http://observador.pt/especiais/ensaio-de-henrique-raposo-o-pos-verdade-e-o-pos-pecado/
Combater o pós-verdade? Talvez regressando ao realismo e à
transcendência da tradição que nos criou: o cristianismo. E com um
exame de consciência dos próprios cristãos. Um ensaio de Henrique
Raposo.
Zaqueu
Chamemos-lhe Joana. Tem quinze anos quando engravida. Contra a vontade
do namorado, da família e do ar do tempo, Joana assume a gravidez.
Vive num bairro popular, preconceituoso e impiedoso, é um bairro que
destila veneno piadético à passagem da sua barriga. Joana também deixa
a escola por razões óbvias. Tem o filho e bate à porta da igreja: quer
baptizar o bebé. O padre porém recusa o sacramento do baptismo à
criança, visto que Joana é "mãe solteira". Parece que o bebé está fora
de esquadria, qual parede torta e irrecuperável. Funcionando como coro
desta tragédia, as senhoras da paróquia, aquelas que se sentam nos
primeiros bancos da igreja, também não escondem o desdém pela jovem
pecadora que não merece entrar no redil dos justos. O espantoso é que
estas paroquianas e este padre são os primeiros a dizer que não se
deve fazer um aborto, são os primeiros a ir para a rua para formar a
falange do "não" ao aborto. A hipocrisia farisaica fala por si: a
Igreja que luta contra o aborto é a mesma Igreja que rejeita baptizar
o filho de uma rapariga que resistiu ao aborto com coragem; uma Igreja
empenhada na luta contra o aborto devia ser a primeira a mostrar
misericórdia sacramental com Joana e com o seu filho.
Antes da minha conversão, escrevi muitas vezes sobre este tipo de
histórias centradas nas Joanas da vida. Recebi sempre o mesmo tipo de
reacção de muitos católicos: num caso clássico de ataque ao mensageiro
que transporta o mal, diziam-me que "isso não é bem assim!", "nunca vi
isso na minha paróquia!", "você está só a difamar a Igreja". Depois da
eleição do Papa Francisco, estes católicos passaram a ter um problema
entre mãos: o mensageiro passou a ser o herdeiro de Pedro; ficou mais
complicado negar o mal. A história de Joana é a história central do
magistério de Francisco. Já era assim quando era apenas Jorge
Bergoglio. Em Buenos Aires, o arcebispo Bergoglio já criticava o
espírito farisaico que transforma o sacramento, sobretudo o baptismo,
numa chantagem e num mecanismo de imposição de um modelo perfeito de
família. Quando passou a liderar o Vaticano, Bergoglio continuou esta
crítica com palavras e actos, baptizando inclusive o filho de uma mãe
solteira na Capela Sistina.
Com este e outros exemplos, Francisco recorda-nos que Cristo não veio
para os perfeitos, veio para os imperfeitos. Recusar o baptismo a um
filho de uma mãe solteira é transformar o sacramento numa arma de
censura, não de misericórdia; é ser Javert e não Valjean, é
transformar a lei numa letra morta que seca tudo à volta com o
legalismo farisaico, é transformar o cristianismo numa eterna Quaresma
sem Páscoa, é desistir de alargar o perímetro da Igreja aos
imperfeitos, é estar num pós-verdade, num pós-evangelho. Sim, num pós
ou pré evangelho. Paróquias legalistas como a de Joana não são
paróquias de cristãos, são paróquias de fariseus que precisam de mudar
para voltarem à verdade. A sua atitude fechada e punitiva afasta
pessoas como Joana e como eu, diga-se. Depois de um passado de
indiferença e ateísmo, passei muito tempo na fronteira, no umbral, na
figueira de Zaqueu, o símbolo do agnóstico curioso em relação a Deus.
Por várias razões, demorei a descer da figueira em direcção à verdade.
Uma dessas razões foi sem dúvida a omnipresença das Joanas. Devido à
presença esmagadora desta e de outras histórias, eu não compreendia a
diferença entre o cristianismo e este farisaísmo amnésico. Sim,
amnésico e iletrado. Na Bíblia, Cristo vê Zaqueu curioso no alto da
figueira e diz "Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em
tua casa".
Repare-se que Zaqueu é um pecador de último grau: é um "cobrador de
impostos", isto é, um traidor e um corrupto aos olhos dos judeus.
Jesus não o censura, não o renega, vai jantar e dormir a casa dele, o
que causa um prenúncio de indignação nas hostes: "ao verem aquilo,
murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa
de um pecador". A resposta de Cristo é clara: "o Filho do Homem veio
procurar e salvar o que estava perdido" (Lc 19, 1-10). Se Cristo
acolheu um traidor corrupto, como é que a igreja não acolhe uma
criança inocente de uma mãe solteira? Uma Igreja que não compreende
este erro é uma Igreja que já desistiu da evangelização, porque fala
apenas para quem nasceu e cresceu dentro do redil. E os outros? E os
que nasceram e cresceram fora da Igreja e que, por isso, só podem
estar fora da ordem correcta dos sacramentos? E os que nasceram e
cresceram fora de esquadria? E os que esperam na figueira da
imperfeição? Quem quer entrar na igreja vindo de fora não pode ser
perfeito do ponto de vista sacramental – compreender esta intrínseca
imperfeição do mundo é a essência da evangelização. É por isso que
Francisco tem apelado ao centro da mensagem do evangelho, que muitas
vezes é esquecida por uma igreja obcecada com um culto da perfeição,
que é mais samurai do que cristão:
"A lei não foi feita para o justo, mas para os maus e rebeldes, para
ímpios e pecadores, para sacrílegos e profanadores, para parricidas e
matricidas, impudicos, pederastas e traficantes de escravos,
mentirosos, perjuros" (1 Tm 1, 8-10).
