# A vida quotidiana
QUE COISA SÃO AS NUVENS
O QUOTIDIANO MUITAS VEZES SE PARECE A UM CAMPO FECHADO, A UMA ARENA
BAÇA ONDE TRAVAMOS, A CUSTO, A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
Valoriza-se pouco a vida quotidiana. Sentimo-nos aprisionados pelas
rotinas, num rame-rame monocórdico capaz de nos fazer hibernar a nós e
ao universo. Ou vemo-nos então num vórtice ofegante de tarefas para as
quais só temos esforço, aceleração e cansaço, e não respostas. O
quotidiano muitas vezes se parece a um campo fechado, a uma arena baça
onde travamos, a custo, a luta pela sobrevivência (e apenas essa), no
meio dos obstáculos e contrastes que o tempo (esse lutador mais exímio
do que nós) nos vai lançando. "Quando penso no quotidiano, o infinito
parece-me uma coisa mais distante" — confidenciou-me, um dia, uma
amiga. E ela queixava-se de como o dia a dia pode ser disfuncional,
ensurdecedor, áspero e dissonante; de como sendo nossa, a existência
diária também nos despersonaliza e torna maquinais mesmo aqueles
gestos onde quereríamos tanto estar inteiros. É comum ouvir
testemunhos desta dilaceração, como se estivéssemos condenados a
descobrir o quotidiano como um domicílio afinal estranho e equívoco,
uma porta familiar que nos resiste, e que as nossas chaves abrirão
sempre com maior dificuldade. Ou, pior ainda, quando dos nossos
quotidianos passamos a anotar, com ressentimento, só o cinzentismo
uniforme e nervoso, o pulsar descontente, a energia medíocre e
incompleta, o que nos parece ser a sua insuportável banalidade, o seu
embotamento penoso, uma gaguez não de palavras, mas de entusiasmo e de
amor.
O quotidiano é o barco e a viagem. É o barro e a obra a construir. É o
espelho turvo, mas é também o lugar onde a promessa da visão nítida se
tateia
E, contudo, sem desmentir esta exigência que é também real, sem negar
o seu peso que amiúde nos vence, precisamos de nos reconciliar com o
quotidiano. Pois, na sua forma vulnerável e até contraditória, ele é o
lugar das aprendizagens mais amplas, dos encontros mais decisivos, das
experiências mais profundas e iluminantes. A vida, se a olharmos bem,
não é igual todos os dias. Os dias, se os abraçarmos bem, não são uma
antologia de momentos opacos e quebradiços. Os instantes não são
lampejos ocasionais sem sentido, nos quais não devemos confiar. O
quotidiano é o barco e a viagem. É o barro e a obra a construir. É o
espelho turvo, de que São Paulo fala no célebre hino da Carta aos
Coríntios, mas é também o lugar onde a promessa da visão nítida se
tateia. Por isso, em vez de sonolência ele pede-nos que abramos
verdadeiramente os olhos. Em vez de indiferença e recusa, ele espera
de nós empenho, fidelidade e esperança.
Lembro-me muitas vezes da forma como começa um dos contos de que mais
gosto de Sophia de Mello Breyner Andresen. O conto chama-se "O
Silêncio" e penso que é de tudo isto que fala: do que a vida
quotidiana nos pede e nos dá, do que ela leva de nós e daquilo que
deixa como legado. E legado não só à superfície, mas no âmago do
próprio viver. O texto não podia arrancar de forma mais exata, e tem a
cadência concisa e repetitiva de uma descrição ritual. Ei-lo: "Era
complicado. Primeiro deitou os restos de comida no lixo. Depois passou
os pratos e os talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois
mergulhou-os numa bacia com sabão e com água quente e, com um
esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer a água e
deitou-a no lava-louças com duas medidas de Sonasol e de novo lavou
pratos, colheres, garfos e facas. Em seguida passou a loiça e os
talheres por água e pô-los a escorrer na banca de pedra. As suas mãos
tinham ficado ásperas, estava cansada de estar de pé e doíam-lhe um
pouco as costas. Mas sentia dentro de si uma grande limpeza como se em
vez de estar a estar a lavar a loiça estivesse a lavar a sua alma."
in Semanário Expresso, 11.10.2019 p.153
http://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2452/html/revista-e/que-coisa-sao-as-nuvens/a-vida-quotidiana
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