.
Só entre 2007 e 2011, a receita média anual gerada por cada empregado
das grandes empresas passou de 378.000 dólares para 420.000 dólares –
um aumento de 11%. Também a percentagem dos lucros das empresas no
"bolo" do PIB aumentaram genericamente a partir do ano 2000, tendo a
queda causada pela crise de 2008 sido seguida por uma forte
recuperação a partir de 2010.
Algum do desvio em favor da remuneração do capital resulta de as
grandes empresas disporem de meios para pagar a advogados e
contabilistas especializados em "planeamento fiscal agressivo", um
eufemismo para evasão fiscal dentro dos limites legais. Em Condenados
a repetir a história, Bill Fawcett traça um paralelo entre a
desigualdade no tempo do Império Romano e a do presente: "Tal como as
mega-empresas dos nossos dias, também [as famílias dos senadores e as
linhagens patrícias] quase não pagavam impostos […] Em Roma eram os
patrícios ricos que decidiam quem pagava impostos e não surpreende que
não se obrigassem a pagá-los. Os patrícios dos nossos dias são as
grandes empresas e conseguem muitas vezes fazer a mesma coisa através
dos lobistas".
Por vezes nem são precisos lobbies, pois os próprios políticos são os
primeiros a sair em defesa do "planeamento fiscal agressivo":
referindo-se aos estratagemas da Google nesse domínio, Boris Johnson
(que entretanto se tornou Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino
Unido) declarou, em Janeiro passado, que "é absurdo culpar a empresa
por não pagar os impostos. Talvez queiram também culpar um tubarão por
comer focas". A ideia implícita na analogia de que o instinto
predatório do lucro-a-todo-o-custo é "natural" e está inscrito no DNA
das grandes empresas é muito revelador.
Made in China
Outra explicação para o crescente desfasamento nas remunerações do
capital e do trabalho está na globalização: as tarifas aduaneiras
baixas e os progressos no transporte e na logística colocaram os
produtos fabricados na China e noutros países do Sudoeste Asiático de
mão-de-obra barata a competir em pé de igualdade com os fabricados no
Ocidente. Um dos efeitos foi a baixa de preço de uma vasta gama de
produtos – dos brinquedos aos electrodomésticos – o que beneficiou o
consumidor ocidental; por outro lado, foi como se tivessem entrado no
mercado de trabalho do Ocidente centenas de milhões de trabalhadores
dispostos a trabalhar por uma fracção do salário mínimo que se pratica
nos EUA ou na Europa. Pouca diferença faz que a fábrica na China ou no
Vietnam opere por conta de uma empresa chinesa ou vietnamita ou seja
propriedade de um fabricante ocidental que encerrou a sua fábrica em
Portugal e se instalou no Sudoeste Asiático – o efeito é a queda dos
salários e o aumento das taxas de desemprego entre os trabalhadores no
Ocidente.
Pode argumentar-se que, no cômputo global, o saldo é positivo, já que
centenas de milhões de chineses que viviam na pobreza têm agora a
perspectiva de usufruir dos confortos da classe média-baixa, mas isso
é fraco consolo para os operários ocidentais que viram o seu nível de
vida cair ou foram despedidos.
Em O capital no século XXI, o livro de 2013 (publicado em Portugal no
ano seguinte, pela Temas & Debates) do economista Thomas Piketty, que
converteu este numa estrela pop à escala planetária, adianta-se uma
explicação para esta disparidade: a taxa de retorno do capital é maior
do que a taxa de crescimento económico, o que leva à concentração da
riqueza nas mãos dos capitalistas, o que gera uma sociedade
disfuncional e instável. Porém, observa Ford, Piketty parece pouco
interessado em analisar as raízes da disparidade e "a palavra robot
aparece apenas uma vez nas quase 700 páginas do seu livro". Todavia,
lembra Ford, a automatização é uma das forças que mais contribui para
o hiato em expansão entre as remunerações do trabalho e do capital.
Trabalhadores da indústria automóvel em greve, na fábrica Fisher Body
n.º1 da General Motors, em Flint, Michigan, 30 de Dezembro de 1936
Visões futuristas
Consta que em 1943, Thomas Watson, presidente da IBM, terá dito que
"Em todo o mundo haverá lugar para talvez cinco computadores". A frase
tornou-se num símbolo da incapacidade dos decisores em antever o
desenvolvimento da sociedade, e em particular do papel da informática
e dos computadores, e é citada com frequência, ainda que nunca tenha
sido encontrado qualquer indício que a vincule a Watson. Outra
afirmação de teor análogo é atribuída a Ken Olsen, co-fundador da DEC
(Digital Equipment Corporation) e um dos pioneiros dos computadores,
que terá afirmado, em 1977, que "não há qualquer razão para uma pessoa
ter um computador em casa". Neste caso a atribuição é correcta, mas
foi descontextualizada: Olsen referia-se a um computador que
controlasse o funcionamento da casa (aquilo a que hoje se chama
domótica), não a um computador para usar (para trabalho ou lazer) em
casa.
