http://www.snpcultura.org/e_urgente_nutrir_a_vida_1.html
http://www.snpcultura.org/e_urgente_nutrir_a_vida_2.html
Quando se trata de pensar aquilo que nutre a vida é tão importante
fazermos o elogio da pequena história, não apenas da grande. Gosto
muito da proposta que, um dia, encontrei num livro de história: "Não
dar mais valor à queda de um império do que ao nascimento de uma
criança, nem mais peso às ações de um rei do que a um suspiro de
amor." Talvez um dia mereçamos uma história ensinada assim. Talvez um
dia nos preocupemos definitivamente mais com a pessoa do que com a
estrutura, com a singularidade mais do que com a afiliação. Talvez um
dia uma palavra, um rosto ou um destino quaisquer, eleitos assim ao
acaso, sirvam para revelar tudo: para nomear o entusiasmo e a dor, o
vislumbre e o combate, a razão e o enigma que existir significou e
significa. Porque a verdade é que passam os anos e o que resta deles?
Vivências. Sim. Restam as marcas de que estivemos aqui, de que
habitámos estações diferentes com a mesma mansidão ou o mesmo furor,
de que tentámos sobreviver ao amor, ao desamparo e à morte com tudo o
que tínhamos à mão, de que partilhámos, de que cremos e negámos coisas
diferentes e até a mesma coisa, de que coexistimos nos nossos
encontros e na nossa irredutível solidão. Restam de nós vestígios,
monumentos de vário tipo, pegadas. Resta o pó e o silêncio dos ossos.
Mas não só: de uma forma que não sabemos, o escasso lume que fomos
perdura e serve a outros para continuar. Façamos o elogio da pequena
história!
Nutrir-se de espanto
E façamo-lo, em contracorrente, nesta sociedade dominada pelo mito do
controlo, onde uma ideia de vida substituiu-se à própria vida. A nossa
viagem passou na nossa cultura para as mãos de um piloto, que só tem
de aplicar, do modo mais maquinal que for capaz, as regras previamente
estabelecidas. Os nossos sentidos adormeceram. Deixou de haver lugar
para a surpresa. Vivemos condicionados por uma espécie de guião. Uma
coisa, porém, tenho aprendido: é importante não condicionar o fluxo
espantoso da vida e a capacidade que ela tem de nos surpreender. A
nossa pequena vida é um instante em aberto. Somos chamados a
cultivá-la com a paciente humildade que um jardineiro reserva ao seu
jardim. O jardineiro trabalha de sol a sol, com todo o afinco, mas
sabe que a rosa floresce sem ele saber como. Felizes aqueles que, em
relação à vida, à pequena história se nutrem do espanto: esses, e só
esses, sentirão o inacabado do tempo como uma promessa.
Como ensina Jung, "o importante não é ser perfeito, o importante é ser
inteiro". Os pequenos triunfos dão-nos fortaleza para olhar as grandes
humilhações, e as dificuldades vividas dão-nos humildade para viver os
triunfos. As experiências de liberdade dão-nos a capacidade e a
esperança para suportar os momentos de penumbra; e os momentos em que
nos sentimos aprisionados dão-nos a resistência, a força e até o
sentido de humor para vivermos os tempos de liberdade. Há que afastar
de nós a tentação do cinismo e aceitar, finalmente, que somos feitos
destes materiais tão diversos e que tudo isso é dom, que tudo isso é o
nosso nutrimento.
Estamos prontos a honrar a vida?
Olhemos para dentro de nós. Se nos escutarmos em profundidade sabemos
que existem perguntas que estão desde sempre à nossa espera.
Subtraí-las é subtrairmo-nos e faltarmos à chamada que a vida nos faz.
Uma dessas perguntas prende-se com o desejo, e na forma mais incisiva
e pessoal formula-se assim: "Qual é o meu desejo?" O meu desejo
profundo, aquele que não depende de nenhuma posse ou necessidade, que
não se refere a um objeto, mas ao próprio sentido. "Qual é o meu
desejo?" O desejo que não coincide com as quotidianas estratégias do
consumir, mas sim com o horizonte amplo do consumar, da realização de
mim como pessoa única e irrepetível, da assunção do meu rosto, do meu
corpo feito de exterioridade e interioridade (e ambas tão vitais), do
meu silêncio, da minha linguagem. Como dizia Françoise Dolto, a nossa
hora só chega "quando, como qualquer outro ser humano sentimos um
desejo suficientemente forte para assumir todos os riscos do nosso
próprio ser. Aí estaremos prontos a honrar a vida de que somos
portadores".
O momento da aceitação de si
Olhemos para dentro de nós. A não sei quantas braças de profundidade
situa-se uma dor nunca reparada, mas que condiciona toda a superfície.
Identificar e cuidar dessa dor é a condição para sermos nós próprios e
podermos entender também a dor que os outros transportam, tocando a
nossa e a sua verdade. O momento da aceitação de si, com lacunas e
vulnerabilidades, é uma etapa crítica, dilacerante até, mas abre-nos à
transformação e fecundidade possíveis, abre-nos à enunciação do
desejo. E, não o esqueçamos, quantas vezes a vulnerabilidade acolhida
se torna a janela por onde entra a inesperada transparência da graça.
Somos crianças recém-nascidas
Uma das mais belas frases que conheço encontrei-a na Primeira Carta de
Pedro. E é esta: "como crianças recém-nascidas, desejai" - 1Pe2,2).
