[Ver online, inclui video]
http://observador.pt/especiais/ha-uma-geracao-que-nao-desliga-iagora/
08 Abril 2017 Ana Cristina Marques
TIC, FOMO, mukbang e phubbing. A tecnologia não pára de evoluir e, com
ela, o nosso comportamento, em particular o dos mais novos. Pegando em
dois novos livros, falámos com psicólogas sobre o tema.
O smartphone como extensão do corpo de um adolescente e, por vezes, de
uma criança. Como um terceiro braço que nos permite estar em
permanente contacto uns com os outros, publicar fotografias e
partilhar estados emocionais. A ideia não é nova. Todos nós já
comentámos com amigos ou familiares que o filho não larga o telemóvel
por nada. Não desfazendo as vantagens associadas às novas tecnologias,
esse é um dos problemas a apontar. Um problema cada vez mais real e,
por vezes, banalizado.
"#Geraçãocordão – A geração que não desliga!" e "iAgora? Liberte os
seus Filhos da Dependência dos Ecrãs" são dois novos livros, escritos
por duas psicólogas, que abordam a problemática do uso, por vezes
excessivo, de smartphones e tablets por parte de crianças e
adolescentes. Ambas as obras, assinadas por Ivone Patrão e Rosário
Carmona e Costa, respetivamente, refletem sobre as vantagens e os
perigos das TIC — Tecnologias da Informação e Comunicação, e sobre a
sua influência em diversos aspetos da vida dos mais novos — desde as
relações sociais e familiares às novas formas de estudo.
Segundo um estudo do ISPA — Instituto Universitário orientado pela
psicóloga e terapeuta familiar Ivone Patrão, 25 por cento dos
adolescentes portugueses são viciados em tecnologia — o estudo, que
ainda está a ser finalizado, teve como amostra três mil adolescentes.
No seu livro, Patrão defende que estamos perante uma geração cordão,
que não desliga, e que vê na tecnologia uma extensão de si própria.
Nas primeiras páginas da obra que chegou às livrarias portuguesas no
final de março, lê-se ainda que esta geração tem de estar sempre
online — um fenómeno que pode ser apelidado de FOMO ("fear of missing
out", em inglês).
A influência das novas tecnologias na família
Ivone Patrão diz que o seu livro surge numa altura em que a tecnologia
e a internet entraram em casa há mais de uma década. Mas enquanto
gerações anteriores foram crescendo a par e passo com a dita
tecnologia, as crianças e adolescentes de hoje em dia não conhecem uma
realidade que não a do online. "A tecnologia entrou em casa de toda a
gente cheia de vantagens, com pouco espaço para se pensar nos riscos.
É preciso que pais e educadores comecem a falar desde cedo sobre
isso."
De acordo com o que a autora escreve no livro "iAgora?", as designadas
TIC — Tecnologias de Informação e Comunicação são capazes de estimular
mudanças na estrutura de uma família. Além de provocarem o alargamento
da rede social da família, os limites entre esta e o exterior
alteram-se, com os momentos em que a família está, de facto, sozinha a
serem cada vez mais raros. A comunicação entre os membros também se
transforma, com muitas destas ferramentas a serem auxiliares de gestão
no dia a dia, ao mesmo tempo que são uma entrave tendo em conta a
comunicação cara a cara.
Na prática, as novas tecnologias conseguem corromper as dinâmicas
familiares e afastar as famílias. Aquilo que deveria ser um espaço de
aprendizagem mútua entre pais e filhos cessa de existir quando todos
são absorvidos pelos ecrãs. Assim, a partilha de conhecimento e até de
acontecimentos acaba por cair para segundo plano, diz ao Observador a
psicóloga clínica Rosário Carmona e Costa.
