# Transhumanismo e pós-humanismo (1, 2 e 3)
http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/transhumanismo-e-pos-humanismo-1-5730228.html
Embora pouco debatido, está em marcha todo um projecto para modificar
o homem, no limite, pensando até na imortalidade, e cientistas
trabalham nele, com o apoio financeiro de grandes grupos, como o
Google, que tem em Raymond Kurzweil, um génio informático, autor de
The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology, o seu mais
afirmado profeta. É, pois, relevante que o filósofo Luc Ferry, que já
foi ministro da Educação em França, venha, numa obra exigente e
pedagógica, La Révolution Transhumaniste, alertar para a urgência da
reflexão sobre tão complexa temática: "Não se pode compreender nada
actualmente, passando ao lado das revoluções tecnológicas."
1. O transhumanismo, explica Ferry, é um filho da terceira revolução
industrial, a do digital e das NBIC: nanotecnologias, biotecnologias,
informática, ciências cognitivas, isto é, ciências do cérebro e
inteligência artificial. Tem três características fundamentais: a
passagem de uma medicina terapêutica a uma medicina de "aumento",
concretamente através da engenharia genética e da hibridação (um
exemplo: mediante um implante, ficar com uma visão de águia); passagem
do acaso à escolha, "from chance to choice", da lotaria genética a um
eugenismo; o aumento da vida humana, lutando contra o envelhecimento e
a morte (a Universidade de Rochester já aumentou em 30% a vida de
ratos transgénicos). Numa palavra: avançar para "homens aumentados".
2. No cruzamento da "convergência NBIC", em simbiose e mútua
fecundação exponencial, resultará um avanço prodigioso na investigação
e na técnica, de consequências imprevisíveis. Assim, por exemplo, na
sua obra brilhante e desafiadora De Animais a Deuses, agora
best-seller mundial com o título Sapiens, com mais de um milhão de
exemplares vendidos, o historiador Yuval Harari não hesita em dar como
título ao último capítulo "O fim do Homo sapiens", escrevendo: "Os
futuros senhores da Terra serão, provavelmente, mais diferentes de nós
do que nós somos dos neandertalenses. Isto atendendo a que nós e os
neandertalenses somos, pelo menos, humanos e os nossos herdeiros serão
semelhantes a deuses."
E dá exemplos do que está e pode vir a acontecer. Os laboratórios
começam a superar as leis da selecção natural, e aí está o caso de um
coelho verde e fluorescente. Já mudamos o género de um ser humano
através da cirurgia e de tratamentos hormonais. Com a engenharia
genética, produziremos porcos com gorduras boas e poderemos pensar em
"ressuscitar" criaturas extintas, incluindo um neandertalense,
conseguindo talvez desse modo, comparando o seu cérebro com o nosso,
"identificar que alteração biológica resultou na consciência". Com ela
e outras formas de engenharia biológica pode pensar-se em realizar
alterações profundas na nossa fisiologia, no sistema imunitário, na
esperança média de vida, nas nossas capacidades intelectuais e
emocionais. Se é possível criar ratos superinteligentes, "porque não
seres humanos superinteligentes e que se mantenham fiéis aos seus
parceiros?" E poder-se-á pensar na criação de "um tipo de consciência
completamente novo e transformar o Homo sapiens em algo diferente",
parecendo inclusivamente "não existir uma barreira técnica
intransponível que nos impeça de criar super-humanos". Existe uma
outra tecnologia que poderia alterar as leis da vida: a engenharia
cyborg: "Os cyborgs são seres que conjugam componentes orgânicos e
inorgânicos, como um humano com mãos biónicas" - pense-se no ouvido
biónico, em braços biónicos, controlados pelo pensamento, ou em
invisuais obtendo uma visão parcial. Talvez possamos um dia "ler a
mente de outra pessoa". "O mais revolucionário é a tentativa de
inventar uma interface de duas vias, directa do cérebro para o
computador, que permita ao aparelho ler os sinais eléctricos do
cérebro humano, transmitindo, por outro lado, sinais que o cérebro,
por sua vez, também possa ler. E se essas interfaces forem usadas para
ligar directamente um cérebro à internet ou ligar directamente vários
cérebros uns aos outros, criando desse modo uma espécie de internet
cerebral? O que poderia acontecer à memória, à consciência e à
identidade humanas, se o cérebro tivesse acesso directo a um banco de
memória colectiva?" E há programadores que "sonham criar um programa
que possa aprender e evoluir de forma absolutamente independente do
seu criador". "Suponha que podia fazer um backup do seu cérebro para
um disco rígido portátil e, depois, fazê-lo correr num computador.