Somos, mesmo com dezenas, com centenas de anos em cima, mesmo quendo
passamos o meio da vida e todas as outras fronteiras, "crianças
recém-nascidas". E temos muito a aprender com a fragilidade dos
recém-nascidos que, no fundo, ainda é a nossa. A fragilidade é parte
integrante da vida, e não apenas como uma das suas formas ocasionais e
possíveis. Ela deve ser reconhecida como sua estrutura fundante. A
fragilidade é uma condição de partida, uma espécie de pacto de origem,
se pensarmos no modo como fomos gerados e introduzidos na existência.
Mas ela persiste, metamorfoseando-se ao mesmo tempo do que nós,
acompanhando-nos. Há que compreendê-la não simplesmente como uma
carência, uma incompletude que não nos larga até ao fim, uma
dependência das múltiplas relações que nos tecem. A fragilidade
permite-nos acolher a secreta e transparente melodia sem a qual não
entenderíamos a vida na sua inteireza, permite-nos explorar o desenho
delicadíssimo da sua paisagem interior, acariciar os seus fios ténues
que, descobrimos depois, são longos e indivisíveis como fios de chuva.
Quanta ciência existe naquele poema de Lao Tsé que diz: "quando os
homens ingressam na vida são tenros e frágeis; quando morrem são
hirtos e duros. Por isso os hirtos e duros são, desde o princípio,
mensageiros da morte e os tenros e frágeis são os mais credíveis
mensageiros da vida."
A fragilidade como parábola
A maturidade ajuda-nos a reconhecer a fragilidade como parábola. Há
palavras fortes e palavras frágeis. As fortes servem-nos de leme,
atiram-nos para diante, esclarecem, ordenam, organizam, confirmam.
Precisamos delas, claro. As palavras frágeis, porém, não são o
contrário das fortes. São palavras de outra natureza, representam
signos de outra gramática. E percebemos que elas são frágeis porque
são frágeis certos cursos de água que atravessam os bosques; certas
sequências de uma canção que se recitam quase em murmúrio não para
apagar mas para intensificar o canto; certas etapas cambaleantes que
servem ao bailarino ou ao viajante para um reencontro necessário com o
próprio passo; certas hesitações sem as quais não faríamos a
experiência da surpresa, do amor ou do espanto. Há emoções fortes e
emoções frágeis. As emoções fortes tornam-se marcos da estrada que
percorremos. Mas as emoções frágeis não são o seu inverso indiferente,
mas o seu complemento. Da alegria que provamos podemos dizer: é uma
estação breve. Da esperança podemos pensar: é uma sombra acesa que
passa. Da mansidão, da ternura, da inocência, da gentileza, da amizade
podemos temer: chegará o outono e também elas se desfarão. Que
insensatez, porém. O que vemos todo o tempo é o sol fazer estremecer
as folhas que nutre.
Se estamos dispostos a amar a vida
O mais importante não é, por isso, descobrir afinal se a vida é bela
ou trágica, se, feitas as contas, ela não passa de uma paixão
irrisória ou se a cada momento se revela uma empresa sublime.
Certamente está-nos reservada a possibilidade de a tomar em cada um
desses modos, só distantes e contraditórios na aparência. A mistura de
verdade e sofrimento, de pura alegria e cansaço, de amor e solidão que
no seu fundo misterioso a vida é, há de aparecer-nos nas suas diversas
faces. Se as soubermos acolher, com a força interior que pudermos,
essas representarão para nós o privilégio de outros tantos caminhos.
Mas o mais importante nem é isso, aprendemos depois. Importante mesmo
é saber, com uma daquelas certezas que brotam inegociáveis do fundo da
própria alma, se estamos dispostos a amar a vida como esta se
apresenta.
Há um trabalho a fazer
É necessário decidir, portanto, entre o amor ilusório à vida, que nos
faz continuamente adiá-la, e o amor real, mesmo que ferido, com que a
assumimos. Entre amar a vida hipoteticamente pelo que dela se espera
ou amá-la incondicionalmente pelo que ela é, muitas vezes em completa
impotência, em pura perda, em irresolúvel carência. Condicionar o
júbilo pela vida a uma felicidade sonhada é já renunciar a ela, porque
a vida é dececionante (não temamos a palavra). Com aquela profunda
lucidez espiritual que por vezes só os homens frívolos atingem,
Bernard Shaw dizia que na existência há duas catástrofes: a primeira,
quando não vemos os nossos desejos realizarem-se de forma alguma; a
segunda, quando se realizam completamente. E com aquela ligeireza que
só a grande profundidade permite, Santa Teresa de Ávila garantia que
"mais lágrimas são derramadas pelas súplicas atendidas do que pelas
não atendidas". Há um trabalho a fazer para passar do apego narcisista
a uma idealização da vida, à hospitalidade da vida como ela nos
assoma, sem mentira e sem ilusão, o que requer de nós um amor muito
mais rico e difícil. Esse que é, em grande medida, um trabalho de
luto, um caminho de depuração, sem renunciar à complexidade da própria
existência, mas aceitando que não se pode demonstrá-la inteiramente. A
vida é o que permanece, apesar de tudo: a vida embaciada, minúscula,
imprecisa e preciosa como nenhuma outra coisa.
A rosa é sem porquê
A sabedoria espiritual de que precisamos é a que nos faz viver a vida
mesma, a existência não como trégua, mas como pacto, conhecido e
aceite na sua fascinante e dolorosa totalidade. E quando é que chega a
hora da felicidade? - perguntamo-nos. Chega nesses momentos de graça
em que não esperamos nada. Como ensina o magnífico dito de Angelus
Silesius, o místico alemão do século XVII: "A rosa é sem porquê,
floresce por florescer/ Não se preocupa consigo, não pretende nada ser
vista".
D. José Tolentino Mendonça
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