# “Há pessoas que só são protagonistas da própria vida na hora de morrer”
27 Janeiro 2019 Ana Cristina Marques
É médica especializada em cuidados paliativos e está em Portugal para
apresentar um livro sobre a morte. Ana Cláudia Arantes diz que andamos
a desperdiçar o tempo e, no final, ninguém morre por nós.
"A morte é um dia que vale a pena viver." Será, por ventura, difícil
encontrar livros com um título que tão diretamente aborda a morte. A
obra que Ana Cláudia Quintana Arantes lançou no Brasil em 2016, e que
agora chega às livrarias portuguesas pela editora Oficina do
Livro/LeYa, é uma conversa sobre a morte, sobre morrer, esse
derradeiro ato de entrega que só pode ser protagonizado por quem o
vive, seja rico ou pobre, jovem ou velho.
Ana Cláudia trabalha na área de cuidados paliativos há mais de duas
décadas. Antes de conversar com o Observador a propósito do
recém-chegado livro ao mercado nacional era conhecida por ser a médica
que lê poemas aos pacientes, que "prescreve poesia na lida diária com
a morte". O ato inusitado valeu-lhe, em 2012, a participação numa
conferência TEDx, a mesma que, chegada ao YouTube, tornou-se das mais
vistas naquele país (são quase 2 milhões de visualizações) e serviu de
mote para esta obra.
A mensagem da autora está longe de ser mórbida. Ana Claudia — que por
estes dias está em território luso para apresentar o seu bestseller e
para dar um ciclo de palestras (dia 29 no Centro Hospitalar
Universitário, em Faro, às 18h, e dia 30 na Livraria Buchholz, em
Lisboa, às 18h30) — quer convidar os leitores a fazer melhor uso do
tempo, a não ter medo de conversar sobre a morte e a serem
protagonistas de uma vida que, se não tivermos atenção, corre depressa
demais:
Porque é que é tão difícil falar sobre a morte?
Penso que é um problema sobretudo ocidental. Acredito que no nosso
mundo ocidental exista muita dificuldade em ter uma vida com sentido,
uma vida plena, uma vida verdadeira, com presença. Estamos sempre a
adiar o nosso tempo, nunca estamos satisfeitos com aquilo que temos.
Achamos que dá sempre para melhorar, que vamos ter mais dinheiro, que
vamos ter mais condições, que vamos ser mais felizes e, por isso,
adiamos e perdemos tempo. A morte significa que o nosso tempo acabou e
quando temos de lidar com o tempo que não existe… aí, não falamos
sobre isso, não falamos sobre a morte porque não sabemos cuidar do
nosso tempo — não é um tempo de produtividade, é um tempo de vida.
Essa imaturidade que temos faz com que tenhamos medo de falar sobre a
morte.
O problema não será necessariamente a morte, antes a forma como
estamos a viver as nossas vidas?
Exatamente. Porque não queremos falar sobre nada que diga respeito à
impossibilidade, ao limite. Então, como não queremos falar sobre
limites, não queremos falar sobre a morte.
Quem é Ana Claudia Arantes?
É médica, formada pela USP, com residência em geriatria e gerontologia
no Hospital das Clínicas da FMUSP. Fez pós-graduação em psicologia –
Intervenções em Luto pelo Instituto 4 Estações de Piscologia e
especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium e pela
Universidade de Oxford. É coaturoa dos livros "Cuidado Paliativo" e
"Manual de Cuidados Paliativos"; em 2012 publicou o primeiro livro de
poesia, "Linhas Pares".
Acha que isso tem que ver com a forma como as sociedades ocidentais se regem?
Penso que o problema é sermos vítimas de não refletirmos sobre isto.
Culpamos a sociedade e o governo, culpamos os nossos pais, a moda e a
cultura, mas nenhum destes morre por nós, no nosso lugar. Somos nós
que morremos. A responsabilidade é nossa sobre a escolha do que fazer
com o nosso tempo, não é da sociedade, não é da cultura, não é dos
nossos pais. A responsabilidade é nossa. Quando culpamos os outros
sentimo-nos aliviados por termos descoberto o culpado, mas é uma
ilusão e o tempo não volta atrás. Não é como um assaltante que nos
rouba o dinheiro — o dinheiro pode ser recuperado. Os assaltantes de
tempo não têm como devolver-nos o tempo.
Como podemos, então, lidar melhor com o nosso tempo?