O facto de estas citações serem apócrifas ou retiradas de contexto,
não significa que o papel a desempenhar pelo computador não tenha
sido, efectivamente, subestimado e que muitas pessoas em cargos de
responsabilidade não tenham feito profecias semelhantes – foi o caso
de Charles Galton Darwin (neto do grande naturalista do século XIX),
que, em 1946, estando à frente do National Physical Laboratory, o
instituto que liderava a pesquisa cibernética no Reino Unido, calculou
que "uma máquina bastará para resolver todos os problemas que um país
lhe ponha".
Mais ou menos pela mesma altura – em 1949 – Norbert Wiener
(1894-1964), um dos pais da cibernética, da robótica e da automação,
redigiu um artigo intitulado A Era da Máquina ("The Machine Age"), em
resposta a uma solicitação do The New York Times, que pretendia que o
autor do seminal ensaio Cybernetics (1948) desse a sua visão do mundo
futuro.
Norbert Wiener
Ford cita alguns excertos muito pertinentes de A Era da Máquina: "Tudo
o que podemos fazer de forma clara e inteligível, podemos fazê-lo com
uma máquina", o que poderia conduzir a "uma revolução industrial de
uma crueldade absoluta" realizada por máquinas capazes de "reduzir o
valor económico do operário fabril com tarefas de rotina a um ponto
tal em que este não tem nenhum valor, seja qual for o preço".
Porém, Martin Ford omite as ideias mais relevantes e visionárias do
artigo de Wiener, que, aliás são expressas logo na abertura: "Por esta
altura, o público já está plenamente consciente de que se avizinha uma
nova era da máquina, baseada no computador e não nas máquinas de
potência. A tendência destas novas máquinas é substituir o julgamento
humano a todos os níveis excepto o mais elevado, e não substituir a
força humana pela força da máquina". O público e os decisores não
estavam despertos, em 1949, para a distinção crucial entre máquinas
que executam trabalho físico e máquinas que executam trabalho de
análise e julgamento, e ainda hoje parecem não ter percebido que nem
sequer os empregos altamente qualificados estão a salvo dos
avassaladores progressos tecnológicos.
A verdade é que a advertência de Wiener não foi ouvida, pois o artigo
não chegou a ser publicado: Lester Markel, editor do The New York
Times, solicitou a Wiener que reescrevesse alguns trechos e, após
alguns equívocos e falhas de comunicação entre o autor e o jornal, o
artigo acabou por ser esquecido, só tendo sido redescoberto em 2013.
De qualquer forma, não tardou a surgir novo aviso, ainda que não sob a
forma de um ensaio de um artigo de um distinto professor do
Massachusetts Institute of Technology mas de um obscuro romance de
ficção científica, o primeiro de Kurt Vonnegut.
Player piano, de 1952 (que nalgumas reedições foi rebaptizado
comoUtopia 14), decorre num tempo em que quase todas as tarefas
desempenhadas por seres humanos foram transferidas para máquinas,
gerando uma imensa massa de gente apática e que vive uma existência
esvaziada de sentido. É uma das raríssimas distopias robóticas que não
envolve robots revoltados mas robots obedientes.
Vonnegut diria mais tarde que Player piano era "um romance sobre
pessoas e máquinas em que as máquinas levam quase sempre a melhor,
como acabará por acontecer" e que procurava responder à questão de
"como amar pessoas que não servem para nada".
"Breaker boys" (rapazes incumbidos de fraccionar o carvão à saída da
mina), Hughestown Borough, Pennsylvania, 1908-12, por Lewis Hine
Mais um aviso ignorado
Apesar de o acaso ter remetido o artigo premonitório de Wiener para
uma gaveta e de os decisores políticos não costumarem ter em linha de
conta as alegorias contidas em obscuros livros de ficção científica,
em 1964 foi emitido um novo alerta e desta vez provinha de uma
comissão formada reputados cientistas e intelectuais norte-americanos.
O relatório da auto-designada Comissão Ad Hoc Sobre a Tripla
Revolução, que incluía, entre outras sumidades, o Prémio Nobel da
Química Linus Pauling e tinha como principal ideólogo o economista
Robert Theobald, previa que a "cibernética (ou automatização)" iria
gerar uma economia em que "a produção potencialmente ilimitada pode
ser conseguida por sistemas de máquinas que exigirão pouca cooperação
com os seres humanos", de que resultaria desemprego em massa e
desigualdades sociais e, consequentemente, uma queda na procura de
bens e serviços.
O relatório, escreve Martin Ford, teve ampla difusão nos media e
causou apreensão nos meios políticos e intelectuais, mas não teve
efeitos práticos e as suas propostas – nomeadamente a criação de um
"rendimento incondicional" para todos os cidadãos, um conceito de que
Theobald foi pioneiro – foram esquecidas por umas décadas.
Perigo: Máquinas em movimento
Embora tal "distinção" seja por vezes atribuída a Kenji Urada, um
engenheiro de manutenção da Kawasaki, a primeira vítima confirmada de
um robot foi Robert Williams, um operário de uma fábrica da Ford Motor
Company em Flat Rock, Michigan, que, a 25 de Janeiro de 1979, foi
mortalmente atingido na cabeça pelo braço de um robot. Este não era um
desses robots dotados de livre arbítrio e intenções malévolas
imaginados pelos escritores de ficção científica, mas uma máquina
subserviente que se limitou a executar as acções para que fora
programado – o humano é que cometeu um erro de julgamento e colocou
inadvertidamente a sua cabeça na rota do braço mecânico.