Quem é que está mais próximo do Senhor? Uma mulher que fez vários
abortos e que se arrependeu, ou uma princesa certinha que nunca passou
por esta provação? Quem é que o Senhor escolheria para dialogar: uma
mulher que é um modelo de piedade e castidade ou uma mulher que
abortou no passado mas que revela curiosidade à passagem do Senhor,
observando-O a partir da figueira de Zaqueu?
A crítica interna de Francisco continua na questão da pedofilia, um
problema que ele atacou com uma energia fora do alcance de Bento XVI e
João Paulo II. E muito continua por fazer. Ainda há dias escrevi uma
crónica na Renascença sobre o filme Spotlight, que retrata a
descoberta do escândalo da pedofilia na igreja de Boston pelos
repórteres do Boston Globe. Com uma triste previsibilidade, alguns
amigos disseram-me de imediato que o filme era uma "cabala mediática"
contra a Igreja. Lamento, mas essa é a posição errada. Salvar a
reputação da Igreja não passa por encontrar "factos alternativos" ou
uma "narrativa" que evite a nossa própria podridão. Até porque a
reputação da Igreja ficou danificada não pelo facto em si (a pedofilia
de uma minoria de padres), mas sim pelo encobrimento da hierarquia e
pela negação do paroquiano comum. O paroquiano e a paroquiana comuns
não quiseram ver o que se passava debaixo do seu nariz. Ou seja, este
fenómeno de larga escala que envergonha todos os católicos só foi
possível porque o catolicismo em geral permaneceu numa bolha de
pós-verdade.
Muitos católicos estão desconfiados em relação ao Papa Francisco.
Alguns nem sequer escondem o ódio que sentem pelo primeiro Papa
jesuíta. Nestas cabeças ultra-defensivas, o Papa devia atacar apenas e
só o exterior da Igreja, o mundo herege, o mundo ateu, o mundo da
indiferença religiosa. Esta atitude é um equívoco e uma traição do
Novo Testamento. Nos quatro Evangelhos e nas cartas de Paulo, os
principais alvos da crítica são os fariseus e os doutores da lei
(criticados por Cristo) e os cristãos judaizantes e farisaicos que
queriam fechar e nacionalizar a Revelação (criticados por Paulo). Os
fariseus que recusaram e recusam baptizar os filhos das Joanas e os
católicos que viveram e vivem em negação em relação à pedofilia odeiam
o Papa Francisco, porque preferem olhar para o mensageiro e não para o
mal. Além do mais, não há cristianismo sem debate interno forte, sem
críticos impiedosos. Haverá maior monumento cristão do que a Divina
Comédia de Dante? Mas haverá crítico mais impiedoso da Igreja do que o
próprio Dante Alighieri? Enquanto Monarchia (o tratado) ficou no index
entre 1554 e 1881, a Divina Comédia (poesia) continuou a espalhar a
mundividência católica como nenhum outro livro. Se calhar, o
catolicismo precisa de mais rebeldes.
Anarquia pós-moderna
Claro que a questão do pós-verdade também se aplica ao mundo exterior.
Aliás, neste tema do pós-verdade, o cristianismo pode ser o antídoto
fundamental.
Antes de tudo, devemos anotar que o pós-verdade não é novo. Entre
outros, Orwell, Camus e Chesterton escreveram sobre as novilínguas ao
longo do século XX. Há porém um dado novo e específico neste
pós-verdade 2.0. No século XX, a desonestidade do pós-verdade tinha
uma dimensão industrial, estava circunscrita às grandes ideologias; o
fascismo e o marxismo eram duas enormes fábricas de mentiras,
falácias, distorções; a novilíngua era imposta de cima para baixo na
lógica do totalitarismo. Ao invés, o pós-verdade do século XXI das
redes sociais não é imposto de cima para baixo, é um movimento de
baixo para cima que impõe incontáveis pós-verdades populares e/ou
populistas. O pós-verdade democratizou-se, massificou-se,
individualizou-se. Não há uma ou duas novilínguas, há dezenas de
tribos e dezenas de pós-verdades e novilínguas a vampirizar o espaço
público.
Onde antes havia totalitarismo há agora anarquia. E esta anarquia tem
duas grandes causas. A primeira é o pós-modernismo da esquerda
pós-utopia, pós-marxismo, pós-totalitária. Aliás, o verdadeiro nome do
"pós-verdade" é "pós-modernismo"; desde os anos 60, a esquerda
pós-moderna não tem feito outra coisa senão destruir o conceito de
verdade através do relativismo moral e epistemológico. No campo
epistemológico, determinou-se que não existe uma verdade empírica,
existem apenas narrativas e os torvelinhos e rodopios engraçadistas da
intertextualidade. Nesta mundividência, a realidade perde a sua forma
material, demográfica, económica, geográfica; deixa de existir uma
verdade empírica, objectiva, mensurável e independente da vontade
pessoal de cada um. Ficamos assim reduzidos a um mero verbalismo
estético que desiste de percepcionar a realidade que é comum a toda a
gente; em vez disso, cria-se uma realidade privada, a tal narrativa.
