# Os anos da troika. Portugal foi o único país a sair da crise com menos desigualdade
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25 Outubro 2017 Edgar Caetano
Estudo académico olhou para os países do sul da Europa e, criticando a
política da austeridade, destaca Portugal como o único destes países
onde o "aperto do cinto" causou menos desigualdade.
Portugal era um país com muito maior desigualdade social antes da
crise e, entre os países "periféricos" do sul da Europa, foi aquele
que, tendo sido obrigado a apertar o cinto, conseguiu fazê-lo
protegendo, ao mesmo tempo, os elementos mais vulneráveis da
sociedade. Estas são as conclusões de um estudo académico recente,
feito por uma espanhola e um grego, que critica duramente a opção
europeia pela austeridade na resposta à crise mas defende que, nesse
contexto, Portugal surge como o caso em que foi possível mitigar mais
os efeitos dessa opção.
Sofia A. Perez e Manos Matsaganis não seguiram exatamente o critério
dos países onde a troika esteve presente. A Irlanda e Chipre não
figuram na análise mas, por outro lado, está a Itália — que não foi
alvo de resgate mas também aplicou austeridade para conter a pressão
dos mercados — e Espanha, que não pediu resgate público mas acabou, em
2012, por receber dinheiro dos fundos europeus para reestruturar a
banca. Os outros dois países analisados são Portugal e a Grécia.
O estudo, publicado na New Political Economy, constata que houve
"grandes diferenças na magnitude e na conceção dos planos de
austeridade" entre os vários países. Não tendo sido resgatada, Itália
teve, em vários momentos, uma espécie de austeridade "faça você
mesmo", por pressão do Banco Central Europeu (BCE), mas não fezmuita
coisa: "impôs um ajustamento muito menor do que Espanha". Em
contraste, destacam os autores, "Portugal conseguiu causar menos
desigualdade apesar de ter feito uma consolidação orçamental robusta".
Portugal é, também, uma exceção positiva quando os autores assinalam
que, nos países em crise, "mesmo quando as medidas de austeridade
foram concebidas para reduzir a desigualdade, os efeitos
macroeconómicos de segunda ordem acabaram por aumentar a desigualdade
(exceto em Portugal)". Por outras palavras, isto significa que os
governos procuraram atenuar o impacto direto das medidas sobre os
cidadãos mais vulneráveis, mas a recessão económica acabou por levar,
por exemplo, a perdas de postos de trabalho, pelo que o efeito global
acabou por ser mais desigualdade — a exceção, aqui, portanto, foi
Portugal, apontam os economistas.
Quanto é que a economia caiu nos vários países?
A recessão mais profunda entre os países analisados verificou-se,
claro, na Grécia. O produto interno bruto (PIB) desceu 26% entre 2008
e 2013. Em Espanha, a economia contraiu-se em 9% e em Portugal 8%, o
mesmo que em Itália.
O estudo de Sofia A. Perez e Manos Matsaganis pode ser encontrado neste link.
E como é que Portugal conseguiu evitar que esses "efeitos de segunda
ordem" estragassem (tanto) a proteção que se tentou fazer através das
medidas (de primeira ordem) de repartição de esforços? Uma palavra:
exportações. "Em Portugal, o choque negativo para a procura interna
foi mitigado por um aumento considerável nas exportações. Em
contraste, na Grécia a fraca prestação das exportações revelou
fragilidades estruturais adicionais no modelo económico do país",
assinalam Matsaganis e Perez.
Antes da crise, Portugal era (de longe) o país com mais desigualdade
O dado poderá ser surpreendente para muitas pessoas, mas entre os
quatro países analisados, Portugal era (de longe) o que sofria com
maior desigualdade entre rendimentos antes da crise — apesar de ter
vindo a cair nos anos anteriores. Hoje todos os países analisados,
incluindo Portugal, continuam a ser mais desiguais do que a média
europeia, mas Portugal registou a maior correção dos níveis de
desigualdade, nos anos da crise, como mostra o gráfico de Matsaganis e
Perez, feito a partir de dados do Eurostat para o chamado "Coeficiente
de Gini".