Respeitando o nosso tempo. Se estamos num trabalho e oferecemos 40
horas da nossa semana a esse trabalho… Esse trabalho merece 40 horas
da nossa vida? Não são 40 horas da semana, mas sim da vida. Esse
trabalho transforma-nos numa pessoa melhor ou só numa pessoa mais rica
ou mais poderosa? Os ricos e os poderosos também morrem. Podemos
morrer numa cama de ouro, mas também morremos. Podemos ter poder, mas
não convencemos ninguém a morrer no nosso lugar. Se o tempo que
dedicamos ao nosso trabalho é algo que nos transforma numa pessoa mais
feliz e transforma a vida das pessoas à volta em pessoas mais felizes,
ótimo, estamos a fazer um bom uso do nosso tempo. Se estamos numa
relação que nos transforma, que nos desafia, que nos provoca — pode
até trazer conflito, mas faz de nós uma pessoa mais forte ou mais leve
–, ótimo. Mas se é uma relação que destrói, que consome, que nos
transforma numa pessoa mais fraca, aí estamos a usar o tempo no lugar
errado.
A noção de que a vida é breve pode ser um obstáculo à forma como a vivemos?
É um espaço bem imaturo. Quando achamos que não temos tempo, queremos
correr. Tive um professor que começava as aulas muito devagar, ia
exercício por exercício, e a única sensação que toda a gente tinha era
de que não ia dar tempo. Mas ele terminava o último exercício, a
última resposta, e o sinal tocava. Um dia perguntei-lhe como é que ele
conseguia fazer aquilo. Respondeu-me assim: "Quando tiveres uma coisa
muito importante para fazer em muito pouco tempo, fá-la muito devagar,
só a vais fazer uma vez". Foi dos melhores conselhos que já recebi.
Tinha 18 anos. As pessoas, por norma, fazem as coisas com pressa, com
urgência, pelo que não as fazem com presença, num estado de presença.
Fazemos tudo já estando no final.
Isso vai dar à questão dos zombies existenciais… O que é um zombie emocional?
É uma pessoa a quem só falta morrer fisicamente. Aparentemente tem
saúde, mas não tem nenhuma saúde emocional, nem espiritual. Não tem
nenhum sentido na vida, é uma pessoa vazia.
Tem-se cruzado muito com pessoas assim?
A grande maioria das pessoas acaba por se comportar assim. Às vezes,
essas pessoas precisam do diagnóstico de uma doença grave para darem
conta de que o tempo acaba. Aí já estão atrasadas para viver uma vida
muito, muito importante, que está a passar ao lado. A vida não volta,
ela está correndo.
Mas, às vezes, cai-se numa rotina difícil de sair, castradora…
A rotina é castradora, mas é mais castrador a forma como vivemos a
rotina. O que faz a diferença é a forma como nos relacionamos com o
tempo, não exatamente o que fazemos dentro do nosso tempo.
Escreve que a morte é uma parte da vida e que mais difícil do que a
morte é morrer. Como assim?
Há uma música do Gilberto Gil que diz qualquer coisa como: "Não tenho
medo da morte, tenho medo de morrer, porque na morte já não estou, no
morrer sou protagonista, é o meu ato verdadeiro". O processo de morrer
é algo em que não existe a menor possibilidade de transferência.
Podemos transferir a escolha da profissão — podemos fazer algo que a
nossa mãe ou o nosso pai quer, mas que não é o que queremos realmente
fazer –, podemos casar-nos com uma pessoa que todos acham que é a
melhor para nós, mas que não é a pessoa que amamos… Abrimos mão de ser
protagonistas da nossa vida. Só que no nosso morrer, não há quem faça
isso no nosso lugar, somos nós que temos de o fazer. Há pessoas que só
vão ser protagonistas da própria vida na hora de morrer porque nunca
foram a pessoa mais importante da própria vida. Morrer é um processo
muito intenso e pode ser muito doloroso para aquelas pessoas que nunca
viveram a própria vida. Vivermos a própria vida só no final dela é
algo muito trabalhoso, porque vamos ver coisas e perceber situações e
experiências importantes que queremos viver, mas que agora não temos
mais tempo. Nesse processo de morrer é onde entram os cuidados
paliativos, onde vamos oferecer Às pessoas que têm uma doença que
ameaça a continuidade da vida delas a possibilidade de alívio de
sofrimento em todas as dimensões humanas, não só na fase final, no
tempo em que estamos moribundos, mas desde o primeiro dia.