Os erros humanos e as falhas de equipamento são impossíveis de
eliminar, pelo que continuarão a ocorrer acidentes em que
trabalhadores humanos são mortos ou feridos por robots. Não são porém
estes raríssimos acidentes a maior ameaça colocada pelos robots aos
trabalhadores – é que os robots tomem conta, progressivamente, dos
postos de trabalho humanos.
O perigo é antigo e a sua percepção também: ainda a Revolução
Industrial estava em embrião e já havia operários ingleses a ver nos
teares mecânicos uma ameaça ao seu ganha-pão – a destruição de
maquinaria industrial foi criminalizada na Grã-Bretanha logo em 1721 e
punida com degredo, sendo a legislação modificada, pelo Frame-Breaking
Act de 1812, de forma a incluir na punição a possibilidade de pena de
morte.
Luditas escaqueiram um tear
Na Grã-Bretanha dos séculos XVIII-XIX, o termo "ludita" começou por
designar um aderente do movimento que fazia oposição violenta ao
progresso tecnológico, nomeadamente através da sabotagem, mas nos
nossos dias o âmbito alargou-se e pode mesmo englobar alguém que
manifeste reticências quanto à indiscutível superioridade do mais
recente modelo de iPhone sobre o modelo anterior. Ironicamente, o
tecelão Ned Ludd, um rapaz dos arredores de Leicester que, em 1779,
terá destruído dois teares à martelada e ficou na mitologia como
fundador e líder do ludismo, poderá não ter praticado tal acto por
convicção ideológica anti-automação mas por mera rebeldia adolescente,
ou poderá mesmo nunca ter existido.
Ned Ludd, também conhecido por Rei Ludd, liderando uma revolta operária
Na verdade, antes dos luditas britânicos, já no outro lado do Canal se
assistira a um episódio de rejeição da nova tecnologia na indústria
têxtil. Jacques de Vaucanson (1709-1782), um prolífico inventor
francês, começara a fabricar autómatos aos 18 anos na sua oficina em
Lyon e conseguira chamar a atenção para o seu talento ao apresentar,
em 1737, um tocador de flauta mecânico, com um repertório de uma dúzia
de melodias.
Jacques de Vaucanson
A fama dos autómatos accionados por mecanismos de relojoaria de
Vaucanson espalhou-se pela Europa, de forma que Frederico II da
Prússia lhe propôs um cargo na sua corte, com a fabulosa remuneração
de 12.000 libras por ano. Vaucanson preferiu ficar em França e em 1741
foi nomeado inspector-chefe da indústria da seda, para a qual
apresentou ambiciosos planos de reforma, a nível da tecnologia e dos
métodos de trabalho. Os operários da indústria de seda perceberam o
que as reformas de Vaucanson significariam para os seus empregos,
saíram para as ruas de Lyon em revolta (não precisaram de Twitter nem
de Facebook para convocar a sublevação) e apedrejaram Vaucanson, que
teve de escapulir-se da cidade disfarçado de frade.
Tear aperfeiçoado por Vaucanson, 1748
De regresso a Paris e ressabiado com a incompreensão com que as suas
ideias para optimizar a manufactura de seda tinham sido recebidas
pelos tecelões, Vaucanson investiu anos de pesquisa no desenvolvimento
de um tear mecânico completamente automático, que proclamava,
permitiria que "um cavalo, um boi ou um burro fossem capazes de tecer
um tecido mais belo e muito mais perfeito do que são capazes os
tecelões mais habilidosos".
Fiação Rhodes Mfg. Co., Lincolnton, Carolina do Norte, 1908, por Lewis Hine
Luditas à parte, a automatização parecia, até há pouco tempo, uma
forma de libertar o homem de executar tarefas pesadas, sujas,
repetitivas, monótonas, arriscadas e prejudiciais para a saúde. Foi a
mecanização do trabalho agrícola que permitiu que, no período de um
século, a percentagem de população dos países industrializados
dedicada à agricultura caísse de 50% para 2 ou 3%, conseguindo ao
mesmo tempo, que a produção agrícola aumentasse apreciavelmente. A
indústria foi outro sector em que a automatização permitiu dispensar
uma fracção significativa dos trabalhadores. Nada disto parecia
terrivelmente preocupante – excepto para quem perdia o emprego e não
conhecia outro mister – porque se acreditava que o sector terciário
absorveria todas as mãos libertadas pelos sectores primário e
secundário.
Foi por acreditar nisto (e devido à obsessão das multinacionais em
minimizar custos de produção sem olhar a consequências) que o Ocidente
se desindustrializou e delegou na China a missão de ser a "fábrica do
mundo". Mas na segunda década do século XXI surgiram dois fenómenos
que contrariaram esta tendência: na China, a subida dos salários dos
trabalhadores industriais fez com que a produção sofresse nova
deslocalização, desta feita para o Vietnam, Tailândia, Cambodja,
Indonésia, Bangladesh, Filipinas e outros países do Sudoeste Asiático
com mão-de-obra mais barata; por outro lado, a automatização nos
países ocidentais permitiu que a proporção dos custos da mão-de-obra
no produto final baixasse significativamente, de forma que, devido à
proximidade dos mercados, as fábricas ocidentais voltassem a ser
competitivas face às fábricas chinesas e algumas unidades fabris
regressassem ao país de origem e gerassem algum emprego (mas muito
menos do que aquele se perdera antes).
