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22 Janeiro 2017 Edgar Caetano
Em "Against Elections" ("Contra as Eleições"), o belga David van
Reybrouck lança uma proposta, no mínimo, desafiante. Acabar com as
eleições pode salvar a democracia. A alternativa? É bem antiga.
Uma votação a uma volta, por maioria simples (isto é, por um voto se
ganha e por um voto se perde), tirou o Reino Unido da União Europeia
(UE) numa quinta-feira de junho. No dia seguinte — "o Dia da
Independência" para os impulsionadores do Brexit — 48,1% dos
britânicos acordaram para a realidade de que iriam deixar de ser
membros da UE, vencidos numa consulta popular em que ambos os lados
recorreram à desinformação e a táticas do medo. "Foi um ponto de
viragem na História das democracias ocidentais. Nunca o destino de um
país — de um continente inteiro, na verdade — foi decidido por tal
golpe de machado, desferido por cidadãos desencantados e mal
informados", lamentou David van Reybrouck.
Van Reybrouck é um intelectual belga e autor de Tegen
Verkiezingen,traduzido para o inglês Against Elections (Contra as
Eleições). Em julho de 2016, no rescaldo do Brexit e quando alguns já
adivinhavam uma vitória de Trump nas eleições de novembro, escreveu
que "estes são tempos turbulentos" e potencialmente "explosivos". Isto
porque vivemos numa época em que "existe um grande interesse pela
política mas pouca fé nos políticos e nas instituições", o exato
inverso do que existia há 50 anos, por exemplo — um agricultor e a sua
mulher tinham pouco interesse na política mas uma confiança natural na
democracia. Agora, "temos, em simultâneo, paixão e desconfiança",
escreve Reybrouck. Tipicamente, essa não é uma boa mistura — e Van
Reybrouck explica porquê.
Os referendos como o que levou ao Brexit já têm levado a um grande
debate sobre se estes podem ser perigosos para a democracia. Mas
Reybrouck vai mais longe: muito mais longe. Para o belga, toda e
qualquer eleição é um péssimo instrumento para nortear a vida
democrática das sociedades — o belga diz que é quase uma "heresia
perguntar se as eleições, no seu modelo atual, são uma forma obsoleta
para converter a vontade coletiva dos povos em governos e políticas".
É quase uma "heresia", mas é precisamente isso que o autor flamengo,
de 45 anos, defende em Against Elections, cuja argumentação o
britânico The Times considerou "muito persuasiva".
Alguns meses depois do referendo do Brexit, após uma longa campanha
absolutamente visceral, Donald Trump até nem foi o mais votado entre
os norte-americanos. Porém, no sistema eleitoral dos EUA, obteve mais
votos no Colégio Eleitoral do que Hillary Clinton. Numa terça-feira de
novembro, Trump venceu uma corrida à Casa Branca que se baseou mais
num concurso de popularidade dos candidatos e telegeniado que num
debate de ideias e propostas para o país. Foi mais um caso que ilustra
na perfeição a tese central de Reybrouck: o sistema eleitoral que
tomamos como garantido e inquestionável não é um garante da
democracia, da liberdade e da proteção contra derivas autoritárias. As
eleições estão, na realidade, por se terem tornado em teatros de
manipulação e calculismo, a ameaçar a confiança dos cidadãos no
processo democrático,argumenta o belga.
Gosta-se da democracia, mas desconfia-se dela
A democracia é uma boa forma de governar? Sim, concordaram quase 92%
dos inquiridos num estudo internacional que ouviu mais de 73 mil
pessoas em 57 países (o World Values Survey). "A percentagem de
população global que tem uma atitude positiva em relação ao conceito
de democracia nunca foi tão grande como é hoje", escreve David van
Reybrouck logo no início do livro, lembrando que no final da Segunda
Guerra Mundial havia apenas 12 democracias no mundo, com o resto a
dividir-se entre governos fascistas, comunistas e colonialistas.