Foram muitas as pessoas que encontrou nessas situações? De serem
protagonistas só naquele momento final?
Digo que vejo as pessoas, conheço-as quando elas podem ser quem
realmente são. As pessoas de verdade são encantadoras. São únicas. No
meu dia a dia, já tive pacientes com os quais partilhei a vida de
cuidados por mais de 10 anos. Como sou geriatra, há muitas pessoas a
quem faço diagnóstico e de quem cuido ao longo de toda a doença — há
pessoas que vivem 10, 15 anos com demência, por exemplo, até com
cancro. Já tive pacientes que levaram apenas horas a falecer, o que
não deixa de ser uma experiência única. Digo que há sempre algo para
ser feito, mesmo que tenha uma hora.
O que pode ser feito nessas circunstâncias?
Os cuidados paliativos implicam o controlo do sofrimento, cada
situação vai expressar um sofrimento ou vários sofrimentos simultâneos
— o sofrimento físico, emocional, familiar, social e espiritual. Não
dá para expressarmos sentimento emocional tendo dor. Primeiro, tem de
se tirar a dor. Só depois é que o paciente diz que está com medo. A
partir do tratamento da parte física, todo o restante se manifesta.
Muitas vezes, o controlo do sofrimento físico também alivia alguma
outra dimensão do sofrimento. O paciente pode sentir-se abandonado por
Deus, mas quando recebe cuidado de conforto para a parte física,
reconhece no médico ou no enfermeiro um instrumento de Deus. Então,
sente-se amado porque alguém cuidou dele. As coisas estão muito
interligadas, não estão em gavetas.
"Há pessoas que só vão ser protagonistas da própria vida na hora de
morrer porque nunca foram a pessoa mais importante da própria vida.
Morrer é um processo muito intenso e pode ser muito doloroso para
aquelas pessoas que nunca viveram a própria vida."
O seu papel também é de psicóloga, isto é, também cuida da dimensão psicológica?
Não é possível fazer-se cuidados paliativos sozinho, embora eu tenha
procurado conhecimento da dimensão humana, emocional, espiritual… Não
é possível que eu faça cuidados paliativos na íntegra de uma maneira
solitária. Preciso de um psicólogo, de um assistente social, de um
enfermeiro… Claro que o conhecimento que procuro da psiquiatria, da
psicologia, da teologia e da filosofia ajuda a compor a minha atitude
como médica, mas é sempre necessário a presença da equipa.
Estar tão perto destas pessoas, seja por 10 anos ou 1 hora, deve ser
complicado a nível emocional. Como é que se consegue conviver com
tanta emoção junta?
A carapaça dura não funciona. Quando nos endurecemos diante destas
condições está na altura de mudarmos de profissão. Quando não nos
importamos mais e achamos que tudo isto é normal, então, está na hora
de fazermos outra coisa. Eu aceito a emoção que estas circunstâncias
provocam em mim — então, a emoção passa por mim, não me aprisiona.
Emociono-me, choro, vou ao velório, vou à missa do sétimo dia sempre
que posso, sinto saudades das pessoas, conto as histórias delas, de
quem cuidei há muitos anos — as histórias estão vivas e isso ameniza
um pouco a saudade.
Existem muitos tabus em relação à morte e aos cuidados paliativos na
própria medicina?
Sim. Os médicos fazem parte da mesma cultura, não são seres que estão
à parte. Se a cultura tem o preconceito, os médicos também têm — eles
estão inseridos nesta cultura e são parte deste processo. Ao facto de
aprendermos a curar doenças somamos a necessidade de sermos os heróis
da história. O médico é todo-poderoso. Ele não vai aceitar que o
paciente vai morrer. Fiz faculdade numa universidade considerada das
melhores da América Latina, que tem muita força na ciência, e era
quase uma vergonha aceitar que os meus pacientes morrem. Mas há
doenças que não têm cura. A morte não é um fracasso, o abandono é
fracasso. Dizer que não sei o que fazer é fracasso, isso é vergonha.
Os médicos dizem "não há nada a fazer". Se dizem isso é porque têm
coisas a aprender. O cuidado paliativo é uma área da aprendizagem que
não é oferecido à grande maioria dos médicos. A maior parte dos
médicos não tem acesso a um conhecimento de qualidade em relação aos
cuidados, em relação ao sofrimento.