Fábrica da Nike no Vietnam
A China, que necessita de manter uma taxa de crescimento elevada e uma
taxa de desemprego baixa para manter a paz social, vê-se obrigada a
reagir a este duplo desafio: por um lado, abandonando o modelo da
competitividade assente em salários baixos e apostando em produtos
mais sofisticados; por outro, apostando também na robotização:
"Substituam os seres humanos por robots" foi a palavra de ordem
lançada não por um capitalista chinês sedento de lucro, mas por Hu
Chunhua, membro do Politburo do Partido Comunista e uma das figuras
emergentes da política chinesa. Aparentemente, Hu não está preocupado
com o facto de o aumento de competitividade trazida pelos robots ir
lançar milhões de chineses no desemprego.
Nada parece deter a robotização da indústria e até os mais recentes
beneficiários da deslocalização estão ameaçados por ela: um estudo da
Organização Internacional do Trabalho divulgado em Julho passado
estima que 56% dos postos de trabalho no sector secundário no Sudoeste
Asiático, tipicamente com baixo nível de especialização e salários
baixos, irão desaparecer nos próximos 20 anos – são 137 milhões de
pessoas, repartidas maioritariamente pelas indústrias de vestuário,
calçado desportivo e componentes para automóveis. A Tailândia, cujo
desenvolvimento neste último domínio lhe valeu o cognome de "Detroit
do Sudoeste Asiático" arrisca-se a ter o mesmo destino da Detroit
original.
O computador entra no domínio do humano
Entre 1998 e 2013 o valor gerado pelas empresas americanas cresceu 42%
mas as horas de trabalho necessárias para o gerar mantiveram-se
constantes. Os optimistas escolhem acreditar que, embora destes
números se possa depreender que são necessárias cada vez menos pessoas
para produzir o mesmo volume de produtos e serviços, as pessoas
"libertadas" destas tarefas menores seriam "requalificadas" e
passariam a desempenhar funções mais "nobres" e, supostamente, mais
bem pagas. De acordo com esta perspectiva, todos os governantes, da
esquerda à direita, passaram a repetir a repetir os mantras da "aposta
na formação e qualificação profissional" e da "educação como paixão".
Com as tarefas humildes, rotineiras e "estúpidas" confiadas a robots,
computadores e redes inteligentes, a força de trabalho humana,
devidamente munida de mestrados e doutoramentos e múltiplos
certificados obtidos em acções de formação, iria consagrar-se apenas a
actividades criativas e de gestão ou que requeressem o sofisticado e
subtil "julgamento humano".
O que ninguém parece ter previsto – excepto Norbert Wiener – é que os
avanços na informática fossem tão rápidos e colossais que muitas
ocupações que se julgavam estritamente dependentes do "julgamento
humano" fossem caindo sob a alçada das máquinas.
Um sinal de alerta poderia ter soado em 1997, quando o campeão de
xadrez Garry Kasparov foi derrotado por Deep Blue, um supercomputador
da IBM. Todavia, apesar da aura "intelectual", o xadrez é um jogo de
regras fixas e sem margem para subjectividades, pelo que uma máquina
com a capacidade para delinear milhões de sequências diferentes de
jogadas e comparar os respectivos desfechos, pode ter vantagem sobre
um ser humano.
Como conta Martin Ford, a IBM, estando consciente disto, lançou a si
mesma o repto de criar um computador capaz de derrotar humanos no seu
próprio terreno. O resultado foi o Watson, um computador que é capaz
de responder a perguntas, em linguagem corrente, sem moldes
pré-fixados, sobre os mais variados assuntos – e tão bem o faz que
neste jogo de perguntas e respostas conseguiu superar o desempenho de
dois antigos vencedores do concurso televisivo Jeopardy!, em 2011 (e
fê-lo mesmo sem estar ligado à Internet – uma limitação minimizada
pelo facto de a sua memória incluir, entre outra informação, todos os
artigos da Wikipedia).
Não são, portanto, apenas os postos de trabalho não-qualificados que
estão em risco. Uma evolução do Watson está hoje em dia a ser
utilizada como auxiliar de diagnóstico médico e a profissão de médico
radiologista pode ter os dias contados – algo que foi previsto em 1959
por Lee Lusted – pois a inteligência artificial já se tornou mais
eficaz a analisar radiografias do que os radiologistas humanos. O
software desenvolvido como auxiliar de diagnóstico médico tem a
capacidade de aprender por si mesmo, ou seja, depois de confrontado
com uma vasta amostra de casos, é capaz, por tentativa e erro, de
deduzir regras e adquirir competências nessa área. Quando uma
profissão tão especializada e qualificada como radiologista está
ameaçada, quantos milhares de outras não o estarão também?
Há uma década, a ideia de um veículo sem condutor parecia ficção
científica e agora eles já "andam por aí", partilhando as estradas com
condutores humanos em vários estados dos EUA, ainda que, para já, o
piloto automático seja recomendado apenas para auto-estradas, não para
situações de tráfego urbano. Um Tesla Model S protagonizou, em Maio
passado, na Florida, o primeiro acidente mortal envolvendo um
automóvel sem condutor, mas os condutores humanos também têm acidentes
mortais – e a Google anunciou em 2012 que a sua frota de veículos sem
condutor cumprira meio milhão de quilómetros sem um único acidente.