"Nunca houve tantas democracias no mundo e nunca houve tantos
apoiantes desta forma de governo", diz Van Reybrouck.
Mas há estatísticas que nos lançam num aparente paradoxo. Segundo
dados analisados pelo autor belga, em 1999 havia 33,3% de inquiridos
nesta mega-sondagem a defender a escolha de um líder forte que não
tivesse de incomodar-se com eleições ou com um parlamento. Na edição
seguinte da sondagem, feita entre 2005 e 2008, as percentagem de
pessoas que achariam isso boa ideia subiu para 38,1%. Já lá vão quase
10 anos, pelo que será interessante acompanhar a próxima sondagem que
faça esta mesma pergunta — é legítimo suspeitar que a percentagem terá
continuado a subir.
Outro dado interessante revelado na sondagem de 2005-2008 é que mais
de metade (52,4%) disseram ter pouca ou nenhuma confiançano seu
governo, mais de 60% disseram o mesmo sobre os seus parlamentos
nacionais e uns impressionantes 72,8% mostraram ter muito pouca
confiança nos partidos políticos, entidades basilares para a vida em
democracia eleitoral como a conhecemos. "Ainda que uma certa dose de
ceticismo seja uma componente essencial de uma cidadania crítica, é
justo perguntar quão generalizada é que esta desconfiança pode ser e,
também, quando é que um ceticismo saudável se transforma numa aversão
efetiva", pergunta o autor, a páginas tantas.
É comum falar-se numa desafetação dos cidadãos em relação à política,
um desinteresse que se comprova, por exemplo, com as elevadas taxas de
abstenção. Mas esse diagnóstico não convence o autor belga, que cita
estudos feitos na Europa que demonstram que as pessoas têm, na
realidade, mais interesse pela política do que no passado. "É certo
que há uma grande parte da população que tem pouco interesse nas
questões políticas, mas isso sempre aconteceu. Não houve qualquer
declínio recente a esse respeito, na realidade estudos recentes
mostram que as pessoas discutem mais sobre política com amigos,
família e colegas, do que no passado".
Mas isto não é, necessariamente, uma coisa boa. "Há sempre qualquer
coisa de explosivo nas eras em que o interesse pela política sobe, ao
mesmo tempo que a confiança nas instituições desce", escreve o autor.
O que pensa sobre aquilo em que não pensou?
Na campanha do Brexit, um dos rostos pela saída, o ex-ministro Michael
Gove, disse à população que não se devia dar ouvidos aos alertas dos
especialistas (em temas como Economia) e que se devia votar naquilo
que se acreditasse, lá no fundo, ser a coisa certa a fazer. Nos EUA, a
população elegeu para Presidente um magnata que se recusou a
apresentar uma simples declaração de rendimentos e património e que
vive numa penthouse banhada a ouro em Nova Iorquemas, ao mesmo tempo,
fez campanha a dizer que as "elites" estavam a esquecer-se dos
cidadãos mais desfavorecidos.
David Van Reybrouck alerta que algo está mal com este quadro e que, a
prazo, a coisa tem tudo para correr mal. Vejamos o caso do referendo
britânico: "Pedimos às pessoas que nos digam o que pensam sem que se
tenha assegurado que elas pensaram alguma coisa sobre o assunto —
ainda que tenham sido bombardeadas com variadíssimas formas de
manipulação nos meses anteriores à votação".
Vote por isto. Ou vote por aquilo. Já está? OK, agora vamos
contar-vos, a uns e aos outros, e tirar todo o tipo de conclusões
imagináveis: votou assim por isto; votou assado por aquilo; votou
assim mas só o fez porque achou que o outro lado ia ganhar facilmente;
votou assado mas arrependeu-se na manhã seguinte; votou assim porque
está zangado; votou assim porque vive em dificuldades; votou assado
porque é um idiota; votou assim porque é contra a globalização, contra
os imigrantes, contra o establishment, contra que chova ao fim de
semana. A manipulação não termina no dia do voto.