Seria o seu computador capaz de pensar e sentir como um sapiens? Se
pudesse, seria o leitor uma outra pessoa?" E, se os programadores
informáticos pudessem "criar uma mente inteiramente nova, mas digital,
criada por código informático, integral, com sentido de si própria,
consciência e memória", estaríamos perante uma pessoa? O director do
Blue Brain Project afirmou que numa ou duas décadas poderemos ter "um
cérebro humano artificial, dentro de um computador, que poderá falar e
comportar-se como um humano".
3. Que fazer? Perante tamanhos desafios, embora alguns, segundo
parece, não vão além da ciência ficção, não se pode ficar indiferente.
E lá está Luc Ferry, exigindo "uma regulação que deve ser política". E
reflexão ética.
(2)
1 Parece claro que com as técnicas NBIC (nanotecnologias,
biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas) nos
encontramos no limiar de uma realidade completamente nova. Pergunta
essencial: tudo o que é tecnicamente possível é moralmente bom? O que
é que verdadeiramente queremos fazer?
Os problemas - filosóficos, éticos, políticos - estão aí, imensos,
desafiadores, urgentes. E não se pode ficar indiferente, pois é a
nossa própria humanidade enquanto tal que está em jogo. Béatrice
Jousset-Couturier, em Le transhumanisme. Faut-il avoir peur de
l"avenir, com prefácio de Luc Ferry, lembra o debate entre Jürgen
Habermas e Peter Sloterdijk, declarando este: "A domesticação do ser
humano constitui o grande impensado em relação ao qual o humanismo
desviou os olhos desde a Antiguidade até aos nossos dias." E, contra a
tese da descontinuidade metafísica entre "o que é" e "o que é
fabricado", afirma uma continuidade, sendo neste contexto, pensando no
pós--humanismo, que os coreanos do Sul elaboram uma carta ética dos
robôs. Caminhamos, sem problemas, para hibridações de várias espécies?
Com o acesso das novas técnicas a uma elite ou minoria, não surge o
risco "totalitário" do controlo dos indivíduos? Aí está uma das razões
para que Jürgen Habermas defenda a proibição de intervir no genoma
humano. Não se deve ser sensível às ameaças de eugenismo? O que é
facto é que os chineses desenvolvem o China Brain Project, "programa
de selecção totalmente eugénico destinado a criar uma população mais
inteligente". Nos Estados Unidos, é permitido seleccionar o sexo da
prole; porque não querer filhos também mais inteligentes? Caminharemos
para filhos à la carte e para o fim da ética? Enquanto Habermas se
opõe a toda a forma de "eugenismo liberal", Sloterdijk tende a reduzir
a história humana a uma sucessão de transformações nos modos de
produção técnica. Mas que pensar da possibilidade de transformar o
homem numa nova espécie? Para onde vão as nossas liberdades? E, com a
criação de vírus sujeitos a transformações incontroláveis, a nossa
segurança? B. Jousset-Couturier pergunta: quem dirigiria a ordem
mundial? O homem, a máquina, um híbrido? Quem tem o primado: a ética
ou as tecnologias? Viver-se-á mais tempo (excelente!), mas com que
sentido? Já é possível a modificação mnésica, por exemplo, apagando
lembranças, o que suscita a questão da falsificação da história e da
identidade.
Por isso, a Comissão Consultiva Nacional de Ética (CCNE) francesa
debruçou-se pela primeira vez sobre o "problema trans-humanista" e
concluiu (12.12.2013): "É indispensável uma vigilância ética, pois
ignoramos, a médio e a longo prazo, tanto ao nível individual como
social, os efeitos do desenvolvimento das nanotecnologias".