A rapidez dos progressos neste domínio tem sido impressionante: lembra
Martin Ford que no primeiro concurso para automóveis sem condutor, em
2004, nenhum dos 15 concorrentes conseguiu cumprir 10% do percurso
previsto.
Nem todos quererão prescindir do "prazer de conduzir" e nem todos
terão meios para adquirir um veículo sem condutor, pelo que é
previsível que nos próximos anos os veículos sem condutor sejam
minoritários, mas as possibilidades que se abrem são revolucionárias –
e o espectro do desemprego paira já sobre quem tem a profissão de
motorista. Para já, os motoristas de táxi alarmam-se com a
possibilidade de perderem clientes para empresas do tipo da Uber, que
usam apps de telemóvel para conectar passageiros e veículos conduzidos
por particulares, mas podem começar já a considerar a possibilidade de
uma ameaça mais radical: a dos táxis sem condutor.
Pensando bem, conduzir um automóvel é menos complicado do que tripular
um avião e os aviões são hoje tripulados sobretudo através de
computadores. É sobretudo a desconfiança que um cockpit vazio
inspiraria nos passageiros que impede a completa supressão de pilotos
humanos em voos comerciais.
As possibilidades abertas pelos desenvolvimentos na inteligência
artificial e na robótica são muitas e Martin Ford, não as cobrindo
exaustivamente, oferece uma panorâmica suficientemente vasta e clara
para que se torne óbvio que o conceito de "profissão com futuro
assegurado" que todos os pais desejam para os filhos está a
estreitar-se a cada dia que passa.
Todas as saídas estão fechadas?
Os empregos de recurso mais comuns para as crescentes massas de jovens
licenciados que não conseguem emprego na sua área de formação costumam
ser os MacJobs (virar hamburgers) e as caixas de supermercado, mas
estas tenderão a dar lugar a caixas automáticas e os MacJobs estão
ameaçados por máquinas como a da Momentum Machines, que é capaz de
produzir 360 hamburgers gourmet por hora sem necessidade de
intervenção humana e que é capaz de moldar cada pedido às
especificações precisas do cliente. O co-fundador da Momentum Machines
nem sequer parece embaraçado por considerações éticas quando afirma,
candidamente: "o nosso dispositivo não tem como fim tornar os
empregados mais eficientes, mas sim substituí-los completamente".
Os empregos no comércio tenderão a minguar, à medida que os
consumidores direccionarem uma fracção cada vez maior do seu orçamento
para as compras a grandes empresas online, cujo sistema de
atendimento, gestão de stock, triagem, embalamento e expedição é cada
vez mais automatizado (poderá não estar longe o tempo em que também a
gestão e reposição de stock nas grandes superfícies comerciais sejam
automatizadas). O potencial acréscimo de empregos como motorista que o
acréscimo do comércio online poderá evaporar-se se as transportadoras
apostarem em veículos sem condutor.
Entre as saídas mais apregoadas e aliciantes para os jovens de hoje
estão as actividades artísticas, como se estas dependessem menos do
talento e da vocação do que da formação e do cumprimento de
formalidades académicas e como se o mercado estivesse disponível para
encaixar todos os anos milhões de novos compositores, artistas de
video mapping, ceramistas e designers de fonts. No caso da música,
pode mesmo dizer-se que a internet, através da oferta gratuita e quase
ilimitada de "conteúdos" e da promoção de hábitos de escuta dispersos
e superficiais, fez minguar a fonte de receitas de artistas e editoras
e tornou as últimas mais avessas ao risco e à inovação.
Assim, criou-se uma situação paradoxal, em que, por todo o mundo,
milhões de jovens músicos alimentam a esperança de que os registos que
disponibilizam no SoundCloud ou no BandCamp os venham a tornar ricos e
famosos, apesar de eles próprios se limitarem a ouvir música
pirateada, sem dar um cêntimo a ganhar aos outros músicos. Graças à
internet e a máquinas de marketing cada vez mais aperfeiçoadas e
agressivas, as pop stars de topo ganharam dimensão verdadeiramente
planetária e fazem mais dinheiro do que nunca, mas os escalões médios
e baixo dos criadores de música proletarizaram-se e contentam-se em
tocar por uns trocos e dormir no sofá do organizador do concerto.
Também aqui se alargou o abismo entre o 1% do topo e os restantes 99%.
De qualquer modo, até na criação artística a inteligência artificial
tem dado passos de gigante – Martin Ford menciona, entre outros, os
programas Ianus (composição) e The Painting Fool (pintura).
O fim do diploma universitário como garantia de emprego
Vivemos um tempo de mudanças dramáticas na sociedade e, em particular,
no mercado laboral. As taxas crescentes de desemprego jovem, sobretudo
na Europa meridional começam a atingir valores estarrecedores, da
ordem dos 30 a 50% e – e muitos destes são jovens que acreditaram na
falácia de que a um curso superior era garantia de um emprego – ou até
mesmo de um bom emprego. Mas, como escreve Martin Ford, na ausência de
novos empregos, o que o aumento da percentagem de população com
habilitações superiores provoca é "a inflação de credenciais" e as
ocupações que anteriormente exigiam apenas um diploma do ensino
secundário requerem agora um diploma universitário: "o mestrado
tornou-se na nova licenciatura e os cursos de escolas que não sejam de
elite são desvalorizados".