Há que salientar as diferenças entre utilização excessiva e utilização
desadequada, tal como refere Carmona e Costa. "Se o meu filho vir dez
minutos de televisão por dia não é excessivo, mas se nesses dez
minutos estivermos à mesa já é diferente. Aí já não me vai contar
nada, já não vai partilhar como é que foi o seu dia. É importante que
os pais percebam esta distinção. A longo prazo pode ser tão
problemático como o consumo excessivo." Nesse sentido, é importante
que os pais aprendam a introduzir as novas tecnologias de forma
equilibrada. Isso implica, por exemplo, explicarem pontualmente aos
filhos como foi a sua experiência na infância, sem qualquer tipo de
dispositivos eletrónicos como os que existem atualmente. Aliás, o não
recuar à infância dos pais é considerado, no livro "iAgora?", um dos
erros que as famílias cometem na era das TIC. Outro aspeto a que a
família pode estar alheia é o facto de esta utilização exagerada
contribuir para a inibição da imaginação e da criatividade por parte
das crianças, sendo que há outros erros que poderão estar a ser
cometidos:
o não planear o tipo de atividades ou programas que a criança pode
fazer/ver, bem como a sua durabilidade;
perante o incumprimento das regras em torno da utilização das TIC, não
aplicar as devidas consequências;
não estimular a capacidade que a criança tem de brincar livremente,
sem estruturas lúdicas pré-definidas, que são fundamentais para o seu
bom desenvolvimento;
não permitir que os mais novos se aborreçam porque, tal como escreve
Rosário Carmona e Costa, "é importante que a criança tenha momentos de
'nada para fazer', de encontro consigo própria, de diálogo interno, de
imaginação para dar a volta à situação".
Citando a psicóloga clínica Catherine Steiner-Adair, Rosário Carmona e
Costa enuncia no livro sete pontos fundamentais de uma família mais
equilibrada quanto ao uso das TIC:
a família sustentável reconhece a presença considerada invasiva das
novas tecnologias e encontra uma forma comum de lidar com ela;
ela encoraja a brincadeira e promove atividades em conjunto;
cultiva os laços e as relações;
reconhece a originalidade de cada um e promove a autonomia;
desenvolve mecanismos saudáveis de discussão e desacordo;
partilha valores e conhecimentos de gerações passadas e preocupa-se
face ao futuro;
promove experiências offline.
"Não se pode introduzir um ecrã novo sem um conjunto de regras
associadas", diz Rosário ao Observador. "É preciso seguir a lógica de
que aquilo é um privilégio e não um direito, que a criança só tem
aquilo se…" A psicóloga clínica deixa ainda outra ideia no ar que
passa por não ter a televisão ligada a emitir ruído de fundo quando
ninguém está, de facto, a ver tv. Isto porque o ruído inibe a
comunicação entre a família. O que mais dizer? Que os pais têm de ser
modelos da boa utilização dessas mesmas tecnologias. Outras soluções
passam por retirar as televisões e os computadores dos quartos e não
permitir ecrãs durante as refeições.
Preto no branco, é preciso introduzir as tecnologias de acordo com a
idade e as necessidades de cada família. A velha máxima de "cada caso
é caso" tem especial aplicação neste contexto.
Qual o impacto do uso excessivo de ecrãs?
"De uma forma direta, o excesso de ecrãs pode afetar os mais novos do
ponto de vista físico, uma vez que promove uma vida mais sedentária,
mas o grande impacto acontece ao nível do desenvolvimento", esclarece
Rosário Carmona e Costa, que assegura que o problema não é o que as
crianças fazem quando estão voltadas para o ecrã, mas antes o que não
fazem. "Assim a criança não vai aprender a lidar com a frustração e,
nesta fase, é preciso que eles percebam que as suas ações têm
consequências."
O impacto comportamental deste uso excessivo no desenvolvimento das
crianças é visível em várias etapas: da dificuldade que elas possam
apresentar ao nível da autorregulação à pouca tolerância à frustração.
Neste contexto, os mais novos podem não saber esperar pela recompensa.
Escreve Rosário Carmona e Costa que, hoje em dia, "vemos meninos e
meninas que, em vez de comerem a sopa para irem ver televisão ou jogar
no tempo que sobra, estão já a receber a recompensa como forma de os
pais conseguirem terminar a tarefa". Ou seja, "já não temos meninos
que se portam bem à mesa para ir ver os bonecos mas sim meninos que
veem bonecos para se portar bem à mesa".