Não chegam a conhecer essa fase?
Não, porque eles abandonam o paciente antes.
É por isso que escreve no livro que "a medicina é simples, a
psicologia é que não"? A medicina foca-se muito na doença e pouco no
doente?
O profissional de saúde que se relaciona com a doença tem muita
dificuldade em avaliar o sofrimento do doente, porque ele quer
relacionar-se com a doença e não com o doente. Ele relaciona-se com o
processo de diagnóstico, com o processo terapêutico, com os exames e
com os resultados do tratamento, mas olha para o paciente como se
fosse um osso do ofício, porque o ofício é tratar da doença.
Sofremos com a perda quando não sabemos respeitar o vínculo. Se
respeitamos o vínculo que temos com o paciente, então, cuidamos da
pessoa e temos afeto por ela, não porque é o paciente, mas sim a
pessoa. Se não tivermos medo desse vínculo, não vamos ter medo da
perda, porque sei que tudo o que viver com aquela pessoa vai ter uma
intensidade de valor para mim e para o outro. Se acontecer a doença da
pessoa não ter cura e ela morrer, a pessoa torna-se inesquecível para
nós porque cuidámos dela com o melhor que tínhamos ao nosso dispor —
então, não há arrependimentos, não há vergonhas, não nos sentimos
culpados, não achamos que podíamos fazer mais porque fizemos tudo. O
respeito pelo vínculo tira-me esse sofrimento absurdo de perder o
paciente.
"Fiz faculdade numa universidade considerada das melhores da América
Latina, que tem muita força na ciência, e era quase uma vergonha
aceitar que os meus pacientes morrem. Mas há doenças que não têm cura.
A morte não é um fracasso, o abandono é fracasso. Dizer que não sei o
que fazer é fracasso, isso é vergonha."
Enquanto médica, respeita a morte mas não a contraria?
Não acelero a morte, mas também não a adio.
É esta uma perspetiva holística da vida?
Acredito que este estado de presença — quando se está diante de alguém
que tem uma doença grave e nós estamos ali para ajudá-la a passar por
isso com o menos sofrimento possível — já é, em si, algo muito gostoso
de se fazer. Eu sei que vou entrar na vida da pessoa por uma porta que
ela sempre quis manter fechada, a da doença, do sofrimento e da morte.
Mas eu vou entrar e, quando entrar, não vou trazer o sofrimento e a
morte porque isso já está na sua vida, eu vou ajudar aquela pessoa a
passar por isso de uma maneira muito mais leve — consigo oferecer-lhe
uma hipótese de ser feliz, mesmo que ela esteja a passar por isto.
Isso não é um peso para mim, é um privilégio.
Acha que faz falta compaixão aos profissionais de saúde?
Faz muita falta até a auto-compaixão. Em primeiro lugar temos de ter
auto-compaixão. Se reconhecermos que estamos a fazer o nosso melhor e
que precisamos de cuidar de nós mesmos para conseguirmos cuidar do
outro… A compaixão é esse sentimento de que o sofrimento existe;
respeitamos o sofrimento e não achamos que ele é mais fácil ou mais
difícil de ser vivido — não julgamos o sofrimento do outro com base na
nossa experiência. Precisamos de saber o que fazer para ajudar a
pessoa a passar por aquilo. A empatia paralisa-te, a compaixão gera
atitude. Quando só sentimos e temos pena da pessoa, isso é muito
triste, isso adoece-nos. Quando fazemos alguma coisa, isso
liberta-nos, deixa-nos mais forte.
Pode haver beleza na morte?
A morte é muito, muito triste, não é uma alegria viver o dia da nossa
morte. Mas ela tem uma beleza própria. Não é uma beleza mórbida, mas
sim uma beleza que te traz uma sensação de pertença, é um ato humano.
Costumo dizer que, quando cuidamos da morte de uma pessoa, ela sai
pela porta da frente, embarcou na primeira classe… São expressões que
costumo utilizar para esse momento. Quando a pessoa morre e todo o
mundo que está à sua volta percebe que aquela missão foi cumprida,
então, isso é belo de ver, isso é tocante, isso é intenso e nós
sorrimos, mesmo que choremos.
Eutanásia. Ortotanásia e kalotanásia. O que prefere?