A estrutura do mercado de trabalho é piramidal, pelo que os cargos de
topo – os que mais requerem "julgamento humano" e são (por enquanto)
menos susceptíveis à automatização – são necessariamente limitados,
pelo que o aumento da produção de mestres e doutores pelas
universidades irá confrontar-se com um número rígido de oportunidades
de emprego. Não quer isto dizer que mais formação não seja benéfica –
quanto mais não seja do ponto de vista do desenvolvimento pessoal –
mas é um trágico equívoco crer que, na ausência de outras medidas,
qualificar mais pessoas faça aparecer, como que por magia, um número
correspondente de empregos qualificados.
Lembra Martin que, "entre 2003 e 2012, o rendimento médio dos
[licenciados americanos] caiu de 52.000 para pouco mais de 46.000
dólares [valores corrigidos para 2012]. Durante o mesmo período, a
dívida total dos empréstimos a estudantes passou de 300.000 milhões
para 900.000 milhões de dólares". Em Portugal, são cada vez mais
frequentes as ofertas de emprego para engenheiros e outros licenciados
remuneradas pelo salário mínimo – as centrais sindicais podem ter
razão em ver nelas "um desrespeito pelas profissões", uma forma de
"pôr em causa a dignidade das pessoas", uma tentativa de favorecer "a
desregulação das relações de trabalho" e "uma desvalorização dos
conhecimentos, das experiências e das qualificações" (Arménio Carlos,
em declarações à TSF, 25.07.16), mas as empresas estabelecem estes
patamares de remuneração porque sabem bem que a procura de trabalho
qualificado está em regressão e que, portanto, não faltam licenciados
dispostos a trabalhar pelos salários propostos.
Quando for grande quero trabalhar na WhatsApp
Continua a pairar no espaço público um optimismo acrítico perante as
novas tecnologias e o mundo de oportunidades aberto pela internet,
como se os empregos perdidos nas ocupações "tradicionais" pudessem ser
compensados pelos empregos em empresas tecnológicas ou como se um em
cada dois jovens licenciados desempregados fosse desenvolver uma
killer app que o tornasse milionário.
Martin Ford deita um balde de água fria sobre as perspectivas de
emprego tecnológico, tomando como exemplos precisamente as empresas
que são símbolo do Admirável Mundo Novo Digital: em 2007 a Google
pagou 1600 milhões de dólares pelo YouTube, que tinha, à data, 65
empregados; em 2012 o Facebook pagou 1000 milhões de dólares pelo
Instagram, que tinha, à data, 13 empregados; em 2014 o Facebook pagou
19.000 milhões de dólares pelo WhatsApp, que tinha, à data, 55
empregados.
Em "The digital revolution that never wasn't", um muito pertinente
artigo na Harper's Magazine de Janeiro de 2014, Jeff Madrick fazia
este cômputo: a General Motors tinha, em 1955, 600.000 trabalhadores,
enquanto hoje, numa economia muito maior e mais globalizada, a Google
tem 50.000, o eBay 20.000, o Facebook 6.000.
A verdade é que, se não nos deixarmos deslumbrar pelo hype em torno
das empresas emblemáticas do universo digital, é inevitável concluir
que a probabilidade de algum dos milhões de jovens desempregados com
habilitações superiores encontrar emprego numa delas é ínfima.
Os entusiastas da qualificação argumentam que o mercado de trabalho
dos licenciados engloba realidades muito diversas: sim, os licenciados
nas áreas das humanidades debatem-se com dificuldades, mas em
compensação haverá em Portugal uma procura ávida de diplomados em
áreas científicas e em particular nas tecnologias de informação. Ora,
um artigo do Público de 21.04.14, com o título "Empresas não vão mexer
nos salários e mostram vontade de aumentar pessoal" (um optimismo
desmentido pelo conteúdo), sobre as perspectivas de contratação e
remuneração salarial das empresas, revelava que a área das
"tecnologias de informação" era aquela onde mais empresas manifestavam
intenção de dispensar trabalhadores (19%) e de cortar os salários dos
restantes (10%).
Não se trata de uma peculiaridade portuguesa, ditada pelo contexto de
crise ou pelas limitações intrínsecas do nosso tecido empresarial.
Também nas empresas tecnológicas de ponta a nível mundial, símbolos do
Admirável Mundo Novo da Era Digital e da pujança do cibercapitalismo,
os postos de trabalho começaram a minguar: em Abril passado, a Intel,
o maior fabricante mundial de circuitos integrados, anunciou o
despedimento de 12.000 trabalhadores (11% da sua força de trabalho),
em Agosto foi a vez da Cisco, o gigante mundial na área das redes
cibernéticas, anunciar o despedimento de 5500 funcionários (7% da sua
força de trabalho), justificado por uma estagnação na facturação da
empresa (a desculpa é pouco plausível, já que a perspectiva de
estagnação deveria levar à manutenção de postos de trabalho, não a
despedimentos).