Espanha substituiu Portugal como o país mais desigual do Sul da Europa
Como se mede a desigualdade?
Os autores baseiam-se em dois indicadores, um bem conhecido inventado
pelo italiano Corrado Gini, e outro, muito usado pela Comissão
Europeia, o S80/S20.
Este último, mais sensível a alterações nas extremidades (os
rendimentos mais altos e os mais baixos), diz respeito a um rácio
entre o rendimento total do quintil (20%) da população com rendimentos
mais elevados e, por outro lado, o rendimento total do quintil
populacional com menores rendimentos.
Bem mais conhecido é o coeficiente de Gini, que é mais sensível a
variações nos rendimentos médios e varia entre zero pontos (ou 0%) e
um ponto, ou 100%. O índice Gini mede a dispersão relativa dos
rendimentos numa população, pelo que num país onde toda a gente
ganhava o mesmo o coeficiente seria de zero. Quanto mais desigual for
a distribuição de rendimentos maior será o valor.
"Em Espanha, mas também em certa medida, numa primeira fase, Itália, a
crise financeira provocou um aumento da desigualdade desde logo",
notam os autores. Em contraste, na Grécia e sobretudo em Portugal os
anos até 2008 e 2009 foram marcados por uma correção dos níveis de
desigualdade social, graças a medidas como o Rendimento Social de
Inserção(RSI) e o complemento solidário para os idosos. O problema é
que, ao mesmo tempo, aumentava também o endividamento público destes
países.
Quando a crise apertou, depois da reeleição de Sócrates e de a crise
europeia se agravar com o resgate à Grécia (início de 2010), a
austeridade foi aplicada desde logo pelos países devedores. Mas a
troika acabaria, mesmo assim, por aterrar em Lisboa em 2011 — e, até
2014, não houve um aumento da desigualdade, mostram os dados. Pelo
contrário: baixou ligeiramente.
Para suportar estas afirmações, os autores recorrem a dois indicadores
que são dos mais utilizados quando se quer medir o grau de
desigualdade numa dada sociedade: o famoso "Coeficiente de Gini",
criado no início do século passado pelo matemático italiano Corrado
Gini, e, também o rácio S80/S20 (já lá vamos). "O aumento da
desigualdade, seja medido pelo Coeficiente de Gini ou pelo rácio
S80/S20, foi maior em Espanha, neste período", conclui-se no estudo.
Descida da desigualdade interrompida ainda no tempo de Sócrates
A "progressividade" na distribuição dos sacrifícios (e a subida das
exportações) durante o período da troika ajudou a que, ao contrário
dos outros países analisados, a desigualdade não se tenha agravado em
Portugal no período da troika (2011-2014). Mas a maior correção já
vinha de trás: a desigualdade em Portugal em 2004 estava acima dos
0,38 pontos. Ainda com José Sócrates no governo, contudo, o movimento
de descida da desigualdade foi interrompido, na altura em que o
endividamento excessivo obrigou ao resgate da troika.
O período analisado neste estudo termina em final de 2014, altura em
que Portugal tinha um índice de Gini de 0,34, ao passo que Espanha se
aproximava dos 0,35 (era de pouco mais de 0,32 antes da crise
financeira, nível onde Itália ainda permanece). Neste momento,
Portugal tem um coeficiente de Gini calculado em 0,33 pontos(incluindo
impostos e os cruciais rendimentos de transferências sociais), segundo
o FMI, o que fica acima da média europeia, que ronda os 0,31 pontos.