"Síndrome de Fadiga Democrática" é a expressão usada por Van Reybrouck
para descrever o terreno fértil em que o populismo tenderá a crescer,
sobretudo na era das redes sociais, e em que a política terá cada vez
menor capacidade para atrair o tipo certo de pessoas. Tudo isto está
relacionado com um conceito que Van Reybrouck lamenta: "As palavras
eleições e democracia são, hoje em dia, vistas como sinónimos. Alguém
nos convenceu de que a única forma de escolher um representante é
através de um voto inserido numa urna". Será mesmo assim? Não
conseguiremos pensar numa alternativa melhor?
Democracia = Eleições. What else?
Os direitos básicos e a forma prática como um deles deve concretizar-se
Van Reybrouck pergunta: "Não é notável que a Declaração Universal dos
Direitos do Homem contenha uma definição tão precisa de como a vontade
popular tem de ser expressa? Por que razão é que um texto tão conciso,
sobre direitos básicos, que tem menos de 2.000 palavras, presta uma
atenção especial à execução prática de um desses direitos? É como se
as pessoas que criaram a Declaração, em 1948, tenham olhado para o
método específico como um direito básico, como se o procedimento, em
si, fosse sagrado".
David van Reybrouck estranha este enfoque nas eleições, legitimado até
pela Carta Universal dos Direitos do Homem de 1948, que refere
especificamente o voto como forma de garantir a democracia. "Há quase
três mil anos que os povos têm experimentado variadas formas de
democracia e só nos últimos dois séculos é que a prática foi,
exclusivamente, eleições. Apesar disso, tomamos as eleições como o
único expediente válido para organizar uma democracia". O belga
pergunta: curioso, não é?
Desde o momento em que os apoiantes das Revoluções Americana e
Francesa propuseram as eleições como uma forma de aferir a vontade do
povo, muito mudou: na altura não havia partidos políticos, entretanto
foi introduzido o sufrágio universal, a sociedade civil
organizadatornou-se mais sofisticada, o espaço público foi inundado
por meios de comunicação social de índole comercial e, mais
recentemente, as redes sociais "vieram dar voz aos clamores das
pessoas" — sendo estas redes tudo menos sociais, já que Facebook e
Twitter são tão ou mais comerciais do que a CNN e a Fox, "com a
diferença que os donos das primeiras querem que veja e ouça e os donos
das segundas querem que escreva e partilhe".
Van Reybrouck defende que eleições parlamentares foram uma forma ótima
de criar cidadãos e virar a página do absolutismo do Antigo Regime do
século XVIII, mas as coisas mudaram muito desde então. Hoje, na
opinião do autor de Against Elections, estas não são mais do que um
mecanismo de perpetuação de uma aristocracia política que só se
distingue da aristocracia tradicional por não estar (tão) associada à
hereditariedade. É através das eleições que uma elite economicamente
favorecida cria uma ilusão de livre-arbítrio nas sociedades e, assim,
preserva o seu poder.
A situação atual assemelha-se mais à "pós-democracia" que foi descrita
pelo sociólogo britânico Colin Crouch, em 2004, citado na obra de
David van Reybrouck:
"Ainda que as eleições certamente existam e tenham a capacidade de
mudar governos, o debate público eleitoral é um espetáculo exiguamente
controlado, orientado por equipas rivais de especialistas
profissionais nas técnicas da persuasão e limitado à pequena gama de
temas escolhidos por essas equipas. A generalidade dos cidadãos têm um
papel passivo, dormente, até apático, não fazendo mais do que reagir a
sinais que lhes são transmitidos. Por detrás do espetáculo que é o
jogo eleitoral, a política é, na realidade, definida nos bastidores
numa interação entre governos eleitos e elites que representam os
interesses empresariais".