A campanha lançada pela Cisco em 2012 sob o lema "Tomorrow starts
here", trombeteando as bem-aventuranças da "internet de tudo" (um
passo à frente da já de si patética "internet das coisas"), ganha uma
amarga ironia quando vista após o recente anúncio de despedimentos em
massa.
Se a Cisco representa o amanhã e se ele começa aqui, o que espera os
diplomados na área da informática é o desemprego.
Apesar de estes factos serem incontestáveis e públicos, os políticos e
economistas continuam a fingir que vivemos no melhor dos mundos e que
o aumento brutal do desemprego jovem e do desemprego de longa duração,
bem como a queda da taxa de participação na força de trabalho
(percentagem de pessoas empregadas e à procura de emprego no total da
população em idade activa) não são sintomas de que estão em curso
mudanças dramáticas na economia e na sociedade, mas são apenas um
acidente de percurso, um infortúnio conjuntural, resultante de um
período de baixo crescimento económico ou da incompetência ou
malevolência do governo anterior. A esquerda acredita que se nos
libertarmos do jugo dos credores e do "pacto de agressão" e adoptarmos
uma "política patriótica de esquerda", voltaremos, como que por magia,
ao pleno emprego, o que a direita julga poder atingir "flexibilizando
o mercado de trabalho" (leia-se: facilitando os despedimentos e
sujeitando os trabalhadores a condições tirânicas) e aliciando o
investimento estrangeiro mediante oferta de "benefícios fiscais",
"vistos gold" e outros subterfúgios eticamente duvidosos, ainda que
estritamente legais.
As profissões do século XXI
Os media têm vindo a divulgar regularmente novas oportunidades
empregos para o século XXI, que oscilam entre a excentricidade, o
micro-nicho e a fantasia pueril. Os estragos causados por estes
cenários oníricos e falaciosos são, muito provavelmente, reduzidos, já
que os jovens em idade de escolher um rumo profissional há muito
deixaram de ler jornais e revistas, mas há sempre o risco de os pais
ou avós os lerem e incentivarem a sua prole a orientar a sua vida
profissional para tais necedades.
Thomas Frey, futurólogo, especialista em "tecnologias emergentes" e
conferencista de sucesso mundial e fundador do DaVinci Institute,
antevê que a extinção de 2.000 milhões de postos de trabalho na
economia mundial até 2030 será compensada por 162 empregos que vão
existir no futuro (próximo), alguns das quais são simplesmente
ridículos ("38. Psicólogos de super-bebés"), tenebrosos ("37.
Designers de super-bebés") ou muito antigos (os "23. Spotters de
oportunidades" têm uma tradição ininterrupta desde o Paleolítico;
outrora foram conhecidos em português como "videirinhos"). Outros
empregos do futuro parecem ter saído de um brainstorming de hipsters
("61. Chefs de comida 3D", "67. Auditores de lifestyle") ou soam como
anedotas de mau gosto ("78. Teóricos, filósofos e evangelistas de
criptomoeda"). Entre os 162 empregos, Frey não incluiu o seu próprio
emprego de "tarólogo hi-tech", talvez porque não queira estimular
concorrência no seu aprazível e bem remunerado mister em que corre
mundo a aspergir plateias recheadas de CEOs e altos quadros da função
pública com uma nuvem de falácias de aroma sofisticado e modernaço.
Frey prevê oito empregos distintos ligados à "indústria de drones
comerciais", que é assunto recorrente nos artigos sobre "empregos para
o século XXI". A hipotética ocupação de "expedidor de drones" ganhou
grande projecção só porque a Amazon, numa manobra publicitária que
conseguiu pôr a empresa nas bocas do mundo, anunciou a (remota)
possibilidade de fazer algumas entregas via drone. Claro que é
tecnicamente exequível, mas imagine-se o caos que tomaria conta dos
céus se as entregas através de drones atingissem um número
significativo – sair à rua ou apanhar sol no jardim passariam a ser
actividades de risco.
Onde há um problema, há também uma oportunidade, como bem sabem os
videirinhos (perdão, os spotters de oportunidades). Se o céu ficar
infestado com o zumbido de drones carregados com encomendas (espera-se
que não com bigornas ou pianos), será necessário que alguém desempenhe
a função de "polícia de trânsito aéreo", outra das "profissões
emergentes". Resta saber se este polícia sinaleiro do século XXI fica
suspenso de um retrógrado balão ou se coordenará o tráfego sobre um
podium anti-gravitacional a pairar no ar.
No artigo "As profissões do futuro", na Visão de 19.04.2104, surgem
empregos como "gestor de nuvens", "terapeuta respiratório", "pediatra
fetal", "designer de órgãos" (as vísceras, não o instrumento de
teclas), "nanomédico", "cirurgião de aumento da memória" ou "guia
turístico espacial". E uma vez que muitas pessoas passam cada vez mais
tempo no ciberespaço, é natural que se proponham profissões como
"planificador de identidade digital", "consultor de privacidade",
"arquivista pessoal" (para catalogar as centenas de milhares de
selfies) e "arqueólogo digital", apresentado como um "especialista em
eliminar o rasto digital de pessoas e empresas" (é verdade que dá
jeito apagar as fotos comprometedoras que se colocaram no Facebook
numa noite de copos, mas o conceito de "arqueólogo" é o de alguém que
desenterra o passado, não que o suprime).
