http://www.caritas.pt/site/lisboa/index.php/destaques-principais/620-morrer-e-mais-dificil-do-que-parece-o-texto-de-paulo-varela-gomes
Tenho um cancro de grau IV. De cada vez que abro o teclado do
computador na intenção de escrever, ocorre-me a frase, já mil vezes
repetida, "Quando estiverem a ler estas linhas, é provável que o autor
já não esteja vivo".
São incontáveis os artigos, livros, documentários e filmes sobre
pessoas que morrem de cancro. Nunca vi nenhum porque não aguento o
stress mas ouvi dizer que alguns são eficientes e fazem os
espectadores chorar muito. Não vou escrever aqui um artigo desse
género, primeiro, porque não sou capaz, e em segundo lugar porque a
história da minha doença e daquilo que tenho feito para lidar com ela
tem algumas características muito peculiares que podem interessar a
todo o género de pessoas que se preocupam com a vida e a morte e que
pensaram com seriedade no tema deste número da Granta: "Falhar
melhor".
Tudo começou quando acordei uma manhã com um inchaço do tamanho de uma
amêndoa no lado esquerdo do pescoço. Iludido por uma espécie de
incredulidade optimista, pensei que se tratava do resultado de uma
infecção nos dentes ou na garganta. Desenganou-me um médico
especialista dessas áreas com quem fui falar alguns dias depois: "O
senhor tem uma massa na garganta. É melhor ir ver isso rapidamente."
Estava muito grave e sossegado, ele. Percebi depois que nunca lhe
tinha passado pela cabeça que alguém não soubesse o que quer dizer
"massa" em termos orgânicos. Esta foi a única consulta médica a que a
Patrícia, minha mulher e minha "curadoura", não me acompanhou. Estava
a ajudar a Rita a podar as videiras da Vinha Comprida. Quando lhe
telefonei a transmitir a seca mensagem do médico, percebeu tudo e
diz-me que ficou imenso tempo a olhar lá para o longe, para o pinhal
sobre a várzea, com as lágrimas a correr-lhe pela cara.
Quarenta e oito horas depois fiz a obrigatória TAC cervical. Despi-me
sem preocupações, coloquei aquela bata ridícula dos hospitais que faz
qualquer pessoa parecer que sofre ininterruptamente dos intestinos,
deitei-me na máquina. No fundo, esperava boas notícias: não tarda,
iriam informar-me de que se tratava de uma chatice menor. Estivemos
depois hora e meia debaixo da luz verde escura, crepuscular, da sala
de espera. Quando o radiologista veio falar connosco, acabou nesse
preciso instante a vida que levávamos juntos há mais de duas décadas.
O radiologista tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os
pêsames a uma família enlutada: cancro na otofaringe com tumor na
cadeia linfática cervical posterior e metástases no pulmão. Não
operável. Tratamentos em doses muito altas de quimio e radioterapia
para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou respirar.
Decidimos que nunca me submeteria aos tratamentos da medicina
oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia), as químicas
(drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as
defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua
degradação. Já vi suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da
oncologia para tremer de horror ao pensar que poderia suceder-me o
mesmo.
Quando voltámos para casa, não houve uma lágrima, um gesto de
desespero, um queixume. Falámos muito pouco. As estradas por onde
passávamos tantas vezes pareciam agora ter uma realidade inverosímil,
como se fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor e a luz era
branca.
Durou vários dias seguidos, este silêncio emocional. As palavras que
trocámos em casa foram reduzidas ao mínimo. Uma consulta com um médico
do IPO confirmou tudo o que estava no relatório do radiologista. Mais
tarde, algumas instituições com nomes que tilintam como lingotes de
ouro vieram dizer-nos o mesmo: não havia nada que valesse a pena
fazer.
Essas opiniões não nos importaram, porém. Numa estranha frieza, só
quisemos saber o que faríamos para acabar com a minha vida quando essa
altura chegasse. A Patrícia jurou que não me impediria de morrer, e
até me ajudaria se fosse necessário. Como disse Plotia ao poeta em A
Morte de Virgílio de Hermann Broch: "A morte fecha-se a quem está só,
o conhecimento da morte apenas se desvenda à união de dois seres."
Sucede que estes acontecimentos já me parecem um pouco perdidos no
nevoeiro do tempo. Passaram mais de mil dias desde a tarde abafada de
23 de Maio de 2012, quando fiz a TAC, até à nebulosa e fresca tarde de
Primavera em que estou aqui a escrever isto. Dois anos e onze meses.
Não sei se nesta evolução, que não tem cessado de nos surpreender e a
quem nos conhece, podemos adivinhar a lenta condensação de um milagre.
Sei que há muita gente a rezar por mim e é com alegria que agradeço a
todos.
Mas sei também que tenho recorrido a muitas medidas práticas para
evitar a sorte ditada pelos oncologistas.