Repare-se que há aqui uma diferença fundamental entre perspectiva e
narrativa. Perante um facto ou problema empírico, podem e devem
existir diferentes perspectivas e soluções. É essa a essência do
pluralismo. Perante o facto em questão, as diversas sensibilidades
religiosas, morais e políticas podem e devem desenvolver percepções
particulares e parciais do facto. O que não podem fazer é criar uma
narrativa que negue a existência daquele facto. Por exemplo, as
diferentes sensibilidades políticas podem ter diferentes instintos em
relação à segurança social, mas nenhuma pode ignorar que Portugal tem
um rácio trabalhador-reformado de 1.6 e que o nosso índice de
fecundidade é um dos mais baixos do mundo (1.2 bebés por mulher).
Nenhum discurso pode anular esta fria realidade demográfica; estes
números formam um penedo inamovível, nenhuma artimanha linguística o
pode esconder ou arrastar. Um discurso que recuse ver o problema da
segurança social a partir deste ângulo perde logo legitimidade. Sim,
perde legitimidade.
O debate tem regras e negar evidências empíricas é uma clara violação
dessas regras. Mas a nossa tragédia intelectual está precisamente
aqui: o pós-modernismo, que treinou as duas últimas gerações de
jornalistas, intelectuais e até políticos, construiu um espaço público
que é a negação desta regra clássica; criou-se uma atmosfera
intelectual que despreza a evidência empírica. É como se a realidade
fosse uma mera extensão privada de cada pessoa. Cada pessoa cria o seu
próprio mundo, como se não existissem constrangimentos materiais à
expressão linguística do livre arbítrio. Pior: é como se as palavras
não tivessem significado material e moral lá em baixo na realidade. É
por isso que o típico intelectual pós-moderno como Zizek analisa o
cristianismo através dos ovos Kinder, procurando dessacralizar a
Bíblia com esse engraçadismo linguístico. É por isso que o mesmo Zizek
tenta desvalorizar as mortes do totalitarismo estalinista, brincando
com a própria palavra "totalitarismo" (Did Somebody Say
Totalitarianism?). É como se não tivessem morrido milhões de pessoas
no Gulag, é como se o Arquipélago do Gulag de Soljenitsin não fosse
reportagem, mas sim ficção.
Se aboliu a verdade enquanto conceito empírico, o pós-modernismo
também destruir a verdade enquanto conceito moral. Aliás, é essa a
essência do chamado "politicamente correcto" ou "comunitarismo"
(também conhecido por "multiculturalismo"). Estas duas modas
intelectuais hegemónicas no Ocidente dependem da vigência do
pós-verdade e da destruição do Direito Natural, isto é, dependem da
destruição da ideia de que existe uma moral eterna, intemporal e
aplicável a todos os homens de todas as culturas e épocas. De forma
reaccionária, esta esquerda comunitarista diz que não existe uma moral
jusnaturalista com jurisprudência sobre as diversas culturas; cada
cultura é autónoma e define por si só a sua verdade em circuito
fechado; não há direito natural, tudo é relativo. É por esta razão que
não se pode criticar muçulmanos, negros ou ciganos a partir de um
conceito universal de decência. Diz-se que esse conceito universal de
decência é na verdade uma visão "racista" ou "eurocêntrica".
A liberdade do cidadão não é livre arbítrio do consumidor
A direita não se pode ficar a rir, porque também tem culpa neste
cartório, sobretudo a direita que sacralizou o mercado. Porquê? Um
livro de Walter Lippmann com mais de meio século, The Public
Philosophy, ajuda na resposta. Seguindo uma lógica conservadora ou
liberal clássica, Lippmann recordou em 1956 uma lição antiga: antes de
sermos consumidores de um mercado, nós somos cidadãos de uma
república; o mercado pode e deve ser o centro da economia, mas não
pode nem deve ser o centro da república. O mercado é somente um
instrumento económico, só decide o que é mais rentável e produtivo;
não pode nem deve decidir o que está certo ou errado ao nível da res
publica. Uma coisa é dizer que o mercado é o melhor mecanismo de
produção e distribuição de riqueza (um debate fechado); outra coisa é
deixar para a amoralidade do mercado decisões morais que devem ser
tomadas pelo cidadão e pela política. O mercado não é nem moral nem
imoral, é amoral; é só um instrumento material, não é um projecto
moral. O que é excelente, diga-se.
O erro do marxismo foi submeter a economia à moral (ou vice-versa),
transformando o Partido numa idolatria infalível; o Bem e a Justiça
resultavam da decisão do Partido. Ora, depois de 1989, uma certa
direita libertária ou anarco-capitalista quis elevar o capitalismo a
este nível de infabilidade moral; sacralizou o mercado da mesma forma
que os marxistas haviam sacralizado o Partido, assumindo que o
capitalismo é automaticamente benigno: se o mercado vai num certo
sentido, então é porque esse sentido é Bom e Justo em si mesmo. Ou
seja, esta direita assumiu que o mercado é o fim da história, o
elemento que dispensa os debates políticos e morais. Isto nunca fez
sentido; agora no contexto do pós-verdade faz ainda menos sentido e é
cada vez mais uma ameaça ao espaço público e a liberdade da república.
