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HENRIQUE RAPOSO RR ONLINE 07.12.2017
Nesse Natal sem caixas e embrulhos, elas aprenderiam algo que é cada
vez mais difícil de ensinar: a gratidão.
Claro que nunca terei coragem para a concretizar, mas a verdade é que
ando com esta ideia na cabeça há muito: não dar presentes às minhas
filhas no Natal seria um grande passo na sua educação.
Não estou a falar de uma moratória eterna contra os presentes em todos
os Natais; esta intifada anti-consumista seria consumada num único
Natal, num determinado ano; nesse Natal sem caixas e embrulhos, elas
aprenderiam algo que é cada vez mais difícil de ensinar: a gratidão.
Julgo mesmo que estamos a criar uma geração ingrata. Os nossos filhos
são ingratos por natureza, porque os presentes pingam ao longo do ano
de uma forma natural. Para as minhas filhas, receber presentes é quase
um acto da natureza, é tão natural e óbvio como a chuva. Aliás, neste
momento, ver a chuva a cair é algo mais raro e maravilhoso do que
receber presentes. A sensação de encantamento que vi nos seus olhos há
dias durante uma rara chuvada devia estar presente no momento em que
recebem um presente. Sucede que elas, à semelhança de milhares e
milhares de miúdos por este país fora, recebem os presentes com um
bocejo, brincam com eles durante umas horas ou dias e depois pedem
novos brinquedos.
No meu tempo, um brinquedo tinha um prazo de validade eterno. Para as
minhas filhas, tem o prazo de validade do iogurte. Confesso que não
sei como lutar contra esta ingratidão. Parece-me algo estrutural no
próprio ar do tempo.
Os preços do mercado são tão baixos que avós, tios, amigos e vizinhos
acabam por lhes oferecer presentes numa base semanal, para não dizer
diária. Ou são brinquedos, ou são roupas, ou são doces. Ou é a boneca,
ou é o boneco, ou é uma colecção nova de cromos do Continente e Pingo
Doce, ou é um par de meias do Frozen, ou é um par de pantufas do
Mickey, ou é um caderno, ou é um estojo da Branca de Neve, ou é outro
estojo do Frozen, ou é outro estojo da Patrulha Pata, ou é um puzzle
do Canal Panda, ou é uma caixa de legos, ou é um chupa-chupa, ou é um
chocolate, ou é um fato da Elsa, da Branca de Neve, da Rapunzel, da
Minnie – é carnaval o ano todo.
Claro que as pessoas fazem isto por bem, querem mimá-las. Para muitos,
esta generosidade até é uma forma de compensação: há cinquenta anos,
tiveram infâncias miseráveis e agora gostam de oferecer coisas às
miúdas num acto de amor, sem dúvida, mas também num acto de vingança
contra essa miséria passada. Eu próprio sinto isso. Não me pretendo
inocente, faço parte do problema. Adoro comprar-lhes coisas, sobretudo
filmes, livros, legos. Não tive uma infância desafogada e, muitas
vezes, era eu que inventava os meus próprios brinquedos. Lembro-me
sobretudo dos canhões e blindados que fazia com caixas de fósforos.
Hoje, à beira dos quarenta, a ideia de entrar numa loja para comprar
algo às minhas filhas dá-me uma sensação de conforto e, sim, de
vingança contra esse passado em que queria ter a Estrela da Morte em
lego ou o Barco dos Piratas da Playmobil. Queria, mas não podia; eram
presentes para lá do perímetro financeiro dos meus pais.
A causa é luminosa, mas a consequência é negra. Ontem, a mais velha
disse-me que "hoje ainda não recebi presentes". Que escândalo: vinte e
quatro horas sem presentes. Repare-se que esta é uma frase típica de
Dezembro e Agosto, meses de maior contacto com familiares e amigos,
meses que reforçam a chuva de presentes. Como é que vou lutar contra
isto? Quando entro na Fnac, tenho de combater o impulso que me leva a
procurar o novo filme da Pixar? E será que é legítimo proibir os
familiares e os amigos de oferecer presentes às minhas filhas? Será
que é legítimo pedirmos às pessoas que concentrem os presentes nos
aniversários e no natal? Já pensei nisso, mas seria talvez um pedido
demasiado brusco e até ofensivo. No entanto, não me parece ofensivo
impor - num determinado ano - um Natal espartano, sem presentes e
focado no presépio e não nas meias penduradas na chaminé ou na árvore
de natal. Terei eu coragem?
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