A kalotanásia é algo que todos deveriam acreditar que é possível
viver: é a morte bela, a morte que faz sentido à sua existência, é o
dia, a presença de quem se ama, o sentimento que experimentamos nos
minutos finais, são experiências da sua humanidade, da sua história. É
a morte bela. A ortotanásia é a morte correta, é a morte que acontece
no tempo certo da história da sua doença — não se adia, nem se
antecipa. É um termo técnico, a kalotanásia é um termo humano. A
eutanásia é a morte antecipada, em que se decide o dia bom para
morrer.
A que lhe faz mais sentido é a kalotanásia?
Sim, sem dúvida nenhuma.
E qual é a sua opinião sobre a eutanásia?
Respeito, porque não posso julgar o peso do fardo que não carrego. Se
o paciente me diz que isto é insuportável, eu tenho de acreditar. Eu
não faço a eutanásia porque acredito que a morte é a experiência
humana mais intensa e sagrada que podemos experimentar. Acredito que a
eutanásia sequestra-nos esse direito. Não é uma obrigação, mas é um
direito. A morte é o ato extremo da entrega e, pela eutanásia, abrimos
mão disso, queremos controlar. Acho isso um desperdício.
Mas há situações que serão profundamente difíceis…
Já tive a experiência de vários pacientes me pedirem a eutanásia. Não
condeno. Peço uma hipótese. Pergunto há quanto tempo a pessoa está a
sofrer: "Faz dois meses, faz três anos". Pergunto o que mais a
incomoda. "A dor, a falta de ar… a tristeza." Faço um pedido: "Se já
deu três meses para o sofrimento, dá-me três dias para usar tudo o que
eu sei para poder avaliar a dor". Só houve uma vez em que o paciente
não melhorou e aí eu disse que não tinha como antecipar a morte,
porque não faço isso, mas que posso deixá-lo inconsciente perante o
sofrimento. É sedação paliativa. Ele aceitou. Ele tornou-se
inconsciente ao sofrimento, como se tivesse morrido. Ainda viveu
alguns dias a dormir.
Quais são os principais desafios de cuidar de pessoas no fim da vida?
Para mim, o principal desafio é mostrar-lhes que estão vivas, porque
quando elas se apercebem que estão gravemente doentes acham que já
estão mortas, que não têm nada para ser vivido. Às vezes, as famílias
olham para as pessoas dessa forma. A primeira pessoa que olha para nós
como se estivéssemos mortos é o nosso médico, quando vê o resultados
dos exames. O maior desafio é mostrar para todos os envolvidos,
inclusive para o paciente, que ele permanece vivo apesar de estar
gravemente enfermo. O segundo desafio é fazer com que todos os
envolvidos neste processo se comprometam num estado de presença sem
julgamento, sem tirar o protagonismo das decisões do paciente. O
terceiro desafio é a verdade, porque muitas pessoas acreditam que não
podemos contar ao paciente que a situação é grave — não é preciso
dizer que vai morrer daqui a 5 minutos, não é isso, mas é admitir que
estão diante de um grande problema e, nessas circunstância, preciso de
saber o que é mais importante para o paciente. Esse convite é um
convite que às vezes as famílias não me deixam fazer — acham que se
falar a verdade, as pessoas morrem de tristeza. Existem estudos que
mostram que isso é muito raro acontecer.
Mas é possível morrer de tristeza?
A pessoa desiste da vida porque sabe que vai morrer. Há muita gente
que acredita que isso é comum acontecer, mas não é. É como o exemplo
que dou: hoje à noite vamos para uma festa maravilhosa, uma festa
chique, em que vai ser servido um jantar maravilhoso, vai haver música
linda e eu não te falo dela e vais assim, do jeito que estás, até pode
comer uma sandes antes [e ir sem fome]. A pessoa vai estar diante um
momento magnânimo da vida e não sabe que está nele. Então, perdemos a
hipótese de nos prepararmos.
Como é que se ensina um paciente a aceitar a morte?
Penso que deveríamos começar a ensinar as pessoas antes de elas serem
pacientes. Este livro… não é preciso ter-se cancro para ler o livro ou
para ler sobre este assunto. É melhor que nos comecemos a preparar
para perder porque a vida vai oferecer várias oportunidades de perda.
Não estou só a falar de perda física, da morte concreta. Perdemos
empregos, relações, sonhos, dinheiro… Só fazemos cursos sobre como
ganhar. E quando perdemos achamos que fracassámos. Quantas coisas já
perdemos e, passado algum tempo, pensámos "ainda bem"? A vida dá-nos
oportunidades para aprendermos a perder. Nós é que não queremos.