A figura secundária do consumidor está a destruir a figura central do
cidadão.
O consumidor não tem uma responsabilidade pública, é um ser
completamente privado, o seu livre arbítrio só tem um limite – a sua
conta bancária. Já o cidadão tem uma responsabilidade pública, o seu
livre arbítrio tem vários limites. São estes limites que temos de
reconvocar. Nós não somos seres completamente privados, temos
responsabilidades públicas, partilhamos um chão comum com milhões de
outros cidadãos. E este chão comum começa num espaço público assente
em regras e valores partilhados por todos. Uma república formada
apenas por consumidores é uma república que vai destruir a sua própria
liberdade, porque confunde "liberdade" com "livre arbítrio". O
consumidor vive nos seus instintos, nas suas preferências interiores,
nos seus gostos. E gostos não se discutem.
Mas falar e actuar no espaço público não é uma mera questão de gosto,
não é uma mera expressão do livre arbítrio privado. Como dizia Hannah
Arendt, a liberdade republicana nasce numa interacção entre cidadãos
regida por regras que são superiores à mera opinião privada de cada
um. Ou seja, a liberdade não está no coração do homem, está na
interacção de dois cidadãos num chão comum. Só assim pode haver
liberdade. Convém portanto ressuscitar uma tradição mais antiga e
conservadora de liberalismo, uma tradição que nos dizia que o cidadão
não é um mero consumidor, pois a razão e a moral não são produtos
comerciais para compra ou venda; uma tradição que nos dizia que a
liberdade do cidadão é criada pelas regras do espaço público. As
regras não são uma limitação da liberdade, são elas próprias a
essência da liberdade. No rol destas regras, encontra-se o respeito
pela realidade empírica que não depende de opiniões. O problema é que
temos cada vez mais indivíduos imunes a esta regra, porque consomem
informação da mesma forma que consomem calças, carros e brinquedos; só
consomem a pseudo-informação que confirma à partida os seus gostos. A
internet transformou a informação num mercado negro. As pessoas clicam
nos links que confirmam os seus preconceitos, clicam nas páginas que
agradam à sua sensibilidade de consumidor, fazem like naquilo que lhes
dá prazer. Só que o gosto e prazer do consumidor são o preconceito e a
ignorância do cidadão. O algoritmo do Facebook trata do resto.
As duas pulsões (o pós-modernismo de esquerda e a divinização do
mercado da direita) acabam por se juntar numa única corrente: o
igualitarismo democrático que está a corroer as ideia de República, de
Liberdade, de Verdade. Estamos a dois passados do abismo da democracia
pura. Cada indivíduo, armado com o seu smarthphone, é hoje em dia uma
pseudo-verdade separada de tudo o resto, não admitindo a existência de
nenhuma verdade superior ao seu próprio subjectivismo. Isto tem duas
consequências. Em primeiro lugar, desenvolveu-se esta ideia falaciosa:
se todas as pessoas são iguais, então todas as opiniões são iguais;
dizer-se o contrário é incorrer no pecado do "elitismo". Esta falácia
resulta de uma confusão entre moral e capacidades: sim, graças a Deus,
as pessoas são todas iguais do ponto de vista moral e legal, mas não
são iguais ao nível das capacidades. Há uns mais fortes do que outros,
há uns mais inteligentes do que outros e, acima de tudo, há uns que
estudam mais do que os outros – e este estudo cria a autoridade do
saber que está por cima da mera opinião. Mas, como diz Tom Nichols em
The Death of Expertise, vivemos numa era que despreza a autoridade do
conhecimento e do estudo. Nas faculdades, um aluno de primeiro ano
acha que a sua opinião é tão válida como o catedrático com décadas de
estudo, e sente-se ofendido quando o catedrático o coloca no seu
devido lugar. Em segundo lugar, este igualitarismo democrático cria um
ambiente onde não existem valores superiores ao "eu". Nada existe por
cima do "eu acho", nem Deus, nem as regras da liberdade (a república),
nem a família, nem a ciência, nem o saber. Por outras palavras, este
clima de pós-verdade é a perfeita consumação do pecado original – a
ideia de que o homem é completamente autónomo e que sua verdade é
feita por si próprio num circuito fechado; é o homem que determina os
critérios morais que avaliam a conduta moral do homem. Como dizia
Chesterton, os manicómios estão cheios de homens que se julgam
autónomos.
Cristianismo como pó
O cristianismo é importante não só porque tem o conceito certo para
descrever o vício do pós-verdade (pecado original), mas também porque
é na tradição bíblica que vamos encontrar o antídoto para esta doença
intelectual. O cristianismo é realista e transcendente ao mesmo tempo,
e esta dupla face é necessária para enfrentar as duas variáveis do
pós-verdade, o pós-verdade que nega a verdade empírica e o pós-verdade
que nega a verdade transcendente.
O Papa Francisco costuma dizer que "a realidade é superior à ideia".