No contexto do desenvolvimento acelerado da inteligência artificial e
no quadro de uma nova revolução industrial comandada por robôs, o
Parlamento Europeu propõe legislação no sentido de precaver problemas
causados por essa revolução em curso.
2 O que aí fica tem também na sua base a possibilidade de máquinas com
emoção, inteligência, autoconsciência, no pressuposto de o homem ser
automatizável no seu conjunto. Pergunta Jean Staune, em Les Clés du
Futur: "E se se pudesse conceber um dia uma máquina que dispusesse de
todas as potencialidades de um ser humano, em termos de criatividade,
de emotividade, mas também, e sobretudo, que seja consciente da sua
própria existência e que, como todos os seres humanos, desejasse
melhorar a sua situação?" Esta possibilidade arranca do pressuposto de
que é o cérebro que produz a consciência. Assim, mediante o estudo
aprofundado dos mecanismos do cérebro, "chegaremos à compreensão do
funcionamento da consciência e poderemos fabricar uma máquina
susceptível de alcançar o mesmo nível de consciência e, portanto, de
evolução que a espécie humana tem". Mais: a partir daí, surgem
consequências que nos deixam perplexos e atemorizados. De facto, se a
máquina pode imitar o homem em todos os domínios, também pode
construir e programar máquinas, que trabalharão vinte quatro horas
sobre vinte e quatro horas e sete dias na semana, sem interrupção,
para produzir uma versão melhorada de si mesmas, até produzirem uma
superinteligência, algo que nos ultrapassará sempre e em todas as
ordens de grandeza, chegando o momento de uma "singularidade", isto é,
tudo quanto existiu ao nível cultural até então ficará obsoleto. "A
superinteligência será a última invenção da espécie humana e marcará o
fim desta sobre a Terra. A existência de uma inteligência milhares de
vezes superior à nossa só pode levar à nossa desclassificação e mesmo
ao nosso desaparecimento."
A espécie humana vai desaparecer na forma em que a conhecemos? Não há
problema, pelo contrário, pois, segundo Raymond Kurzweil, que em 2005
escreveu uma obra famosa com o título The Singularity Is Near e que
dirige uma universidade com esse nome, tornar-nos-emos nós próprios
máquinas, em fusão com elas, para um novo estádio da evolução. Já não
se trata de simples "trans-humanismo", melhorando o homem,
enxertando-lhe componentes electrónicas: "O fim último é ser capaz de
descarregar uma consciência humana num material informático. A
humanidade acederá assim à imortalidade." (B. Jousset-Couturier
informa que, quando interrogado em que é que se veria reincarnado, o
Dalai Lama não exclui a possibilidade de ser num computador.)
Questões imensas que obrigam a pensar. Mesmo se estamos ainda, em
múltiplos domínios, apenas no plano da ciência-ficção.
(3)
As novas tecnologias, que têm que ver com as NBIC (nanotecnologias,
biotecnologias, informática, ciências cognitivas, isto é, ciências do
cérebro e inteligência artificial), não deixam de nos surpreender
constantemente, de tal modo que transformar e melhorar a espécie
humana deixou de ser ficção. A identificação do processo CRISPR/Cas9
permite modificar o mapa genético, escrevendo a este propósito a
investigadora Maria do Carmo Fonseca: "Pode ser que pela primeira vez
o homem seja capaz de mudar o seu próprio código genético e a longo
prazo concretizar o sonho de melhorar a nossa espécie. Não vamos ser
imortais, mas poderemos ser super-homens." E criar uma nova espécie,
com a bifurcação da humanidade?
Os êxitos da computação são igualmente estrondosos nas suas inovações.
Assim, por exemplo, já se estreou o primeiro filme escrito por um robô
e ninguém deu conta; um robô foi dando aulas online durante um
semestre e ninguém se apercebeu; um computador bateu o campeão do jogo
GO e outro, programado pela IBM, bateu o campeão de Jeopardy, um jogo
no qual são apresentadas as respostas sobre os mais variados temas -
história, literatura, ciências - e os concorrentes têm de formular as
perguntas correspondentes. As capacidades dos computadores aumentarão
incomensuravelmente a cada dia. Em Fevereiro de 2017, cientistas de
vários países anunciaram que está em marcha uma nova revolução
tecnológica, com o projecto de construção do computador mais poderoso
de sempre, um computador quântico.