A política é demasiado importante para ser deixada aos políticos
Against Elections lê-se numa penada, mas o diagnóstico é bem suportado
por pesquisa e pontos de vista invulgares. Mas David Van Reybrouck não
se fica pelo diagnóstico, por relembrar a História e por alertar para
os riscos no horizonte: o belga deixa algumas propostas para promover
a eficácia e a (verdadeira) legitimidade dos cargos públicos. Porque o
problema não está na democracia, está nas eleições — a certa altura
foram elas que tornaram a democracia possível mas hoje são um
obstáculo.
Existem formas muito melhores (e mais ajustadas aos dias de hoje) de
deixar as pessoas falar do que um referendo ou eleições periódicas.
Parte de um esquema alternativo pode ser o regresso ao princípio
central da democracia ateniense, da Grécia Antiga: a escolha aleatória
de cidadãos para serem representantes do povo. Foi o que foi feito em
várias cidades-Estado do Renascimento, como Veneza e Florença, recorda
David Van Reybrouck. E como o cinema norte-americano não se cansa de
retratar, em muitos casos é assim que se faz Justiça, isto é,
sorteando um conjunto de cidadãos que irão debruçar-se sobre um dado
julgamento e irão produzir uma deliberação — é só uma questão de
aplicar o mesmo princípio à escolha de líderes democráticos.
"Com a escolha aleatória, não se está a pedir a um grande número de
pessoas para votarem sobre algo que apenas alguns compreendem, mas
está-se a selecionar uma amostra aleatória da população e assegurar-se
que essas pessoas se responsabilizam por obter um conhecimento
aprofundado sobre as questões, de forma a tomar uma decisão
fundamentada", defende o autor belga de Against Elections.
Esquemas deste género já foram experimentados nos EUA, na Austrália e
na Holanda. E David van Reybrouck aponta o caso da Irlanda, que em
2012 promoveu uma revisão de alguns artigos da Constituição e os
participantes não eram apenas uma comissão de deputados a trabalharem
à porta fechada. Havia uma mistura de políticos e cidadãos comuns: 33
políticos e 66 cidadãos, sorteados aleatoriamente mas assegurando uma
diversidade de idades, género e origem graças ao trabalho prévio de
uma agência independente. O resultado do trabalho deste grupo, que se
reunia um fim de semana por mês (ao longo de mais de um ano) para
ouvir especialistas de várias áreas, foi um conjunto de recomendações
que foram ao parlamento e, depois, aí sim, foram votadas em referendo.
Mas já foi uma forma inovadora de decidir algo, em democracia.
"Os cidadãos escolhidos aleatoriamente podem não ter o domínio da
política que têm os políticos profissionais, mas contribuem com uma
coisa absolutamente essencial para o processo democrático: liberdade.
Afinal de contas, eles não precisam de ser eleitos ou reeleitos",
resume o autor.
Esta é a base da proposta de David van Reybrouck, que no livro sugere
um sistema bi-camarário em que políticos e cidadãos trabalham em
conjunto para tomar decisões. A crítica que o autor ouve mais
frequentemente à sua proposta está relacionada com uma suposta
"incompetência" das pessoas que viessem a formar este tipo de
organismos plenários.
"É certo que um conjunto de representantes eleitos terá mais
competências técnicas do que um grupo escolhido ao calhas. Mas qual é
a utilidade de um parlamento cheio de advogados altamente qualificados
se poucos deles sabem quanto custa uma broa de pão?", pergunta o
autor. Para David van Reybrouck, críticas como estas são comparáveis
às críticas que se fizeram a quem, a certa altura, propôs que os
plebeus também pudessem votar. E, depois, que a classe trabalhadora
também pudesse votar. E, mais tarde, que as mulheres também pudessem
votar.
David van Reybrouck pergunta: "Precisamos de democratizar a
democracia. Do que é que estamos à espera?"
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