A "progressividade" na distribuição dos sacrifícios (e a subida das
exportações) durante o período da troika ajudou a que, ao contrário
dos outros países analisados, a desigualdade não se tenha agravado em
Portugal no período da troika (2011-2014). Mas a maior correção já
vinha de trás: a desigualdade em Portugal em 2004 estava acima dos
0,38 pontos. Ainda com José Sócrates no governo, contudo, o movimento
de descida da desigualdade foi interrompido, na altura em que o
endividamento excessivo obrigou ao resgate da troika.
Outro indicador, o S80/S20. Portugal desceu para 3º mais desigual
O outro indicador usado pelos autores, o S80/S20, mostra que Portugal
terminou 2014 sensivelmente com o mesmo nível de desigualdade entre os
salários mais elevados e os mais baixos (ver caixa sobre metodologias
de cálculo). Porém, a desigualdade medida por este indicador baixou
subitamente nos primeiros anos da crise e, depois, escalou
gradualmente — durante o programa de assistência — até perto do ponto
de partida.
Elogio a Passos Coelho? Sim, mas não só
O estudo académico é muito crítico da opção europeia pela austeridade,
que associou cegamente os excedentes à virtude e a dívida ao vícioe,
depois, o próprio FMI veio admitir que os efeitos negativos da
austeridade foram maiores do que o previsto (os chamados
multiplicadores). Foi esta política, na opinião dos autores, que
tornou mais profunda e, sobretudo, mais prolongada a recessão após a
crise de 2008. Mas os autores também criticaram o tratamento diferente
dado aos diferentes países.
"Em países devedores mais pequenos, como Grécia e Portugal, a troika
basicamente ditou os termos dos programas de austeridade. Já Itália e
Espanha tiveram uma posição negocial melhor e mais margem de manobra
no momento de decidir sobre a resposta que queriam dar: [Itália e
Espanha] eram países demasiado grandes para resgatar, e caso um deles
tivesse entrado em incumprimento com a sua dívida pública isso teria
significado o fim da zona euro", defendem os autores.
A pesquisa dos autores conclui que a tendência para o aumento da
desigualdade no sul da Europa deveu-se, sobretudo, à descida dos
rendimentos mais baixos. Entre 2008 e 2013, os gregos com menores
rendimentos tiveram um declínio (real, ajustado à inflação) de 51%, os
espanhóis perderam 34%, os italianos 28% e — o mais baixo entre os
países analisados — os portugueses viram o rendimento descer 24%.
Quanto aos rendimentos mais elevados, estes caíram 39% na Grécia, e
17% em Portugal. Em Espanha as pessoas com maiores rendimentos
perderam 16% e em Itália 8%, dois países que, portanto, não ficam bem
na fotografia da desigualdade.
Mariano Rajoy não fica bem na fotografia: Espanha tornou-se um país
muito mais desigual nos anos da crise. (Foto: MIGUEL RIOPA/AFP/Getty
Images)
E porque é que Portugal fica um pouco melhor na fotografia do que os
outros países? Como salienta o estudo, os políticos nem podem ser
culpados por tudo o que acontece de mau nem podem ser aplaudidos por
tudo o que acontece de bom. É, também, esse o caso quando se fala de
desigualdade — apertar o cinto significa mexer nos impostos, nos
apoios sociais e nos salários dos funcionários públicos. Mas há,
depois, os já mencionados efeitos de segunda ordem sobre o que se
chama de procura agregada numa economia. E aí já estamos a falar,
também, de rendimentos de mercado, por exemplo ordenados no setor
privados ou lucros das empresas.
Estes efeitos podem ter intensidades diferentes ou, mesmo, ter efeitos
contraditórios, no que à desigualdade diz respeito. Além disso,
intervêm na formação (ou atenuação) das desigualdades fatores que um
governo pouco ou muito pouco consegue influenciar: designadamente as
exportações, que dependem mais dos ciclos económicos e da procura por
parte do exterior.