Na página mercado de trabalho do século XXI, da Debt.org, uma
organização que pretende auxiliar "todos os que queiram assegurar para
si um futuro financeiro sólido", recomendam-se profissões que,
ironicamente, estão entre as mais ameaçadas de extinção pelas novas
tecnologias, como "professores de línguas", "professores de
tecnologias de informação", "analistas de pesquisas de mercado" ou
"agricultor biológico".
Consideremo-las uma a uma: os professores de línguas terão cada vez
menos espaço à medida que se refinam os softwares de tradução e
proliferam os cursos de línguas online ou as lições gratuitas no
YouTube. Os professores de tecnologias de informação pareciam ter um
futuro próspero no tempo em que a interface entre o computador e o
utilizador se fazia através de algo tão rudimentar, hostil e
contra-intuitivo como o MS-DOS, mas terão cada vez menos razão de ser,
à medida que programas e funcionalidades se tornam cada vez mais
acessíveis ("user-friendly") e as gerações mais velhas se vão
extinguindo e a população passa a ser constituída essencialmente por
"nativos digitais", que largaram a chucha para pegar no tablet ou no
smartphone.
Os analistas de pesquisas de mercado não têm qualquer hipótese se
competir com a inteligência artificial no processamento de grandes
volumes de dados; são as máquinas que estão a permitir que o
rastreamento individual dos hábitos de consumo e lazer de cada um de
nós sejam examinadas de forma a que possamos ser bombardeados com
propostas irresistíveis de bens e serviços que correspondem ao nosso
perfil. E tendo o trabalho agrícola sido a primeira vítima (ou
beneficiário – depende do ponto de vista) da automatização, é difícil
perceber como pode a profissão de agricultor biológico providenciar um
número significativo de empregos. Sem automatização, nem pesticidas e
fertilizantes artificiais, o trabalho agrícola gera rendimentos que
poderão bastar para a subsistência em moldes medievais, mas não chegam
para pagar smartphones, assinaturas de televisão por cabo ou automóvel
próprio.
Entre as fantasias e becos sem saída sugeridas pela Debt.org, uma
profissão parece ter potencial real: a de "coordenador de gestão de
resíduos electrónicos". O nome é pomposo, mas o emprego já existe e
tem boas perspectivas de expansão, já que a marcha cada vez mais
rápida e implacável da obsolescência planeada irá gerar cada vez
maiores quantidades de lixo electrónico.
O fim da classe média?
O diálogo entre Henry Ford II, CEO da Ford Motor Company, e Walter
Reuther, dirigente do poderoso sindicato dos trabalhadores da
indústria automóvel americana é provavelmente tão apócrifo como a
infeliz estimativa do presidente da IBM sobre o mercado mundial de
computadores, mas é ainda mais instrutivo: supostamente, Henry Ford II
e Reuther visitavam uma fábrica de automóveis que acabara de ser
automatizada e Henry Ford II lançou uma provocação ao sindicalista:
"Walter, como vai conseguir que estes robots paguem as quotas do
sindicato?". Ao que Reuther retorquiu: "Henry, como vai conseguir que
eles lhe comprem carros?".
O diálogo sintetiza esplendidamente o paradoxo da automatização: uma
empresa pode diminuir os custos e aumentar a produtividade ao
substituir trabalhadores por máquinas, mas quem irá comprar os bens ou
os serviços produzidos pela empresa se uma fracção maioritária da
população ficar desempregada?
Linha de montagem em fábrica de automóveis moderna
Sim, há o consumo de luxo, que tem vindo a aumentar, espelhando a
concentração da riqueza nos mais ricos, mas não basta para sustentar a
economia. Um rico pode comprar um smartphone revestido a cristais
Swarovski e passar um fim-de-semana em órbita, mas não compra 1000
smartphones de gama média nem passa 1000 fins-de-semana num aparthotel
em Albufeira. Se o desemprego maciço puser fim à classe média, o
sistema económico colapsará – é perante este cenário que pode fazer
sentido a proposta acima mencionada de Robert Theobald de um
"rendimento incondicional" para todos os cidadãos, assunto que Martin
Ford discute com algum detalhe.
O ensaio A Era da Máquina, de Norbert Wiener adverte que "se nos
movermos no sentido de criar máquinas capazes de aprender e cujo
comportamento é modificado pela experiência, deveremos estar
conscientes de que cada grau de independência que concedemos à máquina
corresponde a um possível desafio à nossa vontade. O génio da lâmpada
não regressará de bom grado ao interior da lâmpada nem tem qualquer
motivo para estar animado de boa vontade para com as pessoas. Só uma
humanidade capaz de temer será capaz de controlar as novas
potencialidades que se abrem perante nós. Podemos ser humildes e viver
uma boa vida com a ajuda das máquinas, ou ser arrogantes e perecer".
Infelizmente, humildade e temor respeitoso não são os sentimentos mais
usuais da humanidade perante as novas tecnologias – são mais
frequentes o deslumbramento acrítico, a inconsciência e uma confiança
arrogante num mundo de progresso ilimitado.
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