Temos uma sociedade de conquista. É sempre a somar e, se calhar, é por
isso que estamos sempre tão insatisfeitos…
Há sempre algo mais a ganhar. Se aprendermos que tudo o que temos, na
verdade, não temos — porque são coisas que vamos perder –,
aproveitamos mais. Há uns dias perguntaram-me o seguinte: se
tivéssemos uma relação melhor com as perdas, teríamos uma relação
melhor com a morte? Disse que não, disse que teríamos uma relação
melhor com a vida. Assim, já não vamos achar que, só porque perdemos o
emprego, a vida acabou. É chorar até começar a rir, é esgotar o
sentimento da experiência. Não devemos negar a experiência, mas sim
vivê-la. Se a emoção vem, cabe a nós aceitá-la como se fosse uma
visitante, que se senta connosco, toma o café da manha, almoça e janta
na nossa companhia. Quando fingimos que as emoções não existem, elas
não se vão embora.
Quando foi a primeira vez que se cruzou com a morte?
A primeira grande perda que tive foi a minha avó. Por causa dela
decidi fazer medicina, por causa do sofrimento dela. A minha avó
morreu no dia em que me licenciei. Durante muito tempo senti-me
fracassada por não ter conseguido cuidar dela, quando consegui
formar-me para cuidar dela, ela morreu. Entendi que ela viveu para que
eu fosse capaz de suportar tudo o que foi difícil com a faculdade —
como eu era muito sensível não foi fácil. Ela deu-me de presente esse
tempo da vida dela para que eu pudesse completar esta jornada.
Porque é que era tão difícil ser-se uma pessoa sensível na medicina?
Porque há o julgamento de que o médico que se emociona e é sensível é
um médico mau, que não vai conseguir fazer o tratamento porque vai
sofrer juntamente com o paciente.
Porque os médicos são vistos como "deuses da terra"?
Exatamente. Há um citação engraçada que diz que a diferença entre Deus
e os médicos é que Deus sabe que não é médico. Essa perceção se
omnipotência é algo que nos é ensinado na faculdade. Brinco a dizer
que na faculdade entramos como humanos e saímos médicos.
Este livro foi lançado em 2016 no Brasil e chega agora a Portugal. Tem
alguma noção de como são os cuidados paliativo em Portugal?
Na Europa existe uma perceção dos cuidados paliativos muito melhor do
que no Brasil. Nos últimos oito anos, sensivelmente, o Brasil
conseguiu chegar a um nível muito bom de perceção, mas ainda é
insuficiente porque é um país muito grande… é um grande desafio para
que todos tenham acesso. Mas estamos num processo bonito, de
compreensão e de aprendizagem. As pessoas não querem falar sobre a
morte… mas este livro tem duplicado de vendas a cada trimestre. Em vez
de ter uma queda, ele sobe. Costumo dizer: pode ser que as pessoas não
queiram falar sobre a morte, mas talvez queiram ler.
Tem medo da sua morte?
Neste momento não tenho medo da minha morte, mas quero ter o direito a
ter medo. Preciso desse direito. Quero que nos meus tempos finais, se
eu tiver com medo, alguém tenha coragem de estar ao meu lado e ficar
comigo. Não quero que ninguém fique comigo e depois vá dizer "A
doutora Ana, que falou a vida inteira da morte, agora está com medo da
morte, que vergonha". Se alguém me julgar por isso é porque não
entendeu nada do que disse até hoje. Quero ter o direito a ter medo.
Desconfia que vai ter um certo fascínio quando chegar a sua vez?
O que sinto pela minha morte é uma curiosidade. Como será? Como será a
minha kalotanásia? Como vai ser a minha experiência? Passei agora por
uma experiência lúcida de dependência: parti o tornozelo e fiquei
dependente durante um mês, sem estar doente. Foi uma experiência em
que pude pôr em prática tudo o que eu digo às pessoas para fazerem e
funciona, é magnífico. Recebi cuidados, aceitei dar trabalho. Decidi
ser verdadeira nessa dependência. Houve momentos em que senti raiva:
"Quando é que vou conseguir ir sozinha à casa de banho?", "Quando é
que vou conseguir pôr o pé no chão?". Aí é preciso ter alguém que
apenas nos abrace. Ninguém que diga " isto vai passar". O que
interessa não é o futuro, é o agora. Foi uma experiência muito
valiosa.
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