Esse fator foi crucial para que, apesar de ter havido políticas que
tenderiam a agravar a desigualdade (sobretudo como efeito de segunda
ordem, com a recessão), o impacto foi atenuado pelas recuperações das
exportações — que eram a principal aposta do governo PSD-CDS. Ainda
assim, os autores do estudo elogiam a componente "progressiva" da
distribuição dos sacrifícios, no plano concebido pela troika e pelo
governo de Passos Coelho.
Mas pode ter havido outros efeitos, que vão além de qualquer executivo
governamental momentâneo, e que ajuda a que em Portugal tenha sido
possível atravessar a crise produzindo menos desigualdade. Cada país
teve resultados diferentes, conforme fatores como até que ponto os
partidos políticos eram dominados por interesses específicos ou
setoriais e, por outro lado, até que ponto as sociedades veem
noprotesto uma forma válida de moldar as políticas, acreditam os
investigadores Sofia A. Perez e Manos Matsaganis (que o Observador
entrevistou em 2015 a propósito da crise grega).
É nestes fatores que Matsaganis e Perez encontram as maiores
diferenças entre os quatro países. Os autores assinalam que "em
Portugal os aspetos mais importantes do esforço de consolidação
orçamental foram decididos de forma cooperativa pelos principais
partidos políticos" e, por outro lado, citando outros trabalhos
académicos, Matsaganis e Perez admitem que em Portugal os partidos
sejam comparativamente menos dominados por interesses particulares, o
que permitiu ao governo distribuir de forma mais "progressiva" os
sacrifícios, sem que faltasse o apoio dos outros partidos (neste caso,
do PS).
Por outro lado, em Portugal, "as elites políticas (formadas na
transição mais radical do país para a democracia [o 25 de abril])
foram mais reativas aos protestos públicos". E é sobretudo aqui que
deixa de haver elogios ao governo de Passos Coelho. Quem sabe, por
exemplo, o que teria acontecido aos números da desigualdade caso
tivesse avançado, por exemplo, a revisão da Taxa Social Única (TSU),
que acabou por ser abandonada depois dos fortes protestos públicos?
Outra questão: o que teria acontecido à desigualdade se algumas
medidas de austeridade não tivessem sido bloqueadas pelo Tribunal
Constitucional? Teríamos chegado ao final de 2014 com mais ou com
menos desigualdade?
"Um aspeto-chave da aplicação da austeridade em Portugal foi que
medidas importantes foram abandonadas perante protestos públicos ou
foram bloqueadas pelo Tribunal Constitucional."
Sofia Perez e Manos Matsaganis
Estas são questões impossíveis de comprovar, mas os autores notam que
"um aspeto-chave da aplicação da austeridade em Portugal foi que
medidas importantes foram abandonadas perante protestos públicos ou
foram bloqueadas pelo Tribunal Constitucional". "É provável que estes
fatores tenham limitado o peso suportado pelos grupos com menores
rendimentos", defendem os autores, notando que, por exemplo, em
Espanha, as manifestações foram "ignoradas" pelos dirigentes políticos
na altura (o que poderá ter ajudado à ascensão de partidos como o
Podemos e o fim do bipartidarismo PP-PSOE em Espanha).
Apesar de Portugal surgir, várias vezes e por diferentes razões, como
uma exceção positiva, os autores apoiam-se nos dados sobre a
desigualdade para colocar em causa a opção pela austeridade (em
economês, pela opção pela desvalorização interna nos países
devedores). Mas o que os preocupa, mais do que o que aconteceu durante
os anos da crise, é que a quebra do investimento público que se
verificou (e ainda verifica) em vários países, terá efeitos de longo
prazo muito negativos para a desigualdade.
"Os custos sociais foram elevados em todos os países. Acreditamos que
a austeridade no sul da Europa poderá ter consequências negativas no
longo prazo, que ainda não são totalmente visíveis, tanto para a
proteção social como para o crescimento económico", receiam Sofia
Perez e Manos Matsaganis.
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