Isto quer dizer que não pode existir um cristianismo abstracto e
afastado da realidade. Ser cristão implica estar rente ao chão, no
meio do pó, do sangue, das feridas, do pus, da doença, da morte. O
cristianismo não é um cómodo sistema de ideias platónicas que não
tocam na realidade humana; o cristianismo não é teórico, é biográfico
ou autobiográfico. O Verbo encarnou no homem e nasceu no meio do pó e
do esterco. Costumo levar as minhas filhas a quintas cheias de
animais. Quando elas se começam a queixar do mau cheiro, digo-lhes
sempre que Ele nasceu ali, no meio do mau cheiro, dois palmos acima do
estrume. A fofura do presépio moderninho esconde esta dureza original.
A outro nível, muitos jovens vêm falar comigo sobre grandes tratados
teológicos ou filosóficos, querem discutir as grandes ideias, as
grandes palavras que nos esmagam com o peso majestático da maiúscula.
Começo sempre por lhes dizer o seguinte: "meus caros, têm de ler
romances ou biografias, é aí que vão encontrar os dilemas morais que
constroem o cristão por dentro". Nós não amamos o Cristianismo, amamos
Cristo. Não amamos a Humanidade, amamos homens concretos. É por isso
que o pensamento hebraica e bíblico, ao invés do grego, é feita de
histórias, narrativas e parábolas, recusando as grandes ideias
abstractas.
Estes pés cristãos bem assentes no pó são importantes porque o
pós-verdade começa por atacar a verdade enquanto evidência empírica.
São às centenas os exemplos desta disfunção. Vou isolar apenas os que
me parecem mais evidentes. Por exemplo, perante as perguntas "acha que
vive num período violento ou pacífico?" e "acha que tem mais paz ou
mais violência do que gerações anteriores?", a maioria das pessoas diz
que vive num período violento, mais violento do que períodos passados
– um erro quilométrico. Como muitos autores como Steven Pinker já
demonstraram, esta narrativa negra não faz sentido. Nós vivemos num
dos períodos mais calmos de sempre. Nem sabemos a sorte que temos. Mas
o 11 de Setembro não fez 3000 mortos? Mas os americanos não perderam
3000 homens na guerra do Iraque? Sim, é verdade. Mas perderam 58 mil
pessoas no Vietname e 750 mil na guerra civil. Só no dia D (invasão da
Normandia), os americanos perderam mais de 6 mil homens. Mas então não
há o terroristas islamita? Claro que sim. Sucede que o IRA, os Baader
Meinhof, as FP 25 de Abril, Brigadas Vermelhas, a ETA mataram mais
pessoas do que os actuais terroristas islamitas. Acham que é preciso
recuar mais no tempo ou já perceberam o ponto?
Seja qual for a época de comparação, não há ponto de comparação entre
o nosso período histórico marcado pela ordem e outros períodos
históricos marcados pela desordem e por algo que nós conseguimos
congelar até prova em contrário: não há guerra ou tensão pré-bélica
entre as grandes potências do sistema. Então porque é existe este
enorme erro de percepção? Os canais de informação 24 sobre 24 horas e
a internet criam esta miopia através de uma desinformação narcísica
que se desenrola da seguinte forma ao longo do dia: logo pela manhã, o
cadáver de um garoto morto na Síria passa em todos os canais de tv; ao
almoço, o cadáver continua a passar, gerando uma sensação de fim do
mundo; à tarde, essa sensação é transposta para o twitter e facebook:
as pessoas pegam na foto do garoto e fazem posts ou tweets
lacrimejantes e narcísicos, gerando uma competição xaroposa ao nível
da Miss Mundo – "o mundo vai de mal a pior", "teremos salvação?",
"choro pelos mortos da Síria", "je suis não sei quê", etc., etc.
Cria-se assim uma narrativa internética e apocalíptica sem qualquer
relação com a realidade. Síria? O que é específico da Síria em 2017 é
a sua raridade. No passado existiam várias Sírias ao mesmo tempo.
Portugal foi uma Síria na primeira metade do século XIX. Não, o mundo
não tem sido horrível para nós, tem sido até bastante maravilhoso.
Perante a pergunta "a pobreza aumentou ou diminuir nas últimas
décadas?", a maioria das pessoas diz que a miséria aumentou. Outro
erro grave. Não é uma questão de opinião, é uma questão de facto. Numa
geração, a globalização cortou para metade a pobreza à escala global.
Em 1990, a pobreza extrema atingia 1.9 biliões de pessoas. Em 2015, os
miseráveis dos miseráveis eram 836 milhões. Em 1990, 47% da população
dos países mais pobres vivia com menos de um dólar por dia. Hoje em
dia, esse número ronda os 14%. Em 1990, 12,7 milhões de crianças até
aos cinco morriam por ano no chamado terceiro mundo. Agora morrem 6
milhões. Ainda é grave? Sim. Mas repare-se que ocorreu uma melhoria de
50%. Em 1990, morriam 380 mulheres por 100 mil partos nos países em
vias de desenvolvimento. Em 2000, morriam 300; hoje o número está nas
210. Passa-se o mesmo com doenças. A pólio e a malária estão a
desaparecer devido a campanhas de vacinação. No entanto, aqui no
ocidente pinta-se o mundo com cores negras, quase apocalípticas. Hans
Rosling, grande intelectual sueco que faleceu há pouco, passou os
últimos anos a desmontar esta percepção errada.