Os principais sintomas da SEE
Depressão
Flutuações de humor
Irritabilidade
Agressão
Pouca energia
Desatenção
Baixo autocontrolo
Sono pouco reparador
Baixa tolerância à frustração
Pensamento desorganizado
Diminuição da empatia
Desconfiança
Contacto visual comprometido
SEE, de Síndrome de Ecrãs Eletrónicos, é um termo recente para uma
tendência também ela recente. A síndrome tem por base um conjunto de
comportamentos que podem ser associados ao uso excessivo de ecrãs.
Falamos de crianças/adolescentes mais irritáveis, zangados, com
alterações de sono e dificuldade em cumprir regras. Nestas situações,
e caso os pais detetem o problema de forma precoce, a psicóloga
Rosário Carmona e Costa propõe a introdução de novas regras, a criação
de atividades alternativas e a promoção de novas competências. "No
caso de os pais não se sentirem suficientemente confiantes para
abraçar, sem orientação, o desafio, podem e devem procurar ajuda
profissional. (…) Mas a verdade é que, neste caso específico, é nos
pais que reside a grande responsabilidade terapêutica."
Rosário Carmona e Costa traz para a conversa um tópico um pouco mais
sensível, ao contar que ao consultório chegam muitos pais com filhos
que sofrem de depressão ou de ansiedade e que, nestas circunstâncias,
responsabilizam o uso excessivo de ecrãs. A pisicóloga clínica reforça
que, muitas vezes, os ecrãs funcionam como um escape para um
adolescente deprimido e que a culpa não é propriamente da tecnologia.
"Os pais acabam por achar que o problema é dos computadores. Eles têm
de estar atentos aos sinais. Há miúdos com perturbações de ansiedade
que acabam por se socorrer no mundo virtual", diz em conversa com o
Observador. Situação idêntica acontece em relação ao défice de
atenção.
Dito isto, a mesma autora escreve no seu livro que "do ponto de vista
psicopatológico e das perturbações de desenvolvimento, a Perturbação
de Hiperatividade e Défice de Atenção, a depressão e a ansiedade estão
associadas a um maior risco de uso excessivo de internet". É
importante salientar que quando os miúdos são mais pequenos, não é a
propriamente a internet que os seduz, mas sim as aplicações. A
internet só começa a ser um problema/desafio na (pré)adolescência.
"Partilho, logo existo." Redes e relações sociais
Não há timidez que resista a um contacto online, tão longe do
presencial. Em muitos casos, a internet consegue ser uma boa
mediadora. O problema existe quando se passa de uma socialização mista
— que compreende o mundo real e o digital — e se vive exclusivamente
num registo on. "E assim não concretizam uma das tarefas da
adolescência que lhes trará competências essenciais para ingressar no
mercado de trabalho. Perdem a oportunidade de ser espontâneos, de
experimentarem estratégias diferentes para a resolução de conflitos e
de lidarem com a frustração", lê-se na obra de Ivone Patrão. É como se
deixassem de viver em direto.
Neste contexto, as redes sociais — por vezes a anos-luz da realidade —
permitem a criação de várias identidades digitais e até de diferentes
histórias de vida — e nem é preciso criar múltiplas contas e perfis de
Facebook para isso. Segundo Patrão, há adolescentes que vão até onde a
imaginação lhes permite, apesar de correrem o risco de perderem a
noção de quem realmente são. "Assumir uma identidade presencial e
digital coerente é um desafio", escreve a autora.
Já Rosário Carmona e Costa alerta para o facto de as redes sociais
estarem não só a mudar o que fazemos, mas também quem somos, apesar de
aparentemente oferecem-nos três vantagens: o facto de podermos
direcionar a nossa atenção para onde quisermos, sermos sempre ouvidos
e nunca ficarmos sozinhos. "Usamos a tecnologia para nos definir,
compartilhando pensamentos e sentimentos à medida que eles acontecem,
e chegamos a criar experiências para termos o que partilhar, como se
acreditássemos que estar sempre ligados nos fará sentir menos sós",
escreve a psicóloga clínica, citando a apresentação "The Innovation of
Loneliness" de Shimi Cohen.