A primeira foi fazer-me acompanhar, desde algumas semanas depois da
TAC, por um médico homeopático (os médicos encartados não acham graça
nenhuma a que se chame médico a um homeopata, mas tenham santa
paciência). Sob sua orientação comecei por mudar radicalmente de
regime alimentar. Em vez de comer produtos tóxicos como faz a maior
parte das pessoas, passei a alimentar-se com produtos que ajudam o meu
sistema imunitário e alguns que combatem o cancro activamente. Além
disso, o médico foi prescrevendo suplementos alimentares e
medicamentos homeopáticos.
Devo à homeopatia a qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de
vantagem sobre os médicos oncologistas. Duas ou três semanas depois de
começar a terapia já começava a duvidar de alguma vez ter tido cancro.
Imaginem: um canceroso em estado grave, que pouco tempo antes estava
arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia! Confesso que tive medo
de entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei nas suas ondas
vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi tão
grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do
Gelo em que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma
Primavera, incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas
tempo de viver e não de morrer.
As semanas correram e fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu.
Participei em conferências, orientei alunos, fiz todos os dias
companhia à minha mulher e aos nossos seis cães, andei com a minha
neta aos saltos sobre os charcos de água da chuva. As minhas análises
foram durante muito tempo boas, e o meu aspecto muito diferente da
maioria dos desgraçados que frequenta os campos de morte da oncologia.
Além disso, como os leitores e leitoras saberão, escrevi e publiquei
três romances, uma colectânea de colunas escritas para jornais, e
finalizei mais um romance e um livro de contos.
Todavia, não houve um único dia em que não tenha pensado na morte. Nem
um. Ao princípio não receei mas também não compreendi essa Senhora de
Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as inúmeras oportunidades
que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a vida num inferno
ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde sempre
mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao
seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte
estão por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem
lugar no meu espírito é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado
por psicanalistas há muito tempo. Aquele com quem trabalho desde há
alguns anos, e que é uma das peças-chave do puzzle da minha não-morte,
recebeu como uma pancada a notícia do meu diagnóstico e, depois de uma
breve conversa entrecortada de angústia e silêncio, lembro-me de lhe
ter dito com um ar quase triunfante: "Nem sempre se pode ganhar,
doutor…"
Quem é que estava a falar assim pela minha boca? Quem é que
experimentava em mim essa estranha alegria raivosa que emergira quando
soube que tinha um cancro e que este era incurável? Que força psíquica
queria que eu morresse, que as pessoas tivessem misericórdia de mim,
se recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e zangada, se
aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a morte?
A vida é muito menos cheia de prosápia do que a morte. É uma espécie
de maré pacífica, um grande e largo rio. Na vida é sempre manhã e está
um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o amor, que é o outro nome
da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a pensar nas
pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou abandonar.
Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam, e
cresce de repente no meu coração a maré da vida. Cada lágrima que me
escorre por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de angústia na
garganta que sinto quando acordo de manhã e me lembro de que tenho
cancro, cada assomo de tristeza que me obriga a sentar-me por vezes à
beira do caminho quando vou passear com os cães e interrompe a oração
ou a conversa com o céu que me embalava o espírito, cada um destes
sinais provém do falhanço momentâneo do amor dos outros em amparar-me,
e sobretudo do meu em permitir-lhes que me acompanhem.
Quando, pelo contrário, decorre um dia em que consigo escrever e gosto
daquilo que escrevo, em que me curvo sobre os canteiros para cortar
ervas daninhas, em que admiro amorosamente a energia da Patrícia
sentada ao computador ou a trazer lenha para casa, quando isto sucede,
o meu tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo domingo de
Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que precisam de mim e
d'Aquele de quem eu preciso.
O médico homeopata nunca me prometeu um milagre, e a minha saúde
começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca de um ano e meio depois do
diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio: algumas dores no
pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas intestinais.
Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por um,
todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o
sexo, beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem
com mais de duas ou três horas, o gosto da comida sólida a
percorrer-me o interior da garganta com os seus variados sabores e
texturas, uma corrida com os miúdos ou os cães.
Houve semanas piores, outras melhores, mas o tumor do meu pescoço foi
crescendo, rebentou como um pequeno vulcão de pus, e ficou pouco a
pouco com um aspecto tão abominável que deixei de aguentar ser eu a
mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama estragava-me o dia
e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou adstrita
à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde,
alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as
enfermeiras dos serviços continuados de saúde.
E, de repente, ia morrendo: uma grande hemorragia despertou-me a meio
de uma noite de Julho de 2014, encharcado no sangue que brotava de uma
veia que o tumor do meu pescoço pôs a descoberto e enfraqueceu.
Desmaiei imediatamente e a Patrícia, não conseguindo ao princípio
acordar-me, pensou que tudo estava acabado.