À pergunta "o mundo melhorou ou piorou nos últimos anos?", só 23% dos
suecos e 5% dos americanos deram a resposta certa. 39% dos suecos e
66% dos americanos garantiram que o mundo tinha piorado. O curioso é
que Rosling fazia a mesma pergunta a um grupo de macacos. Desta forma
irónica, Rosling mostrava que a resposta aleatória dos macacos (33%)
estava mais próxima da verdade do que a resposta consciente de suecos
e americanos. As pessoas não querem ver a realidade tal como ela é,
não querem uma janela, querem um retrato, ou melhor, um auto-retrato;
não querem uma janela analítica sobre o mundo, querem um retrato desse
mundo pintado de acordo com as suas preferências. Se acham que a
globalização é terrível, então recusam aceitar os factos que mostram
que essa globalização retirou milhões da miséria mais abjecta.
Repare-se agora em três casos de negação de factos científicos: o
aquecimento global, os alimentos geneticamente modificados e as
vacinas. Muitas pessoas à direita continuam a negar as evidências do
aquecimento global, porque dizem que é apenas uma falácia pós-marxista
contra o capitalismo. Compreendo a fúria. De facto, o ambientalismo
radical usa o ambiente como uma nova arma contra o capitalismo (o urso
polar substitui o proletariado). Mas este radicalismo verde não
invalida os dados (sobretudo os da paleo-climatologia) que indicam a
presença da mão humana neste aquecimento. À esquerda, muitas pessoas
ligadas a este ambientalismo radical mantêm a opinião de que os
alimentos geneticamente modificados são pestíferos. Sucede que não há
qualquer indício empírico e científico que comprove esse preconceito.
As uvas sem grainha semi-criadas pela nossa engenharia são tão
saudáveis como as uvas normais. Passa-se o mesmo com o aberrante
fenómeno dos pais que recusam vacinar os filhos, alegando que as
vacinas são venenos químicos criados por uma enorme teoria da
conspiração médica que visa apenas alimentar as farmacêuticas. Perante
o achismo do "eu não quero vacinar o meu filho", séculos de ciência
são transformados numa corrente reaccionária que não respeita a
opinião das pessoas que acham que a medicina moderna é uma conspiração
química.
Fala-se muito na crise do jornalismo e há muitas críticas a fazer aos
jornais, sem dúvida, mas o problema começa logo num problema que está
fora do alcance dos jornais: boa parte das pessoas muito simplesmente
não quer ser informada; recusa a informação que nega as suas
narrativas e teorias da conspiração. Aquilo que começou como uma
utopia de informação e conhecimento (a net) acabou por se transformar
numa distopia obscurantista, irracional, anti-ciência.
O cristianismo propriamente dito
A par da verdade enquanto conceito empírico, temos de considerar a
verdade enquanto conceito moral, enquanto ética transcendente,
universal e atemporal que não depende de nada relativo, que não
depende da imanência humana e histórica, isto é, não depende de
Estados, nações ou partidos, não depende de culturas, tradições ou
folclores, não depende de avanços tecnológicos e, acima de tudo, não
depende da vontade ou opinião pessoal de cada um. Perante o "não
matarás" ou perante o "amai o próximo", a minha opinião conta
exactamente para quê? É uma irrelevância. O cristianismo ensina-nos
que há sempre algo superior à nossa própria opinião; existe uma
verdade transcendente que está situada numa esfera superior à nossa
mera imanência subjectiva. E temos sempre de filtrar a nossa opinião
através dessa peneira intemporal.
Mas, antes de olharmos para o mundo exterior, convém olharmos de novo
para o espaço católico. Porque esta questão do pós-verdade na moral
também afecta católicos, quer numa versão sofisticada, quer numa
versão humilde. Estas duas versões acabam por desenvolver um
catolicismo subjectivo à la carte. É como se fossem a um alfaiate
teológico encomendar um catolicismo feito à medida, que deixa no chão
bocados de tecido bíblico que não interessam.
Entre o povo mariano que enche Fátima, encontramos muitas pessoas que
dizem "Nossa Senhora é que é"; são pessoas que transformam o
marianismo num culto à parte, quase pagão e sem relação com a
Santíssima Trindade. Isto não faz sentido. Maria é um caminho para
Jesus, não é um fim em si mesmo. Devemos rezar com Maria, não para
Maria. Não se trata de snobismo perante o povo humilde, trata-se de
respeitar a verdade bíblica.
Entre os católicos mais sofisticados, ouve-se muitas vezes "não sou
bem uma católica ortodoxa, sou heterodoxa", "sou católico mais ou
menos, não praticante". Quer isto dizer o quê? Que cometem o pecado
oposto ao dos fariseus — o pecado dos saduceus. Se os fariseus são
legalistas e acabam por perder o rasto da misericórdia, os saduceus
são relativistas e entram num subjectivismo à Pelágio que acaba por
negar Deus, impondo à Bíblia o livre arbítrio do homem (o pecado
original); os saduceus estão e não estão na fé, não têm coragem para
ir até ao fim, escolhem umas partes, negam outras, que são
consideradas "pessimistas", "reaccionárias", "pouco modernas", etc. Um
exemplo clássico deste saduceu cool é o seguinte: aprecia a
luminosidade do 11.º mandamento (misericórdia) mas rejeita a doutrina
do pecado original. É demasiado negra, diz. Ao recusar o pessimismo do
pecado original, este católico-saduceu recusa ver-se a si mesmo como
um ser caído e imperfeito; este católico-que-se-diz-moderno esquece
que o cristianismo não é uma troca de peluches, é uma guerra pessoal
contra nós próprios. A Bíblia diz "odeia-te", força-nos a reconhecer
erros, leva-nos a filtrar e civilizar o nosso ego. Sem este pessimismo
validado por Santo Agostinho, o cristianismo corre o risco de ser um
livro de auto-ajuda.