Isto para não falar dos riscos que os jovens podem enfrentar tendo em
conta a utilização das redes sociais, riscos esses apontados por
Rosário Carmona e Costa:
podem revelar informação sobre si próprios — o que pode ajudar
estranhos a determinar a sua localização, além da informação divulgada
poder ser usada posteriormente como arma de manipulação;
podem tornar-se vítimas de predadores e agressores (o chamado cyberbulling);
podem ficar expostos a conteúdo inapropriado;
e podem ter contactos inapropriados com adultos.
Novos palavrões para novos comportamentos
Um grupo de adolescentes está junto ao portão da escola, em roda. São
claramente um grupo, mas nem por isso comunicam entre si. Falam, ao
invés, via smartphone com outras pessoas e, também, uns com os outros.
Fica em falta o contacto visual. Outro exemplo? Está numa esplanada a
beber café com um amigo, irmão ou primo mas, volta e meia, conversa
com outra pessoa através de um chat. Troca mais palavras escritas do
que ditas. A isto chama-se phubbing. A palavra de sotaque e composição
inglesa é só mais um termo a juntar-se ao sexting, cyberbullying,
ciberstalking, grooming, selfies, likes, youtubers, bloggers e
mukbang.
A prática do phubbing faz parte de um leque maior de hábitos que, na
prática, inibem algumas competências sociais e relacionais. Um exemplo
claro de como os comportamentos e hábitos têm vindo a mudar, apontado
por Ivone Patrão, é o facto de as pessoas já não perguntarem
"desculpe, pode tirar-nos uma foto?". A pergunta caiu em desuso e foi
derrotada pela famosa selfie e até pelo selfie stick, uma realidade
que, mais uma vez, veio roubar-nos da oportunidade de meter conversa
com um estranho.
"Mais recentemente apercebemo-nos do fenómeno mukbang,com a sua origem
na Coreia do Sul. Consiste na visualização de vídeos desconhecidos a
comer. Estranho ou não, será uma forma de seguir a dieta de alguém, a
forma como come, e até de partilhar o tempo de refeição", escreve
Ivone Patrão. "Não podemos só viver à base de uma socialização
virtual", diz ainda a psicóloga e terapeuta familiar, apelando ao
conceito de socialização mista, que compreende o mundo real e aquele
inserido num ecrã. "A longo prazo, estamos a dar um tiro no pé no que
às competências exigidas no mercado de trabalho diz respeito." Se a
inteligência emocional fica por desenvolver, como serão os médicos,
advogados e carpinteiros do futuro?
A tecnologia no estudo e nas escolas
Há muitos jovens que acabam por dar a justificação de que não precisam
de saber isto ou aquilo, porque basta ir a um motor de pesquisa que a
informação está lá, à distância de um clique e legível em qualquer
ecrã. A farpa é lançada por Ivone Patrão que, sem hesitar, afirma que
a forma de estudar de hoje em dia é bem diferente daquela
protagonizada por gerações anteriores. Já não basta ficar-se pelo
manual de estudo e pelos apontamentos tirados em aula, porque no
Google está toda a história e/ou ciência. "A preocupação é diferente",
esclarece a psicóloga e terapeuta familiar.
Não é por isso, no entanto, que as novas tecnologias deixam de ser
importantes. Bem integradas na comunidade escolar, são fundamentais
para realizar pesquisas. Mas, diz Patrão, é preciso tempo para se
digerir a informação que é cada vez mais rápida. E é também preciso
contacto com o mundo real: "Imaginemos que uma turma faz um trabalho
sobre segurança rodoviária. É preciso ir à rua e experimentar. O que é
que acontece se ficarmos só pela internet, sem que haja transposição
para o mundo real?" A pergunta tem razão de ser, dado que a premissa
de que está tudo online é uma falsa segurança. Falando em analogias
estudantis, a internet e os seus motores de pesquisa podem funcionar
como uma calculadora — há contas que nunca vamos saber fazer (ou até
utilizar) e, de qualquer maneira, as respostas estão ali, basta
inserir as equações.
--
---
Recebeu esta mensagem porque está inscrito no grupo "Pensantes" dos Grupos do Google.
Para anular a subscrição deste grupo e parar de receber emails do mesmo, envie um email para
pensantes1+unsubscribe@googlegroups.com.
Para mais opções, consulte
https://groups.google.com/d/optout.