Aquele que é considerado o maior físico teórico da actualidade,
Stephen Hawking, não tem dúvidas quanto a isso, perguntando apenas até
que ponto isso trará benefícios para a humanidade, como disse em 2015:
"A um dado momento, nos próximos cem anos, os computadores superarão
os humanos graças à inteligência artificial. Quando isso ocorrer,
temos de assegurar-nos de que os objectivos dos computadores coincidam
com os nossos." Não é o único a prevenir. Luc Ferry e Jean Staune
chamam a atenção para os avanços da computação, nomeadamente no
domínio dos robôs, mas citam um conjunto de industriais visionários
como Elon Musk, responsáveis de grandes sociedades informáticas como
Bill Joy, matemáticos e especialistas em inteligência artificial, que
escreveram uma carta aberta apelando ao estabelecimento de uma
moratória sobre os progressos nestas matérias, pois o aparecimento de
uma superinteligência poderia ser a grande ameaça para a espécie
humana no século XXI. Hawking, de novo: "Conseguir criar uma
inteligência artificial seria um grande acontecimento na história do
homem. Mas também poderia ser o último" e, em Março de 2017, em
entrevista ao The Times, chamou de novo a atenção, em ordem à
sobrevivência, para a necessidade de controlo dos instintos agressivos
da humanidade, e apelou à criação de uma "espécie de governança
global", para conter os perigos da inteligência artificial. No mesmo
sentido, Elon Musk advertiu que os seres humanos, para se não tornarem
irrelevantes, vão ter de se fundir com a inteligência artificial. E
Bill Gates: "Eu sou daqueles que se inquietam com a superinteligência.
Num primeiro tempo, as máquinas realizarão numerosas tarefas em nosso
lugar e não serão superinteligentes. Isso deveria ser positivo, se
gerirmos a coisa bem. No entanto, algumas décadas mais tarde, a
inteligência será suficientemente poderosa para pôr problemas.
Concordo com Elon Musk e outros e não compreendo porque é que as
pessoas não se inquietam."
Estão aí perigos consideráveis, como robôs inteligentes assassinos, a
decisão de matar este ou aquele. E há toda uma nova zona de
inquietações à volta de uma sexualidade robótica, como teorizou Ian
Pearson no artigo "The rise of the robosexuals". Para não citar a
urgência em rever toda a problemática do trabalho, devido à destruição
de inúmeros campos de emprego por causa da robotização.
Evidentemente, temos de saudar os imensos benefícios que chegarão
mediante o uso das novas tecnologias, em vários domínios, como o
trabalho, a saúde: nanorrobôs que percorrerão o corpo detectando
doenças, cirurgias com robôs, facilitação da vida das pessoas sós e
incapacitadas, foi anunciado, já em 2017, que pacientes com esclerose
lateral amiotrófica, por exemplo, conseguem comunicar mediante um
computador capaz de "ler" os seus pensamentos...
Mas há questões imensas que obrigam a pensar e a intervir. Assim, o
Parlamento Europeu quer propor uma lei no sentido de criar um estatuto
legal específico para os robôs mais sofisticados, onde se prevê
pagamento de impostos, se substituírem os humanos em funções de
trabalho, seguros obrigatórios para cobrir danos que possam causar,
inclusão obrigatória de um botão de destruição - um kill switch. "Cada
vez mais o nosso dia-a-dia é afectado pela robótica. Para fazer face a
esta realidade e garantir que os robôs estão e continuarão a estar ao
serviço dos humanos, é urgente criar um quadro jurídico europeu
robusto", disse a responsável pelo relatório referente ao tema, a
eurodeputada luxemburguesa Mady Delvaux, que pensa também que se deve
definir claramente normas éticas para não permitir que um robô se
assemelhe demasiado a um ser humano, provocando "dependência
emocional", como se pudesse "amar" ou manifestar "tristeza". "Os robôs
não são humanos nem nunca serão", sublinhou Mady Delvaux. "Pode-se ser
dependente deles para tarefas físicas, mas não se deve nunca pensar
que um robô ama ou sente tristeza."
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