A par da recusa do pecado original, este catolicismo de alfaiate
trendy recusa a própria existência dos diferentes pecados. Sim, muitos
católicos partilham uma das marcas do ar do tempo: encara-se o pecado
não como um mal objectivo, mas com uma ameaça à liberdade ou uma
negação da própria natureza de cada um. Como diz Tiago Cavaco em Seis
Sermões contra preguiça, a preguiça deixou de ser preguiça e passou a
ser uma espécie de traço de personalidade. A ira deixou de ser ira e
passou a ser outro traço de personalidade; aceita-se que aquele pessoa
tem "mau feitio" que não consegue controlar. A luxúria deixou de ser
luxúria e passou a ser "poliamor", "liberdade sexual" ou "novos
costumes". A mentira deixou de ser mentira e passou a ser "narrativa".
O pecado, que é imoral, passou a ser amoral, porque faz parte da
natureza das pessoas como a cor do cabelo ou o comprimento das pernas;
o pecado passou a ser neutro moralmente como o diâmetro do nariz ou a
espessura dos lábios.
Arrumada a casa, passemos para o exterior da igreja. Claro que este
ponto da verdade enquanto moral também implica um confronto com o
mundo. E aqui devo confessar uma coisa: não compreendo como é que se
pode pensar sem a presença de uma verdade eterna e transcendente que
não dependa das imanências relativas e históricas. É por isso que
costumo invocar o Direito Natural ou jusnaturalismo, que é uma outra
forma de falar de Deus sem assustar as pessoas. Se quiserem, o Direito
Natural é a razão prática retirada de uma razão pura (Deus). De Cícero
a Burke, de São Paulo aos pais fundadores dos EUA, passando por Kant,
o Direito Natural diz-nos que todos os homens nascem iguais e
detentores de direitos inalienáveis que nenhum poder político ou
cultural pode negar. A fonte do direito não é a política e o direito
positivo, mas sim uma ideia de justiça transcendente. O direito
positivo não cria direitos, só pode reconhecer direitos já
preexistentes. Mais: sem Direito Natural, nós não teríamos um ângulo
de crítica ético sobre os diferentes poderes de facto. Sem a presença
do Direito Natural, teríamos de aceitar à partida a validade moral de
qualquer tradição cultural ou de qualquer decreto-lei. Querem
exemplos? Num mundo sem a luz do Direito Natural, Richard Nixon teria
razão quando disse "se o presidente o faz, então está certo". Esta
frase de Nixon representa a sacralização do decreto-lei e do poder
positivo, representa um mundo onde Poder e Moral são sinónimos. Claro
que não são. A assinatura de um político ou um juiz não legitima de
imediato uma lei. Legitimidade e Legalidade não são sinónimos. Uma lei
pode ser legítima, mas também pode ser ilegítima. Aliás, o facto de
termos a liberdade e o ângulo ético para dizer "essa lei é ilegítima"
até pode ser visto como o pilar número do Ocidente.
Sem Direito Natural, teríamos de aceitar enquanto "especificidade
cultural" fenómenos como os "crimes de honra" ou como os "casamentos
forçados" das comunidades muçulmanos. Sem Direito Natural, tudo
passaria a ser relativo à história, à cultura, à tradição, logo
teríamos de dizer que um "casamento forçado" faz parte da "cultura
deles" e teríamos de reconhecer que essa e outras práticas não podem
ser criticadas porque não existe um critério moral e universal acima
da cultura de cada povo. Nesta lógica reaccionária partilhada por
nacionalistas de direita e pelo politicamente correcto de esquerda,
cada comunidade tem a sua própria bolha de pós-verdade. Maurras, o
antepassado de Le Pen, é igual a Edward Said, o antepassado dos
politicamente correctos. Ambos destruíram o jusnaturalismo; ambos
impuseram o relativismo da história como único critério de avaliação
da acção humana. Ora, se esta perspectiva de Maurras e Said estivesse
correcta, se tivéssemos de seguir esta sacralização da tradição
cultural expressa através de uma maioria democrática, a escravatura
nunca teria sido atacado por Lincoln, porque a vil instituição era
legítima aos olhos da tradição e da democracia dos estados
confederados; da mesma forma, a segregação não teria sido atacada por
Lyndon Johnson, porque era legítima aos olhos da cultura e da
democracia dos estados sulistas. Se seguíssemos esta perspectiva, as
mulheres brancas nunca poderiam ter conquistado o direito de voto,
porque a tradição dizia que as mulheres deviam ficar em casa.
Curiosamente, quando se fala hoje em dia das mulheres muçulmanas a
viver na Europa, o ar do tempo diz que elas estão condenadas à
submissão, "porque é a culturas delas e deles, porque é assim na
cultura muçulmana". Isto não é aceitável. Com ou sem tradição, com ou
sem cultura, forçar uma adolescente a casar com um homem mais velho
não é uma "especificidade cultural", é uma barbárie intolerável que
viola os direitos humanos.