Ganhei depois, com lentidão e a custo, uma relativa saúde. Passei dias
inteiros deitado. Depois, devagarinho, melhorei. Uma nova hemorragia,
em Dezembro, embora não tenha atingido a violência da anterior,
obrigou-me a considerar uma transfusão de sangue que fiz num hospital
que estava, como quase todos nessa época, mergulhado num tal caos que
passei um dia simultaneamente divertido e ofendido a observar a
desordem que grassava à minha volta.
As duas perdas de sangue fizeram pender a balança para o lado da minha
morte interior: regressei à melancolia com que me sentava à sua
cabeceira conversando com ela nas duríssimas semanas do Verão de 2012
que se seguiram ao veredicto do cancro. Como é que vou morrer?
Exactamente como?, perguntava-lhe.
Não me referia à chamada morte natural, que nunca me tinha ocorrido
desde o primeiro dia da doença. Falava da morte infligida por mim
próprio.
Entretanto, porém, o cristianismo, que estava quase esquecido desde o
meu baptismo, irrompeu pela minha vida através da palavra de um Padre
que é outra peça-chave do puzzle, mas desta vez, e ao invés do
psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a morte.
O suicídio é uma ofensa frontal à vontade de Deus que quer que a morte
de cada cristão seja a sua disponibilidade para de se entregar à Cruz
no momento em que Cristo quiser e da maneira que Ele decidir. Mas eu e
a Patrícia tínhamos jurado que eu morrerei aqui, em minha casa, e que
nada me fará embarcar no carnaval de luzes da ambulância para ir
morrer a um hospital. Esse juramento mantém-se.
Tomámos esta decisão mal tínhamos saído do parque de estacionamento da
clínica onde fiz a TAC e ouvi o diagnóstico. No meu espírito doente, a
morte celebrava jubilosamente a vitória desse momento e era-me tão
impossível controlar ou combater este sentimento como invocar a luz da
esperança, encolhida num canto de mim como um miúdo paralisado de
terror. Enquanto regressávamos a casa, eu pensava na dificuldade e nos
riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão, pensava no salto de
uma ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre
medicamentos letais, mas sobretudo no facto de que todos estes
caminhos da morte ainda concedem ao suicida o tempo suficiente para se
arrepender, precisamente aquilo que eu não queria na altura,
mergulhado num tumulto mental que julgava mais voluntário e corajoso
do que de facto era.
Experimentei por vezes os movimentos da dramatização da minha morte,
uma espécie de novela sem invenção e sem vida cujo maior óbice era o
de saber se, na altura definitiva, teria a certeza absoluta de não
haver outra solução. Conseguiria deitar fora como se fossem trocos sem
valor os restos de vida que continuam a cintilar dentro de mim? E se
me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais do
que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?
Aquando da segunda hemorragia, cheguei-me muito próximo de encontrar
uma resposta sem alternativa a estas questões. Depois de fechar os
cães e de me despedir brevemente da Patrícia, sufocada de pavor e
lágrimas, ajoelhada no chão sem conseguir olhar para mim, saí de casa
transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me sentar com a
coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha forças e tremiam-me
as pernas. A minha camisa estava empapada em sangue e, tendo passado a
mão pela cara e os óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa das
ferramentas e do tractor, a encosta, a vinha, através de um nevoeiro
vermelho. A decisão com que, apesar da fraqueza física, andei sem
hesitar algumas dezenas de passos, surpreendeu-me a mim mesmo. Pronto,
ia morrer. Aspirei o cheiro intenso, quase ridente, de uma
hortelã-pimenta que nascera ao pé do pinheiro grande sem que, até
então, alguém tivesse dado por ela. Coloquei a cadeira junto a uns
troncos cortados, sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o dedo
aflorou o gatilho. Senti o metal como uma coisa sem qualidade, cálida,
mortiça, dócil. Tudo me pareceu vagamente ridículo, o meu gesto, os
objectos de que me rodeara. Veio até mim mais uma vez o cheiro da
hortelã. Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um
pinhal que o sol, através de uma abertura nas nuvens, isolava,
dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de
alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à
semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei
à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e, enquanto assim
estivesse, não estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a vida a
fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no
chão e regressei a casa. Não olhei para trás, para a cadeira branca e
a arma, que ficaram ali completamente indiferentes à minha sorte. Ao
abrir a porta, a Patrícia, sem conseguir dominar a torrente de
lágrimas que lhe corria pelo rosto, caiu-me nos braços. Ficámos muito
tempo agarrados um ao outro, quase imóveis, como se fôssemos o tronco
de uma grande árvore.
Não há muito mais a contar. A saúde vai piorando pé ante pé.
Deixei para trás a ideia de suicídio por uma razão muito simples que
levou demasiado tempo a descobrir. Ei-la nas palavras que Mateus
atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que iluminaram como um
relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a maneira
hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:
"Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la; aquele que
perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la".
S. Domingos, Podentes, 10 de Abril de 2015
Paulo Varela Gomes,
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