A ideia de que existe uma noção de bem universal e independente do
poder político e do poder cultural também se aplica ao poder da
tecnologia. Tal como a imanência político-jurídica e tal como a
imanência cultural, a imanência tecnológica não decide por si só a
legitimidade de uma acção ou de uma invenção. A ciência, como vimos, é
soberana no campo empírico, mas perde essa soberania no campo moral.
Tal como o mercado, a ciência labora apenas no campo da possibilidade
material, não entra no campo das legitimidade moral. Por exemplo, a
ciência não decide a moralidade do aborto ou da eutanásia. A ciência
só responde a duas perguntas: é possível fazer o aborto? Se for
possível, quais são as formas mais indolores? A pergunta central
(devemos fazer um aborto?) não cabe à ciência, porque a ciência é
amoral por definição. Antes de entrar no laboratório, o cientista até
pode ser o mais preocupado e catolicíssimo dos cidadãos, mas ele sabe
que o seu trabalho científico dentro do laboratório tem sempre uma
linguagem amoral.
E o nosso problema começa aqui: a sociedade em geral está moralmente
despida perante as novidades científicas e tecnológicas. Aceita-se
qualquer geringonça sem questionamento moral, é como se a tecnologia
tivesse em si mesmo uma moral benigna: se é tecnológico, se é novo,
então é bom. O Bem e a Técnica fundem-se; confunde-se a possibilidade
tecnológica com a legitimidade moral. O resultado desta idolatria da
técnica é uma atmosfera amoral. Os exemplos são inúmeros. Por exemplo,
decidiu-se que a encriptação dos telemóveis está acima do próprio
estado de direito; mesmo que assim o exija em nome do bem comum, um
juiz não pode ter acesso ao interior encriptado de um iphone. Como é
que pode existir um espaço tecnológico que é uma bolha de pós-verdade
à prova de um mandato judicial?
A amoralidade volta a ser evidente nas questões da nanotecnologia e da
biotecnologia, que estão projectando um futuro pós-humano que deve ser
questionado. Temos o direito de introduzir nano-chips no nosso
cérebro, elevando assim as nossas capacidade mentais para níveis
pós-humanos? Temos o direito de entrar neste caminho cyborg que nos
funde com a máquina? Temos o direito de recorrer à eugenia para criar
ex nihilo os nossos filhos? Temos o direito de criar filhos sem a
doença x, y e z? E se podemos evitar geneticamente uma doença, isso
também quer dizer que podemos aumentar à socapa a inteligência desse
feto? Temos o direito de criar um fígado ou coração para trocarmos de
órgãos como se estivéssemos a trocar de pneus? Terei eu direito a
criar um clone que funcione como a minha oficina de órgãos
substitutos? Temos o direito de ressuscitar espécies animais extintas
como os mamutes? Não, não se trata de uma adaptação manhosa do
Jurassic Park. É uma hipótese real: em breve será possível recriarmos
ex nihilo uma espécie animal há muito extinta. Será possível. Mas será
legítimo? Essa é uma pergunta que ciência não pode responder. Essa
pergunta entra no perímetro da Igreja, não da ciência.
Realista e transcendente
Quer pela sua dimensão realista, quer pela sua dimensão transcendente,
a tradição cristã é o grande antídoto contra o pós-verdade, que
começa, como vimos, dentro da própria Igreja. Há um pós-verdade
fariseu e um pós-verdade saduceu; ambos são prejudiciais, ambos
danificam a capacidade da igreja para actuar sobre o mundo exterior. E
esse mundo exterior precisa, mais do que nunca, de uma injecção de
cristianismo. Tal como diz Pierre Manent, este momento de pós-verdade
no ocidente só pode ser combatido com um regresso às origens bíblicas.
Kant não chega, Tocqueville não chega. Burke não chega. Lincoln não
chega. Camus não chega. Tolstoi não chega. É preciso ir à fonte. É
preciso ir a Dante. É preciso ir a Santo Agostinho. É preciso ir à
Bíblia. Só nessa fonte vamos encontrar as verdades necessárias para
vencermos este combate intelectual. E, como dizia São Paulo, "apoiado
nelas, combate o bom combate, conservando a fé e a consciência" (1 Tm
1, 18-19).
Este bom combate tem duas frentes. Contra aqueles que recusam
reconhecer a existência de factos empíricos, insofismáveis,
mensuráveis e independentes da nossa vontade subjectiva, há que impor
o realismo e a humildade de uma fé que começou na manjedoura. O
cristão não é um místico etéreo, é um soldado que está rente ao chão,
colado ao solo e aos factos, sobretudo àqueles que podem ser
desagradáveis para as nossas ideias pré-concebidas. Contra aqueles que
recusam reconhecer a existência de uma moral universal, transcendente,
intemporal e com jurisprudência sobre a imanência da lei, da política,
da cultura, da tradição e da tecnológica, há que defender a razão pura
(Deus) e, acima de tudo, a razão prática (Direito Natural). Como dizia
Leo Strauss, se tudo é relativo, se não há direito natural, então o
canibalismo é uma mera questão de gosto.
Texto retirado da palestra proferida no "Fé e Cultura" organizado pelo
CUMN (Coimbra), 1 de Abril
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